Duas famílias inimigas que se odeiam mortalmente: Montecchio e Capuleto. A relação delas é tecida por uma história de vinganças, retaliações, mortes. Até que um dia, Romeu, um Montecchio, se apaixona perdidamente por Julieta, uma Capuleto. Trata-se de um amor proibido. De noite, sorrateiramente, ele pula a cerca, digo, o muro do jardim dela. Os dois varam a madrugada conversando, escondidos, tentando encontrar um jeito de se libertar do fardo pesado do nome de família, que condena sua relação amorosa. Acontece, então, no segundo ato, a famosa cena do balcão em que ambos discutem o que é, afinal, um nome. Vamos a ela.
- “Romeu, Romeu! Ah! Meu inimigo não és tu, mas apenas teu nome. Por que és Romeu? Renega teu pai, despoja-te do teu nome” - diz Julieta, que se propõe a trocar também o seu, para assim tornar o amor possível. Numa passagem antológica, ela se justifica, filosofando: “O que há num simples nome? O que chamamos rosa, com outro nome não exalaria igual perfume?”.
Dito isto, balançando as trancinhas, ela suplica:
- Sê outro nome, Romeu. Apaga o teu nome e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo.
Ele topa correndinho:
- De agora em diante não serei Romeu. Meu nome me é odioso, por ser teu inimigo. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado.
Se Romeu Montecchio passar a se chamar Jacinto Pereira Filho (tirando Pereira, como é que fica?), nem por isso o novo nome lhe permitirá sentir contrações no útero. Da mesma forma, rebatizada por Frei Lourenço como Raimunda Fonseca, Julieta jamais ficará, por causa disso, com a perna fina e a bunda seca. O nome da rosa muda. O perfume permanece.
A cena do balcão é aqui relembrada, por causa da polêmica criada pelo artigo - Uma piada de português – que circulou semana passada na Comunidade Virtual da Linguagem (CVL). Nele, há críticas ao projeto do deputado Aldo Rebelo, que proíbe o uso público de estrangeirismos e, para substituí-los, propõe a criação de palavras equivalentes em português, prevendo multas para os infratores. O artigo foi publicado também na revista literária Cronópios, no site Taquiprati e nos jornais: Diário do Amazonas, Notícias da Bahia e Vejosaojose, o que rendeu muitas cartas. “The bug is catching”, como diria Shakespeare. É isso mesmo, o bicho está pegando.
Vernaculite aguda
O bicho pega porque o deputado Aldo Rebelo sempre lutou contra a dominação cultural, merecendo, por isso, os nossos aplausos. Ele quer dar um ‘chega-pra-lá’ no imperialismo norte-americano - “Yankees, go home” - e reafirmar os valores nacionais, o que o torna simpático para nós, sobretudo num contexto em que Bush é o gendarme, perdão, o meganha do planeta.
Não é esse, porém, o foco da discussão, mas indagar se proibir estrangeirismos é um caminho viável para fortalecer a luta pela afirmação da identidade nacional. Eis aí a questão. Isso implica xeretar sobre qual é a concepção que o projeto do Aldo tem da função social da língua e de como ela se forma historicamente.
O projeto do deputado está preocupado só com o significante. Rejeita nomes estrangeiros e quer trocá-los. Mas se omite sobre o significado. De forma caricaturesca, parodiando Julieta, é como se dissesse: “Meu inimigo não és tu, hot-dog, mas apenas teu nome. De agora em diante, serás cachorro-quente”. Não discute a presença no país do McDonald’s e do cheeseburguer, proíbe apenas designá-los com esses nomes. Tanto faz se a gordura saturada é a mesma, desde que o nome seja português castiço. O buraco, no entanto, é mais embaixo, como diria Raimunda Fonseca a Jacinto Filho.
Esse ataque de vernaculite aguda quer nos fazer acreditar que a ‘guerra de palavras’ pode solucionar um problema criado pela ‘guerra de mercados’. Se palavras estrangeiras devem ser rejeitadas por serem estrangeiras e, portanto, ‘nocivas’ ao patrimônio nacional, por que, então, não se proíbe, por exemplo, os produtos e serviços estrangeiros que elas denominam?
Qualquer menina de 14 anos, como Julieta (ou, vá lá, Raimunda Fonseca), sabe que mudar o nome da rosa não altera o seu perfume. Da mesma forma, ninguém ficará mais nutrido porque comeu cachorro-quente no lugar de hot-dog. Para o metabolismo da gente, não faz qualquer diferença.
Mas para a afirmação da identidade nacional faz, argumentam os que insistem que o projeto combate a importação para o Brasil do american way of life. Embora o McDonald’s esteja se lixando sobre o nome que damos aos seus produtos – o que quer é vender e lucrar – os adversários do estrangeirismo entendem que “minha pátria é minha língua”, como cantou o poeta Fernando Pessoa, e que a invasão de palavras importadas corresponde, portanto, à ocupação do território nacional por tropas estrangeiras. Dessa forma, mexem com os nossos brios e com os nossos sentimentos patrióticos, o que tempera o debate com uma pimenta ideológica, conduzindo-o para outro campo.
O Falador de longe
Em buscas de compensações pelas perdas sofridas, o nosso sentimento nacional ferido é capaz de deslocar o debate do campo da história, da política, da economia, da tecnologia – onde sofremos muitas derrotas - para o terreno simbólico, isto é, da língua, onde – quem sabe? - poderemos, como no futebol (perdão, ludopédio), obter algumas vitórias e nos afirmar positivamente.
É por isso que uma amiga lingüista, que sabe muito bem que os empréstimos são necessários e úteis, apesar disso não hesita em escrever:
“Estou com o Aldo. A intenção do projeto de lei não é a de proibir todos os estrangeirismos, de qualquer época ou língua, e sim a de combater os excessos (e bota excesso nisso!) de anglicismos atuais, desnecessários e inadequados, visíveis nos bancos, nas lojas, nas vitrines, na publicidade, na economia, etc.etc.etc. E nisso Aldo não está tão sozinho: vários países, como a França, tentam levar o mesmo combate”.
Ela diferencia ‘empréstimos legítimos’ de ‘estrangeirismos em excesso’, propondo, digamos assim, uma ‘emenda’, na qual acrescenta alguns critérios, embora discutíveis, que estão ausentes do projeto original. Se sua emenda for aprovada, ficamos combinados assim:
Art. 1º - São bem-vindos os empréstimos de palavras necessárias que já foram incorporadas ao português há muito tempo;
Art. 2º - Ficam proibidas novas palavras, inadequadas, sobretudo as provenientes da língua inglesa;
Art. 3º - Será punido o uso público excessivo de anglicismos como ‘sale’, ‘off’, ‘delivery’. ‘shopping’, etc em vitrines, lojas, bancos, mídia.
É aqui que o fiofó da cotia começa a assoviar, devido à imprecisão conceitual desses critérios. Quem vai definir se uma palavra de língua estrangeira é ou não necessária para o falante do português? Como determinar sua adequação ou inadequação? Qual o tempo requerido para avaliar se a nova palavra já foi incorporada definitivamente? Se palavras provenientes recentemente do inglês são proibidas, como vamos testar seu uso pelos luso-falantes e verificar sua propriedade? O que é “excesso” de estrangeirismos?
Não podemos esquecer que o ‘estrangeirismo’ de hoje pode ser o ‘empréstimo legítimo’ de amanhã. O ‘foot-ball’, por exemplo, em 1920, era ‘sport’ de granfinos, disputado no “aprazível ‘field’ da Rua Paissandu”, no Rio, onde se fazia muitos ‘goals’, como registra Nelson Rodrigues em uma divertida crônica. Uma década depois, os falantes jogaram o ‘field’ na lata do lixo, mas aproveitaram ‘esporte’, ‘futebol’, e ‘gol’, incorporando-os plenamente ao nosso falar e com uma nova grafia.
Quem me garante que estrangeirismos proibidos hoje pelo Aldo não poderiam ser dicionarizados amanhã e consagrados como nosso patrimônio léxico? Quem pode prever o destino que a comunidade de falantes dará às palavras?
O argumento de que a França e outros países estão ‘defendendo’ os seus idiomas nacionais também não tem peso, porque não vale a pena clonar equívocos alheios. A Alemanha – me escreve de Brasília outra amiga, doutora em literatura - também tentou ‘expurgar’ da língua alemã todos os anglicismos importados junto com os produtos industrializados. Durante o nazismo, Hitler tentou, sem sucesso, substituir palavras inglesas por outras de origem alemã. Um exemplo disso foi o ‘Telefon’, que ele rebatizou de ‘Fernsprecher’ (falador de longe), mas felizmente não colou.
O Brasil, finalmente, não é uma ilha, um gueto. Por suas cidades, circulam anualmente milhões de turistas, empresários e estudantes estrangeiros, cuja língua de comunicação é o inglês, embora nem todos gostemos dessa hegemonia. Os ‘off’, ‘sale’, ‘delivery’, ‘shopping’, ‘cyber’, ‘check-in’ incorporados por parte da população, permitem estabelecer uma ponte com outras culturas e outros mundo.
Uma madrugada, em Osaka, no Japão, buscando leite para minha úlcera, fui salvo graças aos ‘estrangeirismos’, que me permitiram comprá-lo. Tentar aprovar uma lei para dizer como as pessoas não devem falar é desconhecer os mecanismos de formação de uma língua, que ainda estão repletos de insondáveis mistérios.
Uma coisa nós sabemos: todas as línguas se formaram, tomando palavras emprestadas umas das outras. A crítica feita aqui não é ao mandato do deputado José Aldo Rebelo, que é elogiável, mas a esse projeto, que é inócuo. É um absurdo pretender transformar em delito, passível de punição, uma prática social responsável, há vários milênios, pela formação de todas as línguas faladas no planeta.
Se o projeto for aprovado, José Aldo corre o risco de ficar não apenas nu e faminto, mas sem nome, como me escreveu um lingüista aposentado da USP, lembrando que Aldo é um nome de origem germânica e José veio do hebraico, através do grego e do latim.
Com um pedido de licença ao deputado Aldo, os ‘estrangeirismos’ não são constituídos apenas por shoppings, cheeseburguers e outras mumunhas, mas são alimentados, sobretudo, por sábios como Shakespeare: “What's in a name? That which we call a rose, by any other name would smell as sweet?”.