CRÔNICAS

Viajando na canoa do tempo: a língua

Em: 03 de Novembro de 2013 Visualizações: 16310
Viajando na canoa do tempo: a língua

"Meu pai contou pra mim, eu vou contar pro meu filho. E quando meu filho morrer?

Ele já contou para o meu neto. E assim ninguém esquece". Kalé Maxacali 

Estou em Florianópolis, convidado pela Universidade Federal de Santa Catarina para ministrar um curso de Literatura Brasileira para 36 índios Guarani, Kaingang, Xokleng/Laklãnõ, alunos do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. À noite de quinta-feira, com Rivelino Barreto, Tukano, fizemos parte de uma mesa organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social para discutir questões relacionadas às línguas indígenas e às traduções das narrativas ameríndias.

Durante o debate, respondendo a uma pergunta, lembrei fato ocorrido em janeiro de 1985, em outro curso ministrado em Boa Vista (RR), em parceria com Carlos Araújo Moreira Neto, para 60 índios Makuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Yanomami. Nós dois ficamos impressionados com a memória deles. Fizemos um grande círculo e indagamos a cada um o que sabiam de sua história. Quase todos eram bons narradores, descreveram com luxo de detalhes a história de Roraima, relatando fatos ocorridos desde os primeiros contatos com o colonizador no séc. XVIII.

Acontece que a memória oral vai passando de pai para filho, através de mecanismos que garantem a fidelidade da transmissão. Como esclareceu o índio Kalé Maxacali, de Minas Gerais, "meu pai contou pra mim, eu vou contar pro meu filho. E quando meu filho morrer? Ele já contou para o meu neto. E assim ninguém esquece". No entanto, um Wapixana esqueceu. Declarou que desconhecia os fatos históricos narrados por seus colegas e forneceu dados sobre como a cadeia de transmissão fora rompida.

O Wapixana de nossa história foi educado em Boa Vista por uma família brasileira e só retornou à aldeia quando tinha 18 anos. Portanto não aprendeu a língua Wapixana falada pelos velhos. A comunicação foi interrompida. Estabeleci, então, uma analogia. Comentei que para se deslocar no espaço amazônico, é necessário uma canoa. Da mesma forma, para se deslocar no tempo precisamos da língua. Foi aí que o Wapixana fez a pergunta:

- Quer dizer que a língua é a canoa do tempo?.

Queima de arquivo

Usei a metáfora no capítulo de um livro publicado em 1992, onde foi sinalizado que a historia ocidental, da qual a brasileira faz parte, desdenhou desde seu início qualquer documentação verbal que não fosse escrita, padronizando este traço e universalizando o seu modelo de confiabilidade nos documentos escritos, fazendo extensiva esta qualidade ao "resto" do mundo que foi encontrado no processo colonizador.

Durante muito tempo, a historiografia considerou os povos ágrafos como "povos sem história" ou "pré-históricos", devido à falta de "literacidade", isto é, de uma prática sistemática de leitura e escritura. As sociedades de memória oral foram tratadas como sociedades pré-lógicas que, não dominando a escrita, não tinham o saber. Argumentava-se que, na ausência de documentos escritos, as pistas que existem são frágeis para o levantamento da história desses povos. Quanto à tradição oral, ela não era digna de credibilidade. Portanto, sem fontes escritas, não há história, não há saber.

A apropriação pela atual sociedade brasileira do saber indígena, transmitido de uma geração a outra através da tradição oral, tem sido obstaculizado pela ignorância, o despreparo e até mesmo o desprezo mantido em relação às línguas e cultura indígenas. O preconceito etnocêntrico não nos tem permitido usufruir desse legado cultural acumulado durante milênios. É um especialista em biologia, citado por Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem, que chama a atenção para o fato de que muitos erros e confusões poderiam ter sido evitados – alguns dos quais só muito recentemente retificados – se o colonizador tivesse confiado nas taxonomias indígenas em lugar de improvisar outras não tão adequadas.

O desaparecimento nos últimos cinco séculos de mais de mil línguas indígenas no Brasil significaram uma queima de arquivo, cujos estragos podem ser ainda minimizados. Como observa Darell Posey, “com a extinção de cada grupo indígena, o mundo perde milhares de anos de conhecimento sobre a vida e a adaptação a ecossistemas tropicais”.

Tradição Oral

Lembrei ainda que em abril de 1985, a Agência Estado de São Paulo divulgou notícia publicada nos principais jornais do país sobre a morte de uma criança e a intoxicação de mais quinze pessoas no bairro Vila Nova, na periferia de Porto Alegre (RS), por haverem comido mandioca, furtada de uma horta. O então secretário de Saúde e do Meio Ambiente, Germano Bonow, informou que “todas as semanas há casos no Rio grande do Sul de intoxicação leve provocada pela ingestão de mandioca, por pessoas incapazes de distingui-la do aipim.”

A mandioca foi domesticada pelos índios há quatro mil anos, segundo hipóteses dos arqueólogos. Durante pelo menos quatro milênios, através de experimentação genética, os índios vêm diversificando e enriquecendo a espécie. Só na região do rio Uapés (AM), entre os índios Tukano, Chernella (1986) identificou 137 espécies cultivares diferentes. A preservação, o controle e as técnicas de cultivo e extração do veneno da mandioca vêm sendo transmitidos eficazmente pelos horticultores indígenas através da tradição oral.

Esse episódio evidencia a quebra de elos na cadeia de transmissão oral. Ele revela como, em conseqüência, a sociedade brasileira deixou de se apropriar de um saber milenar, útil para a sua sobrevivência, sem que a escrita substituísse essas funções para amplos setores da sociedade nacional. E nos coloca algumas interrogações sobre a vigência da tradição oral para os povos indígenas que hoje vivem no Brasil.

P.S.  Os detalhes do curso em Roraima estão relatados em Freire, José R. Bessa: A Canoa do tempo: Tradição Oral e Memória Indígena. Rio. Imago. 1992 (pp.138-164), publicado como capítulo do livro organizado por Roberto Acízelo, Luiz Costa Lima e Dirce Côrtes Riedel: América: Descoberta ou Invenção. 4o. Colóquio UERJ. Rio de Janeiro. Imago. 1992. A métafora construída com o Wapixana é tão sugestiva que quinze anos depois, em 2007, o PPGH-UFAM escolheu A CANOA DO TEMPO como título de sua revista. 

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8 Comentário(s)

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Carlos comentou:
08/11/2013
O Museu do Índio, no Rio de Janeiro, tem um projeto de documentaçao de linguas indigenas chamado PRODOCLIN. Aquelas canoas que foram furadas e que estão ameaçadas e que podem naufragar estão sendo não apenas estudadas, mas revitalizadas.Até onde e se terão exito só o tempo dirá.
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Cristina Martins Fargetti comentou:
08/11/2013
Linda crônica, José Bessa. Como linguista, posso dizer que "nenhuma canoa é furada". Todas as línguas são importantes e o que perdemos no Brasil muito nos entristece. Mas há línguas vivas e precisam ser conhecidas, documentadas e revitalizadas. Muita beleza que não pode morrer. Pelo bem dos nossos netos. Abraço
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Ana Silva comentou:
07/11/2013
Excelente crônica Bessa! Os povos indígenas têm muito a nos ensinar. É preciso, no entanto, sensibilidade, abertura aos outros como tu bem demonstras em teu belo texto! Obrigada.
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Thiago Cardoso comentou:
05/11/2013
Bom ler mais um texto do seu Blog. Ir de um lugar para outro numa canoa na Amazônia, exige todo um saber-fazer, uma experiência no trato do remo, do tipo de embarcação, da intensidade do banzeiro...das nuves que se formam e do fluxo de água e seus rebojos...dentre outros mais. Sendo assim, e seguindo por entre a trilha aberta por ti, me pergunto te perguntando, se a lingua é a canoa do tempo então para que ela (e as narrativas) perpasse o tempo não estaria ela que estar ligada em todo um saber-fazer a uma inserção em determinado mundo que lhe de lógica e consistência? Ou seja não se rompe apenas narrativas, mas sim todo um conhecimento e uma experienciação no mundo...
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Áurea de Andrade comentou:
05/11/2013
É o Nheengatu que devo aprender para me comunicar com as 23 etnias indígenas do Alto do Rio Negro, especialmente em São Gabriel da Cachoeira, AM? E o que acham de promovermos um curso integrado (com canções, eurritmia etc) de português/espanhol (devido à vinda dos médicos cubanos) + colunas para as traduções para cada idioma indígena do Brasil? Grata Áurea e
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Simara Ferreira (via FB) comentou:
04/11/2013
Mais importante do que observar as regras da ABNT, é observar e manter a "honestidade intelectual", afinal, é vergonhoso apropriar-se do trabalho do outro, seja por desconhecimento ou de forma proposital. Lamentavelmente, essas posturas têm se multiplicado em nosso meio e muitas vezes, somos coniventes ao nos calarmos diante delas.
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Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (via FB) comentou:
04/11/2013
Aproveito o compartilhamento desta crônica do Ribamar Bessa ( José Bessa) para fazer aqui três pequenos registros aos mais jovens: 1) Sou Testemunha do vivo entusiasmo com que o nosso então professor Ribamar Bessa comentava para todos nós, professores e alunos, dentro e fora da sala de aula, essa sua rica experiência de 1985, que havia lhe permitido a criação da metáfora da “Canoa do Tempo”, quando em diálogo com seu aluno Wapixana; 2) Lamentavelmente, fiquei bastante triste quando, em 2007, quase duas décadas depois, o PPGH-UFAM lançou a sua revista com o nome “Canoa do Tempo” sem, no entanto, citar esse fato, além de omitir olimpicamente o artigo que o Bessa escreveu em livro publicado em 1992; 3) Mais triste ainda fiquei quando soube dos dissabores que o meu irmão experimentou ao criticar, entre seus pares, essa grave e vergonhosa omissão.
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Áurea de Andrade comentou:
04/11/2013
Qual língua indígena devo aprender para me comunicar com as 23 etnnias de São Gariel da Cachoeir,a, AM? Contato de Áurea de Andrade
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