Nesse fim de semana, de 8 a 10 de dezembro, aconteceu em Brasília o seminário nacional “Diálogos do Turismo, uma viagem de inclusão”, organizado pelo Ministério do Turismo e pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). Nele se discutiu a criação de sistemas turísticos inclusivos, capazes de atender às necessidades de grupos sociais e de comunidades tradicionais, em geral vulneráveis: indígenas, negros, quilombolas, camponeses, pescadores, portadores de deficiência, idosos, gays e lésbicas, esses dois últimos com mercado crescente na indústria do turismo.
O ministro do Turismo, Walfrido dos Mares Guia e a superintendente do IBAM, Mara Biasi Ferrari Pinto, abriram o seminário. Depois, o senador Cristóvam Buarque falou sobre turismo, solidariedade e inclusão. Em seguida, mais duas conferências e oito palestras abordaram temas variados. Uma palestrante foi a Lecy Brandão, que discorreu sobre “Igualdade racial e turismo”. Outro foi esse locutor que vos fala, que discorreu sobre a experiência dos indígenas nesse campo. Se os leitores tiverem paciência, reproduzo aqui apenas o começo da palestra, que comenta um documentário intitulado “Cannibal Tours”.
Turistas e Indígenas
Turistas europeus e norte-americanos, num luxuoso cruzeiro pelo mar da Papua-Nova Guiné, visitam 18 aldeias de etnias localizadas na floresta ao longo do rio Sepik. O cineasta australiano, Dennis O'Rourke, está lá, presente, filmando tudo. O contraste é gritante. De um lado, os nativos apresentam dança tradicional encenada especialmente para essa ocasião e mostram seu artesanato, suas pinturas faciais, seus rituais, suas narrativas, suas casas de reza. De outro, os turistas entram nas aldeias, invadem as casas, barganham o preço de colares, pulseiras, máscaras de madeira e outras peças de artesanato, buscando o exótico, o diferente, o “autêntico”.
Um casal de americanos, mascando chiclete, tenta disfarçar um riso vulgar diante de objetos fálicos vendidos como souvenir. O alemão corpulento, de chapéu e terno safári, quer filmar o lugar onde antigamente os nativos matavam seus inimigos para comê-los em banquetes antropofágicos. A italiana, em calça jeans, estilizada, a face pintada com padrões gráficos locais, comenta que não acha certo que os nativos reorganizem sua forma de vida em função do turismo, porque isso compromete a ‘autenticidade' da cultura visitada. Sem qualquer constrangimento, ela fotografa o interior da casa de reza.
Se fosse um filme de ficção, com atores, seria uma caricatura. Todo mundo diria que era um exagero do diretor. Mas as imagens mostram, em plena ação, personagens reais de um documentário, revelando uma tribo de turistas, que conhece muito pouco sua própria cultura e, talvez por isso mesmo, tem dificuldades em se relacionar com o “outro”, o “diferente”. As imagens reproduzem cenas em que turistas e nativos interagem lá, na ‘zona do agrião', no campo das relações inter-étnicas.
Os nativos querem e precisam vender aquilo que o turista compra: artesanato, paisagem, exotismo, danças, festas, pintura corporal, oportunidade de fotografar, filosofia de vida e outras produções culturais. São justamente esses interesses comuns que tornam viável a interação entre ambos. Esse é o tema de Cannibal Tours, (1988, 72 minutos) que, apesar de tudo, considera simplista a idéia de que o ‘nativo', guardião da tradição, tem sua cultura “contaminada” pelo turista, e que este último é um bobalhão, sem bagagem cultural, representante da vanguarda do capitalismo.
Quadrilha de turistas
O filme contribui para formular várias questões. Uma delas: o que é que os turistas querem com os índios? A outra: qual é o impacto da atividade turística sobre as culturas indígenas e sobre os próprios turistas? Uma terceira: essa “autenticidade”, tão buscada pelos turistas, não é negada por eles mesmos, quando invadem as aldeias, em quadrilhas, em cada navio, em cada cruzeiro? Por último: como formular políticas públicas para o turismo indígena diante da escassez de estudos, de pesquisas e de bibliografia sobre o tema?
A palestra que fizemos discutiu esses aspectos. Primeiro, conversamos sobre a relação entre o turista e os povos originários, com a ajuda de conceitos como o de cultura - chamando a atenção para seu caráter fluído e dinâmico; de identidade étnica - mostrando tratar-se de uma instância negociada e modificada pelos agentes sociais; de nação - assinalando sua origem histórica. A partir dessas colocações, a noção de ‘autenticidade’ foi questionada, da mesma forma que a divisão das culturas em ‘autênticas’ ou ‘falsas’.
Num segundo momento, foram descritas algumas práticas de turismo em áreas indígenas no Brasil, enfatizando que as etnias que delas participam não são vítimas ou elementos passivos de um processo de ‘perda de cultura', mas se constituem em agentes de sua própria formação cultural. E, finalmente, na terceira parte, foram apresentadas propostas teóricas para pensar o turismo, com sugestões de políticas públicas.
Afinal, quais são os danos e os benefícios do turismo em área indígena? Não sabemos. A indústria do turismo, uma das mais ricas do mundo, causou impacto sobre populações indígenas no Brasil, mas o turismo é ainda um tema pouco estudado pelas ciências sociais. São escassos os trabalhos que analisam os processos culturais gerados no âmbito da atividade turística em todas as suas manifestações. Existem 601 cursos superiores de Turismo e de Hotelaria, mas eles estão mais preocupados com a capacitação e o treinamento de quadros técnicos do que na formação de pesquisadores capazes de produzir conhecimentos sobre o tema.
O que sabemos, com certeza, é que o planejamento de atividades turísticas em áreas indígenas se complica se as terras não forem demarcadas. O coordenador-geral da COIAB, Jecinaldo Barbosa, em recente artigo na Folha de São Paulo, queixou-se que o Estado brasileiro é lento. As terras só são reconhecidas depois de muita pressão. Nos últimos sete anos (1998-2004), uma média anual de 14 terras indígenas teve seus limites declarados pelo Ministério da Justiça: “Considerando que 628 terras indígenas ainda precisam ser demarcadas ou ter seus limites revistos, se o Brasil mantiver essa média, precisaremos de mais 45 anos para reconhecer todas as terras indígenas do país”.
O interessante é que o turismo pode acelerar esse processo, na medida em que “a visita dentro do próprio meio geográfico e/ou cultural ajuda a proteger a fronteira étnica”, segundo o antropólogo Rodrigo Grünewald, que estudou os Pataxó da Bahia. Ele acha que o turismo, se for bem planejado, com o controle das comunidades indígenas sobre a gestão, estimula a produção artesanal e encoraja as expressões de orgulho étnico.
O Amazonas esteve ausente das discussões. Além do trabalho sério da professora Ivani Faria, da UFAM, com o turismo indígena em São Gabriel da Cachoeira, alguém pode me responder o que os órgãos ligados ao turismo estão fazendo por ai?
P.S.Freire, José R. Bessa Sociedades Indígenas e Turismo In Turismo Social: Diálogos do Turismo - Uma viagem de inclusão. Rio de Janeiro: IBAM - Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 2006, v.01, p. 178-204.