Durante muitos anos persegui, inutilmente, nas cinematecas de diferentes cidades por onde andei, um filme musical badalado: ‘Lili’. Até que sua exibição foi anunciada na programação normal da TV Globo. Consegui, finalmente, vê-lo pela primeira vez. Mas o que é que ele tem de especial para que eu o buscasse assim, com tanta persistência? A resposta é simples: esse filme não é um, são quatro, e faltava ver um deles.
Song of love
O primeiro filme é americano, estreou em 1953, dirigido pelo cineasta Charles Walters. Sua canção-tema - “A song of love is a sad song, Hi-Lilly, Hi-Lilly, Hi-lo” - foi cantada no mundo inteiro. Naquela época, o ‘mundo inteiro’ era, para mim, Manaus. Para ser mais exato, o bairro de Aparecida. Por isso, creditei seu sucesso não ao Oscar de melhor canção que ganhou, mas à serenata que o Zé Cavalo fez pra minha irmã Dile, improvisando: “Hi-Dile, Hi-Dile, Hi-Lo”.
O filme conta a história de uma adolescente de dezesseis anos – a atriz Leslie Caron, no papel de Lili – que fica órfã e vai trabalhar no teatro de bonecos de um circo, na França. Lá, surge o clássico trio amoroso. Ela gosta do mágico, vivido por Jean-Pierre Aumont. Mas o cara - oh desencontro! – já é casado com sua assistente Zsa-Zsa Gabor. Aí, quem se apaixona por ela é um aleijadinho, que caxinga numa perna, o ator Mel Ferrer. Ele passa tímidas mensagens de amor à Lili através dos bonecos, nos quais injeta vida e alma.
O momento inesquecível e patético é aquele no qual Lili contracena com um fantoche. Ela está na frente do palco, mas de costas para a platéia. Detrás da cortina, escondido, Mel Ferrer, manipula um boneco, que aparece na boca de cena. Só os dois: Lili e o boneco. Um bate na mão do outro, de forma alternada, cruzada e seqüenciada, como na brincadeira ‘escravo de Jó’, enquanto cantam e dançam juntos: “A song of love is a song of woe. Don´t ask me how I know”. Parece que o boneco é gente ou que Lili é que é uma boneca.
Era uma boneca
O segundo filme é a versão manauara, elaborada por alguém muito especial que viu o filme americano, nos anos 1950, na tela do finado Cine Guarany, localizado na aldeia semi-rural chamada Manaus, numa época em que avós e mães, de noite, contavam histórias. Esse alguém era uma senhora casada, com 13 filhos, cujo nome começa com a letra “E”. Você adivinhou, leitor (a)! É ela mesma, Dona Elisa, a genitora – digamos assim – desse que batuca essas mal traçadas.
Durante muito tempo, nas noites quentes de Manaus, Dona Elisa embalou as nossas redes e os nossos sonhos contando um dos poucos filmes que viu na vida: ‘Lili’. Aí ela se transformava em Elilisa. Performática, usava recursos corporais, faciais, gestuais, modulando a voz de acordo com os personagens e a cena, fazendo, ao mesmo tempo, a função de contra-regra. Que luxo de detalhes recriados! Que riqueza de pormenores inventados! Que sensibilidade refinada para encontrar poesia no esterco. Dominava a arte de contar. Não descrevia. Descrevivia. Era uma narradora.
Descreviver
O filósofo alemão Walter Benjamin fala da existência de dois grandes tipos de narradores: o narrador-camponês e o narrador-marinheiro. O primeiro está preso à terra, não se mexe, sua viagem é no tempo, adora contar casos do passado ocorridos em sua aldeia. O segundo, irrequieto, prefere se deslocar no espaço. Sua fantasia voa mundo afora, em busca de aventuras. Dona Elisa reunia as qualidades dramáticas dos dois, dando uma interpretação tão pessoal e fantasiosa, que acabou produzindo um segundo filme de sua autoria.
Quem conta um conto aumenta um ponto? Dona Elisa aumentou centenas, de acordo com a reação dos ouvintes. Quando um filho curioso fazia pergunta difícil, ela não tinha o menor pudor em criar novos fatos que, é claro, aconteceram, mas haviam sido omitidos na versão original.
Corrigiu, assim, muitos erros dos gringos. Na versão original, em inglês, a música fala literalmente que uma canção de amor é triste, saudosa, nostálgica. Quem canta, está deprimido, na fossa. Mas Dona Elisa mandou a tristeza embora. Canção de amor é alegre, como ela cantava, repetindo a versão brasileira tocada na Rádio Baré e gravada depois por Maria Betânia e por Gal Costa: “Eu vivo a vida cantando, ai Lili, ai Lili, ai lou, por isso sempre contente estou, o que passou, passou”.
Se o amor é alegre, o desemprego é trágico. A demissão de Lili pelo dono do circo, um bigodudo malvado, no filme americano é uma cena banal, que dura, apenas, alguns segundos. Dona Elisa prolonga a cena por hooooooras, politizando-a e transformando-a em conflito trabalhista com a dimensão de uma greve dos metalúrgicos do ABC. Tem lances épicos dignos de um Eisenstein, com música de Prokofiev. Ah, a reação da Lili, quando é colocada no olho da rua! Ah, o choro de Lili! Nem te conto, leitor (a)! No filme americano, é um chorinho contido, muxibento, sem convicção. Na versão de dona Elisa, no entanto, é uma pororoca de lágrimas.
No Lili I, a história termina assim: o bonequeiro perneta, exasperado, dá um tabefe na Lili, enchendo a cara dela de ‘alegria’. Ela, então, bota o pé na estrada, abandonando o circo. No caminho, reflete e descobre que ama o pernetinha, parece que gostou do tabefe. Volta correndo e se joga nos braços do Mel Ferrer. The End, ao som de “Hi Lilly, Hi Lilly, Hi-lo”.
No Lili II, o erro é corrigido. Quem pede arrego não é a mulher. É o homem que entrega os pontos. O pernetinha é que sai correndo pela estrada, detrás dela, gritando: - “Li-li! Li-li! Li-li!” (A objeção de que aleijado não pode correr só pode mesmo passar pela mente tacanha e mesquinha de quem nunca amou). Dona Elisa, que nunca pediu penico pro velho Barbosa, parece que aqui se projetou na heroína.
Ah, leitor (a), você precisava ver a expressão facial, a entonação de voz, a respiração ofegante de Mel Ferrer, seu grito rouco e apaixonado: - “Li-li, Li-li, Li-liiiiiii!”, reproduzido pela garganta da Dona Elisa, que parecia azeitada com óleo de andiroba ou de copaíba para soltar grito tão dilacerador que, de acordo com Lili I, o pernetinha nunca deu. Que cena dramática!!! Mancando, coxeando, tropeçando, caxingando, aos tombos, lá vai o nosso herói: - Li-li! Li-li! Li-liiii! O amor, leitora, faz milagres. Esse grito nunca sairá de minha lembrança auditiva.
Dessa forma, o filme Lili II é mais completo, porque capaz de mudar e se renovar a cada contação, diferente do Lili I, engessado, imutável, invariável. Ora, se a própria vida – como diz Garcia Márquez – não é aquela que uma pessoa viveu, mas a que ela recorda e como recorda para contá-la, o que dirá um filme. Vamos ver Lili III.
Lili e Lulu
Quem ouve um conto também aumenta um ponto? O terceiro filme, aparecidesco, foi aquele que permaneceu na lembrança da gente: uma releitura da leitura da Dona Elisa. Nós, também, acabamos produzindo uma terceira versão de um filme que não havíamos visto.
Sente só o drama, leitor (a): como é que você vai imaginar um filme que nunca viu, mas ouviu centenas de vezes? Como é que vai desenhar o perfil dos personagens, visualizar rostos, expressões? Só tem uma saída: no momento em que está ouvindo a história, você vai recheando a narração, colocando dentro dela referências do mundo real que te cerca. E qual era o nosso mundo real? Ele começa sempre com a letra ‘B’ de Brasil e termina com a letra ‘A’, de Amazonas, seja ele Beco da Bosta ou Bairro de Aparecida.
Dessa forma, o padeiro – amigo do falecido pai de Lili – não era o esbelto Monsieur Godet, a quem a gente nunca havia visto mais gordo, mas o seu Armando Português, da Rua Xavier de Mendonça, dono da padaria de forno à lenha, responsável pelo pão nosso de cada dia. A Lili não era a pálida e despintada Leslie Caron, mas a morena Raimunda Roroca, lá da Praça Bandeira Branca.
E o mágico por quem a Roroca se apaixona? Uma das minhas irmãs, mais romântica, achava que era o Dílson do SAPS (a COBAL da época), que fazia serenata para a Fátima Buchinho cantando: “Um passarinho me ensinou uma canção feliz”. Mas pra mim, o mágico era o Quinha, centroavante do ‘Independência’, uma fábrica de gols.
O dono do circo que demitiu a Lili-Roroca era, de repente, o João Bitoito ou então o seu Bento, dono da fábrica de cachaça do Beco da Indústria. Quem era o vizinho do padeiro que, no filme, quer faturar a Lili? Não pode ser outro: é o Lulu, que morava atrás do Grupo Escolar Cônego Azevedo e dava em cima de outra Lili, de carne e osso, a Líliane, filha da dona Lavínia, que até ganhou uns versinhos do Petel, o brechador: “Dona Lalá disse pro Lelé que a Lili deu o loló pro Lulu”.
Finalmente, a dificuldade maior: dar um rosto pro pernetinha. No Lili I, Mel Ferrer era um ex-bailarino, que perdeu a perna na guerra. Agora, leitor, me diz: onde encontrar na fauna de Aparecida um ex-bailarino coxo? Já começa que bailarino era coisa de fiu-fiu. O jeito foi esquecer o balé e procurar quem era manco. Nesse caso, havia o ‘Pé-de-onça’, o Zé de Lau e o Padinho, também conhecido como “Deixa-que-eu-chuto”, que arrastava uma perna esmigalhada por uma seringueira lá no rio Purus. Ficamos, então, combinados: o Padinho é o galã. E o Lili III termina com “Ai Lili” em ritmo de carimbó. Mas tem o Lili IV.
Uma canção que diz
O quarto filme é produto do confronto de Lili II e Lili III com Lili I. Mistura lembranças e traços como os da Leslie Caron, que é água, com os da Roroca, que é vinho. O João Bitoito, ligeiramente gago e desdentado, se mesclou ao ator americano bigodudo e de botas, que tinha três carreiras de dentes kolynizados. O Padinho se fundiu com o Mel Ferrer, com quem se parece tanto quanto as águas do Negro com as do Solimões. O Quinha e Jean-Pierre Aumont viraram uma só pessoa.
Nem os menores detalhes foram esquecidos: figurinos, adornos, acessórios. Dona Elisa contava que Lili saía do circo carregando uma mala com todos seus pertences. Na versão americana, a mala era do tipo sansonite. No Lili IV, era de madeira, forrada com pano forte brim cáqui, com gravuras de santos pregadas na tampa pelo lado de dentro, igualzinha a mala que a tia Dedé trouxe de Quixeramobim.
Na realidade, o espectador, o ouvinte e o leitor são soberanos na recepção crítica de qualquer obra. A partir do mesmo filme são construídos significados diversos de acordo com o freguês. Não existe uma leitura ‘fiel’, ‘única’, mas múltiplas leituras que são o encontro do filme produzido pelo diretor com os significados que cada leitor constrói. Nesse sentido – como querem os alemães que criaram a teoria da recepção – o espectador ou leitor também se transforma em co-autor.
Lili é uma boneca? E a Roroca? Ái, Lili! Ái, leitora! Constrói tua versão, vendo o filme. O mundo gira depressa e nessas voltas eu vou, cantando a canção tão feliz que diz: ai Lili, ai Lili, ai lou. ‘A little bird told me that you love me and I believe that you do’.
P.S.1 – Texto republicado a partir da crônica em ‘A Crítica’ – Manaus, 18 de junho de 1987
P.S.2 - Duas notícias, uma alegre - o casamento ontem de Maiara e Carlos Fábio, repórter do Diário do Amazonas. Outra triste: morreu Pequenina, irmã da Capuchinha, Alice e do Rubem Rola. Aparecida está de luto.
https://www.youtube.com/watch?v=eLIUzUnoomY