Chove forte na fronteira do Brasil, Peru e Colômbia. No hospital de Benjamin Constant (AM), no rio Javari, o vigia cochila. Seu radinho de pilha sintonizado na Nova Onda FM 104.9 anuncia a logomarca da emissora: “Aqui começa o Brasil”. Um relâmpago risca o céu escuro. O trovão acorda vários doentes, que ouvem, então, Abílio Faria cantando ‘Hoje eu quero você’, sob o patrocínio do Açougue Coelho e do “Frigorífico do nosso amigo Totó”. Era a madrugada de terça-feira, 13 de novembro de 2007.
Naquele mesmo instante, num leito do hospital, a índia Kokama Alexandrina Cauamare, de 105 anos, indiferente ao trovão, permanece dormindo. Não ouve, na sequência da programação, a música brega ‘O dia em que a alegria me disse adeus’ de Reginaldo Rossi. É que seu sono não tem mais volta. “Ela morreu que nem um passarinho, mas não foi de baladeira, morreu em paz”, conta sua neta Necy Silva de Souza. Com ela, desaparece um dos últimos cem falantes da língua Kokama.
Dona Alexandrina vivia na comunidade ‘Novo Oriente’. Trabalhou na roça e ralou mandioca até os cem anos de idade. Casada com Antônio Cauamare, com quem se comunicava em Kokama, teve doze filhos, mas nenhum herdou a língua materna, porque desde cedo abandonaram a aldeia e foram morar na cidade. Uns foram para bem longe, outros ficaram ali perto como Wilson - marceneiro em Letícia, Misael - vendedor de frutas em Tabatinga, ou Pitácio e Angélica - residentes em Benjamin Constant.
Há alguns anos, os dois filhos que andavam desaparecidos em Rondônia telefonaram de Porto Velho para a Diocese de Benjamin Constant, pedindo notícias da mãe. O padre colocou o aviso no ‘Bocão’ – o serviço de alto-falante da paróquia. Dona Alexandrina, porém, nada entendeu, porque o`Bocão` é monolingüe, como a rádio e as demais instituições locais, que só falam português. “Aqui começa o Brasil”, berra triunfante a Nova Onda FM. “Aqui começa o Brasil” – repete, como num eco, o `Bocão`.
Caboco sutil
O “Bocão” não conta o que aconteceu com os Kokama, parentes dos Omagua, que ocupavam a calha central do Alto Solimões e a confluência do rio Amazonas com os rios Napo, Ucayali e Huallaga. No século XVI, organizados em grandes cacicados, eles construíam imponentes malocas, teciam mantas coloridas de algodão e redes de dormir, fabricavam canoas e instrumentos musicais, mantinham currais de tartarugas, torravam farinha, produziam alimentos em abundância, narravam seus mitos, constituindo aquilo que o arqueólogo americano Donald Lathrap denominou de “civilização da mandioca”.
No período colonial, foram dizimados pelos espanhóis do Alto Amazonas e pelas tropas portuguesas, que vinham de Belém do Pará para escravizá-los. No Império e na República, sofreram investidas dos patrões seringalistas. Uma parte se dispersou, então, pelos centros urbanos, misturando-se à sociedade regional, criando os filhos sem os valores e a consciência étnica de seus avós. É o caso de muitos Kokama que moram hoje em Tefé e Manaus. É o caso, também, da filha de Santiago Moraes, que casou com um engenheiro civil e vive atualmente no Rio de Janeiro.
Outros, no entanto, resistiram, permanecendo camuflados nas comunidades, disfarçados de cabocos. Ninguém tinha interesse em ser identificado. Para continuar sendo índios, tinham que fingir que não eram. “A gente tinha muito medo, não ensinava a língua para os filhos, para que não fossem reconhecidos como índios, pois seriam humilhados, castigados e explorados”, explica Francisco Samias, professor Kokama. Clandestinos, os Kokama se tornaram tão invisíveis que Darcy Ribeiro considerou-os extintos, desde 1946, ignorando definição de Jorge Amado para quem “todo caboco é um índio sutil”.
Recentemente, os Kokama deixaram a sutileza de lado, seguindo o exemplo dos Ticuna com quem conviviam. Iniciaram o processo de etnização em 1986, quando a Funai foi à aldeia Sapotal interrogá-los. “Nós não somos índios” – disseram alguns, pensando que podiam ser perseguidos como nos tempos passados. Mas um grupo seguiu Antônio Samias, que declarou: “Quem quiser ser branco, que seja. Mas eu sou Kokama no céu, na terra e no inferno”. Para não haver dúvidas, desandou a falar em seu idioma, fazendo justiça aos versos de Fernando Pessoa: “Minha Pátria é minha língua”.
Língua anêmica
A língua é uma marca identitária importante, embora não seja a única. Os Kokama buscaram recuperar e afirmar sua identidade, lutando pela demarcação de suas terras, em defesa da língua, da cultura, da saúde e da escola diferenciada. Procuraram se pensar como cidadãos, com direitos diferenciados, o que foi facilitado pela Constituição do Brasil aprovada em 1988. Eles criaram a Coordenação de Apoio aos Índios Kokama (COIAMA), que contribuiu para que mostrassem sua cara.
Hoje, tem Kokama no Peru (Yurimaguas, Pebas e Ramón Castilla), na Colômbia (Ilha de Ronda e Letícia) e no Brasil. Só na região do Alto Solimões, em território brasileiro, cerca de 20 mil Kokama abandonaram, nos últimos vinte anos, suas máscaras de cabocos, dos quais 15 mil já foram reconhecidos pela FUNAI, apesar da oposição de alguns prefeitos, para quem “eles não são mais índios, porque estão vestidos, falam português e anseiam por bens materiais”.
A língua, falada por aproximadamente cem velhos, está em perigo. Cada vez que morre um de seus falantes, como ocorreu com dona Alexandrina, em novembro do ano passado, o alarme soa, porque não surgem novos falantes. Crianças e jovens desconhecem o idioma. Por isso, o Kokama foi considerado “língua moribunda”. Agora, com a assessoria da linguista da Universidade de Brasília, Ana Sueli Arruda Cabral, os Kokama estão tentando revitalizar a língua e colocá-la dentro da sala de aula, o que não é tarefa fácil.
O Kokama foi estudado por Ana Suely, que defendeu, em 1995, sua tese de doutorado, na Universidade de Pittsburgh. Nesse momento, ela está em Benjamin Constant, convidada pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) para dar aulas no Curso de Licenciatura Indígena. Os professores indígenas estão motivados e os resultados começam a aparecer.
Depois de quase meio século, pela primeira vez a língua Kokama volta a ser falada por crianças em São Paulo de Olivença. Rose Moçambite Maurício, 8 anos, da Comunidade Monte Santo, e Alcir Moçambite, 9 anos, da Comunidade Jordânia constituem indícios de que a língua Kokama não vai desaparecer com a morte dos velhos. É uma língua anêmica, mas não moribunda.
- Em Santo Antônio do Içá, por enquanto só os velhos falam. Mas a situação vai mudar. Acho que tinha de ter um serviço de alto-falante em Kokama, para ensinar o gingado da língua, a pronúncia e a figuração - propõe Leonel, aluno da Licenciatura Indígena. Eles estão retomando também a culinária, as canções acompanhadas por flauta (keno) e tamborim (totu) e o artesanato tradicional de tucum, fabricando bolsa, chapéu, pulseira, abano, pote, prato, como informa outra aluna do Curso, Lúcia Kokama.
Quem sabe, o serviço de alto-falante ‘Bocão’ e a Rádio Nova Onda em breve poderão anunciar em várias línguas: “Aqui começa o Brasil sábio, profundo e generoso, que abraça sua identidade pluricultural e se reconhece nos Ticuna, nos Kokama, nos Kambeba e nos Kaixana”. Quem sabe?
P.S.1 – Passei as duas últimas semanas em Benjamin Constant, ministrando aulas no Curso de Licenciatura Indígena, na aldeia Filadélfia. Agradeço as dicas de Necy Souza, casada com Edmar Cauamare, neto de dona Alexandrina, bem como as informações dos kokama Avelino Januário, Francisco Samias, Lúcia, Leonel, Orlanda Salvador e dos ticunas Paulo Mendes e Odiléa Carneiro Januária.
P.S.2 – O Governo do Amazonas pagou no final do ano passado R$ 18 milhões à empresa Pampulha por obras e serviços de infra-estrutura e urbanização no sistema viário de municípios do Alto Solimões. As obras são “fantasmas”, não foram realizadas. As cidades estão abandonadas. De protesto, um carro circulava em Tabatinga com a frase: “Tabatinga, com lama ou sem lama, nós te ama”.