Carnaval! Essa foi a primeira imagem que me veio à cabeça, na sexta-feira, quando a tv começou a transmitir ao vivo a eleição para presidente do Senado. Pensei logo no bloco infantil - Que Caquinha É Essa? - que promove um baile na Rua Garcia D'Ávila, na Zona Sul do Rio. Mas mudei quando ouvi Renan Calheiros (PMDB, vixe-vixe!) discursar para seus pares. Concluí que aquilo não era - com o perdão da palavra - pouca merda, nem brincadeira de criança. Foi aí que surgiu outro bloco mais apropriado, mais adulto, mais consistente, que desfila em Ipanema: Que merda é essa?
É que enquanto Renan falava, suas palavras fediam como cadáver putrefato. Sua tentativa de ressurreição política mostrou um ator decadente e canastrão encenando peça de Beckett ou Ionesco. Foram vinte minutos de puro teatro do absurdo. Ele subiu à tribuna para defender a candidatura e expor o projeto para o biênio 2013-2014. Anunciou a criação de novos órgãos no Senado - a Secretaria de Transparência e a Procuradoria da Mulher - prometeu controle na prestação de contas e mencionou - pasmem! - a questão ética. Ninguém, no Senado, riu ou gargalhou diante de tanta balela.
Contador de balelas
Renan, campeão da ética, comprometido com a transparência e com a condição feminina? Quem é que acredita em uma só palavra do que falou? Nem ele mesmo, que publicou seus próprios discursos no Parlamento no livro intitulado "O contador de balelas". Ali, até as virgulas são falsas, na realidade não passam de pontos com rabinhos presos. Houve um combate mortal entre as palavras, que iam para um lado, e os fatos que caminhavam em sentido contrário. Foi uma agressão à nossa inteligência.
No seu discurso, Renan prometeu mundos e fundos, mas fundos do que mundos. Defendeu, com palavras, o compromisso de todo parlamentar com a ética, quando na prática seis representações já foram feitas contra ele no Conselho de Ética do Senado, pedindo sua cassação. Falou em controle na prestação de contas, quando a empreiteira Mendes Junior era quem pagava 12 mil reais por mês à mãe do filho que teve fora do casamento.
Suas palavras elogiaram a Lei da Ficha-Limpa, mas ele está mais sujo do que pau-de-galinheiro: denúncias pipocam por todos os lados, desde compra de rádios em Alagoas em sociedade com o usineiro João Lyra, em nome de laranjas, até tráfico de influência junto à empresa Schincariol na compra de uma fábrica de refrigerantes. Ele defende a transparência, mas só com palavras, porque usou notas fiscais frias em nome de empresas fantasmas e montou esquema de desvio de dinheiro público em ministérios comandados pelo PMDB.
Essas são denúncias contra Renan, que assume a presidência do Senado já com uma acusação apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria-Geral da República, por haver cometido pelo menos três crimes: peculato, falsidade ideológica e uso de documento falso. Ele é alvo, ainda, de outros dois inquéritos no STF. Joaquim Barbosa nele!
Quem é José Renan Vasconcelos Calheiros, o novo presidente do Senado? No seu curriculum, consta que ele não votou a favor da emenda Dante de Oliveira; que foi um dos fundadores do PSDB em 1988; que chefiou a tropa de choque de Collor de Mello, a quem havia denominado de "príncipe da corrupção" e de quem se tornou o principal articulador político, depois de se filiar ao PRN; que foi indicado pelo impoluto Jader Barbalho para ser ministro da Justiça de FHC em 1998; que em 2002 apoiou a chapa derrotada de José Serra contra Lula; que agora faz parte da "base aliada".
Flor no esterco
Ele, Renan Calheiros, em maio de 1998, como ministro da Justiça de FHC, tranquilizou os ruralistas, anunciando três inquéritos criminais contra nove líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) por incitação, apoio à organização e participação em saques em cidades atingidas pela seca, no Nordeste.
Agora esse cidadão é eleito presidente do Senado, com votos de 56 senadores. Conseguiu o milagre de conquistar apoio do PT e de parte do PSDB, este último em troca da 1ª secretaria da Mesa Diretora, entregue ao senador tucano Flexa Ribeiro (PA), que está sendo investigado pela PGR por irregularidades em contratos assinados em 2000-2001 entre o governo do Pará e a Engeplan, da qual Flexa Ribeiro era sócio. Aécio Neves entrou mudo e saiu mudo da sessão. Suplicy também. Todos eles se lixaram para o abaixo-assinado contra Renan, com mais de 300 mil assinaturas, que circulou na internet.
O ex-ministro José Dirceu (PT), em texto publicado no seu blog, jura que Renan, por fazer parte da base aliada, é "vítima de uma campanha de falso moralismo", patrocinada pela imprensa e pelo Ministério Público. Para Dirceu, a falsidade não reside na nota fria apresentada por Renan, mas na nossa indignação moral, que ele, Dirceu, compartilhou com todos nós, quando se destacou na luta pela cassação de Collor.
Renan Calheiros desmoralizou até algo tão sagrado como a anistia aos perseguidos pela ditadura. Segundo a Folha de São Paulo, ele usou seu cargo para fazer lobby no governo e pressionou a Comissão de Anistia para privilegiar aliados seus, desvirtuando assim a memória da resistência.
No final do seu pronunciamento no Senado, Renan fez média com a mídia e emitiu um sinal para que os jornais cessem de publicar notícias desfavoráveis a ele: prometeu impedir, como presidente do Senado, o prosseguimento de qualquer proposta que mexa com a atual estrutura que possa "tolher a liberdade de expressão".
Depois de ler as declarações de Dirceu e de ver as imagens dos senadores Collor, Sarney e Alfredo Nascimento - lembram dele? - cumprimentando, sorridentes, o novo presidente do Senado, recordei o poeta norteamericano Allen Ginsberg, da geração beat, que embora não tenha cedido ao desânimo, nos dizia que as revolucões são planejadas por utópicos, executadas por fanáticos e aproveitadas por sem-vergonhas.
Ginsberg é citado por Júlio Cortazar, que escreveu uma carta ao seu tradutor nos Estados Unidos, Gregory Rabassa. Nela, o escritor argentino lamenta a situação do mundo, em 1968, mas tenta vislumbrar um último raio de sol, uma pequena luz de esperança no meio de tanto desencanto:
- Qué planeta, hermano! Qué mierda increíble! Pero siempre con una florcita creciendo encima del montón de mierda, como en el poema de Allen Ginsberg!
Confesso que procurei a florzinha de Ginsberg no monte de merda do Senado e nada encontrei. A eleição de Renan Calheiros é uma vergonha para o Senado e uma ofensa ao povo brasileiro. Não é não?