(De Quito, Equador) - O ex-ministro da ditadura militar, Delfim Neto, certamente seria ridicularizado – com muita razão – se comparecesse ao XV Congresso Internacional de Línguas em Perigo, que se realizou em Quito, Equador, de 7 ao 9 de setembro, com a participação de um público interessado que veio escutar 45 especialistas de diferentes continentes. Durante o evento, a UNESCO e a Foundation for Endangered Languages lançaram o Atlas Mundial das Línguas Ameaçadas, que constituem 90% das 6.500 línguas existentes no planeta.
Essas línguas indígenas e seus falantes foram tratados pelo ex-ministro e ex-deputado Delfim Neto, em recente entrevista à Veja, como relíquias exóticas do passado e sobreviventes marginais do subdesenvolvimento. Ele debochou:
- “Veja o caso do complexo hidrelétrico Belo Monte, no Rio Xingu. Por mais nobre que seja a questão indígena, é absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência da energia prevista num projeto gigantesco, só porque doze índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão”.
Os “doze índios cocorocó”, que não são doze, são milhões, espalhados pelos cinco continentes, enviaram representantes ao evento para falar da situação de suas línguas. Esclareceram que “as línguas são instrumento primordial para a transmissão do patrimônio cultural de um povo e, ao mesmo tempo, patrimônio imaterial da humanidade”, como reforçaram Marlen Haboud e Nicholas Ostler na abertura do evento por eles organizado.
Ficou claro que o ex-ministro Delfim Neto, conhecido como “gordinho sinistro”, é um “brucutu” que fala em nome dos “brucutus” – um setor da sociedade brasileira que só pensa no lucro e na grana e está se lixando para o patrimônio cultural.
O Congresso realizado em Quito criou a oportunidade de refletir sobre as línguas minorizadas, sua situação atual e suas relações com as sociedades nacionais e, ao mesmo tempo, entender os desafios que enfrentam os falantes dessas línguas no cotidiano, tanto dentro de suas próprias comunidades com fora delas.
Esse locutor que vos fala foi convidado para falar sobre a situação das línguas no Brasil. Esclareci que minha preocupação básica era com o esquecimento, na realidade um duplo esquecimento. Em primeiro lugar, o esquecimento das línguas: elas desaparecem do mapa e deixam de ser faladas. Em segundo lugar, sua memoria é apagada. Dessa forma, as línguas morrem, pelo menos, duas vezes: quando são esquecidas e quando esquecemos que foram esquecidas.
Em 1850, quando foi criada a Provincia do Amazonas, 48% da população de Manaus, a capital, não falava o português como língua materna, mas o Nheengatu. Com a vinda de 500 milhões de nordestinos para a Amazônia, no período de 1877 a 1914, a situação mudou e a maioria passou a falar português. Esquecemos o Nheengatu, mas o mais grave é que esquecemos que esquecemos.
Milan Kundera nos diz que “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Um dos esquecimentos que interessa ao historiador é justamente o esquecimento das línguas esquecidas, seguindo a proposta de Deleuze, para quem “aquilo que se opõe à memória não é o esquecimento, mas o esquecimento do esquecimento”.
Línguas foram esquecidas, historicamente, e deixaram de ser faladas, por morte natural ou por glotocídio, mas em alguns casos de línguas mortas, como o Latim, não esquecemos que esquecemos. Em outros, sim. No Brasil, a escola e a mídia são absolutamente, totalmente omissas em relação ao tema.
Um brasileiro pode cursar o primário, o segundo grau e a universidade, qualquer curso, sem nunca ouvir sequer mencionar nada sobre a história das línguas. É como se a chegada dos portugueses, em 1500, trouxesse o Espírito Santo em forma de língua de fogo e todo mundo começasse a falar português. Nada se diz sobre o fato de que a primeira língua falada pelos brasileiros não foi o português. O processo de hegemonia da língua portuguesa no Brasil é, portanto, relativamente recente.
As pesquisas históricas nos últimos anos indicam que no século XVI eram mais de 1.300 as línguas faladas no território que hoje é o Brasil. Foram identificadas, gradualmente, ao longo do tempo, na medida em que a conquista se expandia. Durante todo o período colonial (1500-1822), os portugueses foram estabelecendo contactos com inúmeros povos. Perceberam, então, que se encontravam dentro de um arquipélago linguístico, formado por uma enorme diversidade de línguas que pertenciam a famílias e a troncos linguísticos diferentes. Esta percepção se ampliou quando nos séculos XIX e XX, as frentes de expansão do estado nacional neobrasileiro continuaram revelando novas línguas indígenas, cuja existência era até então ignorada.
Como resultado, mais de 1.100 línguas desapareceram do mapa do Brasil em cinco séculos. As que sobreviveram e que são faladas atualmente– cerca de 188 – foram reduzidas à “clandestinidade”, usadas somente dentro das aldeias. Foram proibidas nas escolas e os conhecimentos que guardavam e faziam circular oralmente foram discriminados pelo Estado através de suas políticas públicas.