CRÔNICAS

Conradinho Close Up

Em: 31 de Julho de 2011 Visualizações: 24199
Conradinho Close Up

Ao meu amigo e poeta, Luiz Pucu, com a lembrança dos velhos tempos

Chamava-se Konrad, com “K”, mas tinha uma puta cara de severino ou ribamar. É que nascera logo após a II Guerra Mundial, em Buriti dos Montes (PI). Seu pai, o velho Dodó, carpinteiro de profissão, ia registrá-lo como Dorgival Junior. Mas mudou de ideia no meio do caminho, quando parou na taberna do Léo para tomar umas talagadas de cocal. Lá, sobre o balcão, viu um exemplar do jornal da UDN, O Piauí, com o nome de KONRAD ADENAUER em letras garrafais. Encheu os cornos de pinga, recortou a manchete e foi pro cartório levando o nome impresso do chanceler alemão:

 - É Konrad. Com “K”.

O filho ficou sendo, pois, Konrad. Konrad Soares. Escapou, por pouco, de se chamar Churchill ou Stalin. Foi nas águas do rio Poti que o Quase-Churchill, aprendeu a nadar. Passou a infância entre Buriti dos Montes e Ipaporanga, contemplando, maravilhado, os paredões da garganta do rio, que formam um cânion com rochas de até 60 metros furadas pela correnteza. Seu pai o levou por trilha de difícil acesso, permitindo que os olhos do menino focassem a fenda geológica, o primeiro de tantos close ups de sua vida severina. 

- Já-pensou, já-pensou, um close up da Cachoeira da Lembrada?

Quando chegou no Rio, em 1966, para estudar, trazia consigo, gravadas na retina, muitas imagens de Buriti dos Montes, algumas panorâmicas, outras em travelling.  Eram tomadas de planos da procissão de Nossa Senhora do Monte Serrat, das novenas do mês de julho, dos arraiais e quermesses, das quadrilhas juninas e, evidentemente, close ups diversos com detalhes de cabeças, rostos, mãos.

- Já-pensou, já-pensou um close up da tia Deca, um plano fechado sobre a verruga que ela tem no nariz?

Geração Paissandu

Tudo isso ele me contou em longas conversas mantidas na Casa do Estudante do Brasil, na Esplanada do Castelo, atrás do Bob´s, no centro do Rio, onde morávamos juntos com outros estudantes pobres, nordestinos e nortistas, irmanados pela mesma fome atávica. Depois das aulas na FNFi –  eu cursava Jornalismo, ele Letras - passávamos horas discutindo cinema, a grande paixão de Konrad, que fazia qualquer sacrificio para não perder as sessões do Cine Paissandu, na Rua Senador Vergueiro, Flamengo.

Estávamos na década 1960-70. Foi ali, como integrante da dissidência pobre da chamada Geração Paissandu, que ele se familiarizou com os recursos da linguagem cinematográfica e se especializou em close up. Diante da expressão alegre ou triste, tensa ou descontraída, de qualquer pessoa, o Konrad piauiense não hesitava. Unia os dois polegares e os dois indicadores, formando um quadrado, colocava-o na altura do olho esquerdo, como se fosse uma câmera, focava no ponto que lhe interessava e se aproximava lentamente, dizendo:

- Já-pensou, já-pensou, um close up desse rosto?

Aquilo que começou como uma simples brincadeira, da qual todo mundo ria, virou mania, obsessão, e acabou por ser, em alguns momentos, algo inconveniente, quase doentio, que podia chatear as pessoas. Na exibição do filme A grande cidade, de Cacá Diegues, que acabara de sair do forno em meados dos anos 1960, ele viu a Nara Leão de mini-saia, achou que ela estava a tôa na vida, querendo ver a banda passar. Não resistiu. Armou a câmera com os quatro dedos, focou e partiu pra cima:

- Já-pensou, já-pensou, um close up do joelho da Nara.

Essa era a vantagem de pertencer à Geração Paissandu, permitia a convivência democrática do pé-rapado com a celebridade. Mas essa não foi a única vez que o destino cruzou o seu caminho com um membro da família Leão. Meses depois, quando já havia  perdido definitivamente o “K” de Konrad e o senso do ridículo, tornando-se o Conradinho, Conradinho Close Up, para ser mais preciso, topou com Danuza. Ela não conta essa história do seu livro de memórias "Quase tudo" (2005).  Era "quase", por isso ficou de fora. Foi assim.

Um dia, depois de uma passeata, ele vestiu sua farda de gala – um surrado macacão jeans unisex estilo boyfriend, calçou a alpercata de arigó de pneu usado, tipo ojota andina, e caminhou a pé do Castelo até o Flamengo, porque não tinha um puto pra pagar a passagem de ônibus. Ficou em pé na frente do Paissandu, esperando ver se encontrava alguma alma caridosa disposta a pagar sua entrada. Não queria perder o filme de René Allio, cujo roteiro se baseava em um texto de Bertold Brecht – Uma velha dama indigna.

Com Danuza

Conradinho Close Up já estava para desistir, quando desceu de um táxi, sozinha, Danuza Leão, causando um burburinho nas mesas espalhadas pela calçada do bar Oklahoma. Naquele momento, qualquer um daria razão ao Conradinho: ela, poderosa e bela na explosão dos seus trinta e poucos anos, estava implorando por um close up. Ele empunhou sua câmera imaginária formada pela união dos dedos, ajustou a lente de distância focal variável, enquadrou e clicou. Depois do superclose, saudou:

- Oi.

- Oi – respondeu Danuza, cujos olhos buscavam pelo recinto do bar, sem encontrar, alguém que se atrasara para o encontro marcado. Enquanto esperava, decidiu sentar-se.  Conradinho, como um soldado, se mantinha de pé a seu lado, com cara de cachorro abandonado. Ela convidou-o, então, a compartilhar sua mesa. Parecia se divertir com aquele nordestino simpático, visivelmente faminto, meio folclórico, Ronnie Von dos pobres, com longos cabelos lisos caindo sobre os ombros salpicados por uma camada branca de escamas de caspa.

Quando o garçon chegou, ela pediu um uísque e perguntou de Conradinho o que ele queria beber – era seu convidado. Acontece que o Restaurante Estudantil do Calabouço estava fechado, ele não havia almoçado. Nem piscou: pediu uma vitamina de abacate, no capricho, e um sanduíche americano.

Enquanto Danuza bebericava seu uísque e Conradinho traçava a abacatada espessa, conversaram sobre política, estética e cinema. Ele, é claro, defendeu o close up como a forma mais acabada de captar o pormenor, o detalhe, com capacidade de penetrar profundamente na alma da personagem, de revelar com força e intensidade dramática suas características. Descreveu, com muito fervor, o filme “O Nascimento de uma Nação”, comentou cada close de Griffith como algo “genial, genial” – adjetivo muito usado por aquela geração. Ela ouviu tudo com respeito e paciência.

Foi aí que chegou o amigo da Danuza, num carrão. Ela pediu a conta, pagou tudo e se despediu, deixando o troco sobre a mesa. Enquanto a musa se afastava, Conradinho e o garçon se mediram com os olhos, numa disputa silenciosa, mas louvado seja Deus, o piauiense foi mais rápido e deu um close up, embolsando a gorjeta, que era suficiente para pagar o cinema e ainda voltar de ônibus para a casa.

No dia seguinte, tomando banho no Posto de Gasolina da Av. Presidente Antonio Carlos porque a água da Casa do Estudante havia sido cortada, todo ensaboado com sabão de côco, ele se gabava de haver tomado um uísque com a Danuza Leão. E contava a história da velha que ficou viúva, fez amizade com uma prostituta e com ela ganhou o mundo, viajando e passeando pelas estradas e cidades. Sabia de cor os close ups de René Allio em Uma velha dama indigna.

Mais de quarenta anos depois, só lembrei da figura folclórica do Conradinho e de sua tese de que o close up torna visível aquilo que ninguém via, por causa das caras e bocas dos personagens que aparecem no noticiário sobre a corrupção no Ministério do Transporte e no DNIT.

- Já-pensou, já-pensou, um close up nas contas do Alfredo Nascimento, do filho dele, do Valdemar Costa Neto, das empreiteiras...

Por onde andará o Konrad piauiense, o Quase-Churchill? Saudades do Conradinho Close Up!

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18 Comentário(s)

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Haroldo Saboia comentou:
23/06/2022
Maravilha de texto do José Bessa
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Cris Amaral comentou:
07/08/2011
Querido Prof. Bessa, o "close up" de sua crônica, foi um delicioso passeio entre as diversas cenas narradas. Ameiii
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Luiz Pucú (1) comentou:
04/08/2011
Bessa, O que tinha esquecido do Conradinho veio à tona com a tua 'cronica in canto'. Numa ocasião, quando o CEU (Casa do Estudante Universitário) foi demolida junto com a Rua Visconde Maranguape (Lapa), ele ficou sem pouso e pediu abrigo na 'Ratolândia" (casarão tombado pelo'coletivo' da FUEC (Frente Unida dos Estudantes do Calabouço) num beço atrás da igreja da Lapa (vc conheceu?). Dormiu uma noite e sumiu antes do amanhecer.
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Luiz Pucú (2) comentou:
04/08/2011
Encontrei o Conradinho mais tarde e ele foi categorico: - Falta close up naquele ninho de rato!!! Numa madrugada de debates no Paissandu ele fez uma pergunta tão estranha ao Glauber que produziu uma risada de mais de meia hora. Personagem bíblica que gostava de contar em detalhes o "encontro com Nara" do jeito que você contou. Paidégua!!!! LP
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PÉ DE BICHO comentou:
04/08/2011
suas crônicas são maravilhosas. esses retirantes, que chegam em nossa terra com uma mão na frente e outra nas coisas da gente, deveriam ir embora, ter vergonha. não é diferente eduardo braga, ronaldo tiradentes, cabo pereira etc...todos fudidos e agora milionários. o pior de tudo isso é que ainda tem gente apoiando esses larapios. cabocada vamos abrir o olho.
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Luiz Pucú comentou:
04/08/2011
Bessa, O que tinha esquecido do Conradinho veio à tona com a tua 'cronica in canto' . Numa ocasião, quando o CEU (casa do estudante universitário) foi demolida junto com rua Visconde Maraguape (Lapa) ele ficou sem pouso e pediu abrigo na 'Ratolândia" (casarão tombado pelo'coletivo' da FUEC (Frente Unida dos Estudantes do Calabouço) num beço atrás da igreja da Lapa (vc conheceu?). Dormiu uma noite e sumiu antes do amanhecer. Encontrei-o mais tarde e ele foi categorico: - Falta close up naquel
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Evando Mirra comentou:
03/08/2011
Ah, Riba, que saudade! Também vi os close-ups da velha dama indigna do Paissandu. Conradinho tinha razão. Um abração
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Adjalma Jaques comentou:
02/08/2011
Há uma crença (ou será ciencia?) que diz que à medida em que vamos envelhecendo; nossas lembranças do passado vão se manifestando de forma mais clara. Espero que voce continue. Como vinho. Abraço.
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May Waddington comentou:
01/08/2011
Me emocionei. Além de ter sido uma caçulinha na época aúrea do Paissandu, hoje estou no Piauí! Por que não tenta divulgar a crônica em um site que se chama 180graus daqui de Teresina? Vou copiar um amigo daqui e ver se ele se interessa em procurar seu konradinho close up!
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Ana Stanislaw comentou:
01/08/2011
Esse teu gênero de crônica é um dos meus preferidos. Sempre muito bem escritas e com sabor de memória. Lindas e emocionantes. Simplesmente, demais, sensacional! Bjos.
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silvio Tendler comentou:
31/07/2011
linda crônica. Metade dessas histórias vivi usando camisa de marinheiro da casa Rumo ao mar, caça Lee ou Levi's japona e botinhas topa tudo da Alpargatas. Tá bom, eu era da geração Paissandu da esquerda festiva, vivia em Copa com papai e mamãe mas não era menos feliz. Abraços
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urda alice klueger comentou:
31/07/2011
Passei para todos os meus contatos de imprensa e para o meu grupo de distribuição de notícias da América Latina., Espero não levar uma bronca do autor! Muito bom! Urda Alice Klueger Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pale UFPR
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Claudia Santana Tamsky comentou:
31/07/2011
Muito boa Ribamar! É sempre bom ler tuas crônicas, mesmo morando tão londe de Manaus (moro em Boston,EUA). E ainda fico triste com tanto descaso, especialmente do Cabo Pereira, que migrou para Manaus com uma mão na frente e outra atrás. E hoje é um cara milionário. Fala-se que ele quer sair agora candidato pelo Rio Grande do Norte (depois de se fazer nas costas do Amazonas).
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vânia novoa tadros comentou:
31/07/2011
(cont,) tudo que uma família, a Nascimento pode desviar e negociar em termos financeiros usando os cargos que o chefe exerceu. Outro close interessante seria do pai Alfredo ensinando ao filho Gustavo o caminho do crime.
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Elson de Melo comentou:
30/07/2011
Camarada Bessa O close up nas contas do Cabo Pereira, o PSOL já pediu, resta o Senado ligar as Câmeras, ajustar o foco e exibir mais um filme da serie "os mais de 40 ladrões" . Será que Sarney, Renan e... Vão querer participar das cenas?
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vania tadros comentou:
30/07/2011
COMO EU SOU DAQUELE TEMPO POSSO USAR O TERMO GENIAL. GENIAL MESTRE A SUA CRÔNICA. O INTERESSANTE É CONSTATAR COMO UM FILME NÃO ACABA NUNCA. ELE COMEÇOU COM A PRODUÇÃO DO CINEASTA, CONTINUOU COM A VERSÃO CRIADA PELO CONRADO E OUTROS E QUE O ASSISTIRAM E CHEGOU A TER UM ESPAÇO NA TUA CR\ÕNICA. GENIALTAMBÉM É O CÉREBRO.QUANDO É QUE TU PENSAVAS EM 1960 QUE IRIAS ACIONÁ-LO PARA RELACIONAR A UTILIDADE DO CLOSE UP DO CONRAD NO RESULTADO DO GOLP DE 64? CLOSE BEM FECHADO EM TUDO QUE UMA FAMÍLIA PODE F
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Rosilene Bessa comentou:
30/07/2011
Ädorei Babá, só faltou completar a lista do close up com o nome da filha do Alfredo Nascimento, que antes de terminar medicina já era dona de hospital. bjs
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Mauro Souza comentou:
30/07/2011
Lindo o texto. Nos leva pela mão, num passeio pela sua memória, ao encontro de figuras que dão sentido de humanidade e da simplicidade da vida. É um super close up na alma.
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