CRÔNICAS

(VI) Manaus: a Paris dos Trópicos

Em: 23 de Março de 1987 Visualizações: 11567
(VI) Manaus: a Paris dos Trópicos
"Ninguém sofre tormentos e dores / Nesta terra dos nobres Manaos. /
Todo povo é feliz,  diz a História / quando vê entre gozos sem fim /
o progresso passar junto à  glória / Em seu belo e doirado coxim"
( Hino oficial de Manaus) 
As fábricas dos Estados Unidos e da Europa necessitavam cada vez mais de borracha como matéria-prima, cujo principal produtor era o Amazonas, que orienta toda a sua economia para atender à demanda crescente. Milhares de nordestinos, fugindo da seca e do latifúndio, migram para os seringais da Amazônia, usando Manaus como ponte entre a terra natal e a floresta. Muitos deles vão ficando pela cidade, empregados como força de trabalho nas obras públicas, no porto, na construção civil. Somados às imigrações em escala menor de estrangeiros, a população da capital cresce de forma espetacular, pulando de 5 mil habitantes em 1870 para 20.568 em 1900, e daí para 30.757 em 1900, ultrapassando em 1907 mais de 60.000 pessoas. Os nordestinos, portadores da língua portuguesa, vão mudar a composição majoritariamente indígena da cidade, que falava nheengatu. Manaus, embora sem ler e escrever, passa a falar português, enquanto um setor minoritário dominante se orgulha de falar francês.

A inserção da Amazônia na nova divisão internacional do trabalho exigia mudanças significativas em Manaus para que a cidade pudesse servir com eficiência os seus novos donos, que se encarregam diretamente de promover essas transformações de acordo com os seus interesses, que nem sempre coincidiam com os do conjunto da população.
O doirado coixim
Nesse período, o capital financeiro, a tecnologia e as empresas inglesas instalam os principais serviços públicos. Manaus é dotada de um sistema portuário moderno, de serviços de água encanada, esgoto e luz elétrica, de um sistema de coleta de lixo, de serviços telefônicos e de uma linha telegráfica subfluvial. Uma febre de construção toma conta da cidade, varrendo tudo aquilo que podia evocar as culturas indígenas.
Erguem-se prédios públicos monumentais como o Teatro Amazonas e o Palácio da Justiça, hoje marcos referenciais da cidade, a Biblioteca Pública, a Alfândega, a Penitenciária, o Mercado Aldopho Lisboa espelhado no Les Halles e o porto flutuante. Surgem estabelecimentos bancários e lojas com os nomes de Louvre’, ‘Au bon marché’, ‘A la ville de Paris’, além de mansões majestosas, vilas, palacetes, bares, restaurantes, hotéis e cabarés, contendo em seu interior móveis e tapetes europeus, pianos alemães, jarras de Sèvres e louça de Limoges.

Sobradões portugueses usam azulejos de inspiração colonial para o seu revestimento externo. Sobradinhos apresentam gradis na entrada e beirais de chumbos com motivos florais. Escadarias de mármore italiano, portas e janelas mouriscas, balcões gradeados, amplas varandas e biqueiras de bronze vão dominando pouco a pouco o centro da cidade. É realmente a "glória" e o "progresso" passando em seu "belo e doirado coixim". como canta o Hino Municipal composto à época (1906).
O governador Eduardo Ribeiro (1862-1900) executou um plano de urbanização que foi completado por alguns de seus sucessores: nivelou ruas, aterrou igarapés, projetou novas avenidas e bulevares, alinhou e calçou as principais vias, construiu pontes, praças e jardins, instalando neles coretos, estátuas, fontes e chafarizes importados da Europa. Manaus deixava de ser a terra dos igarapés e da floresta, como anunciava o hino da cidade, e dava costas ao rio expandindo-se em direção ao norte e ao leste. Se não removeu montanhas inexistentes, arrasou alguns morros, aterrando com eles diversos igarapés como o do Espírito Santo e o do Aterro, transformados nas duas principais avenidas da cidade até os dias de hoje.
No caso dos igarapés maiores, foram construídas monumentais pontes de pedra e ferro para permitir que a cidade se espalhasse além deles. A cidade deu as costas ao rio e expandiu-se em direção ao norte e ao leste. As antigas picadas que levavam às roças, transformadas depois em estradas, se tornaram avenidas como a Sete de Setembro e a Epaminondas.  
O professor Bradford Burns, da Universidade de Miami, que estudou esse período, considera que, em 1910, «Manaus alardeava com orgulho todas as civilidades de qualquer cidade europeia de seu tamanho ou mesmo maior». Mas o processo de urbanização no período da borracha teve seu lado também de « barbárie », porque grande parte dos moradores, que deixaram de viver como índios, não tiveram acesso aos chamados "bens da civilização".
Miranda Correia, em seu "Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro", define a nova paisagem arquitetônica como uma variação entre "um neoclássico um tanto romantizado até às inovações do art-nouveau". Para Mário Ypiranga, na "Fundação de Manaus", trata-se de um estilo arquitetônico "insolente e apressado", arremedo entre outros do isabelino, do árabe, do espanhol e do português.
O processo de urbanização de Manaus durante o período do "ciclo da borracha" não teve, no entanto, apenas o caráter idílico emprestado a ele por alguns autores, que fazem a apologia da dependência ao capital estrangeiro e consideram nostalgicamente que qualquer tempo passado foi melhor. O traçado urbano de Manaus, em realidade, foi se ordenando em função de privilégios de fortuna de uma minoria. Portanto, ao exaltar o "boom" da borracha sem um olhar crítico sobre ele, se está de uma certa forma exaltando a opressão de que se nutria a opulência dourada.
O escritor Márcio Souza, analisando esse período, afirma que "Manaus foi a primeira construção kitsch brasileira, uma cidade de sonho e delírio (...) que não é verdadeiramente cidade, mas decoração, cenografia, palco ideal para a reificação colonialista".
O "progresso" só passou em seu belo e dourado coixim para alguns: uma minoria. Para a maioria da população - justamente aquela que suou na construção da cidade, ele significou uma degradação das condições e da qualidade de vida.
A escura favela
O Cadastro Predial de Manaus publicado no "Mensário de Estatística" (n° 31) revela que existiam 10.358 casas, menos da metade era de alvenaria, enquanto 5.710 eram consideradas como casebres, estâncias, barracões e casas de taipa ou de madeira. O sociólogo André Araújo, que desde 1919 se preocupou com a questão da habitação no Amazonas, aplicou questionários, levantando dados sobre aproximadamente 2.000 casas de onze bairros pobres de Manaus. O seu trabalho revelou que a "Paris dos Trópicos", ao procurar negar a sua identidade para buscá-la no "outro", não percebeu que estava cercada por uma banlieu, uma periferia ocupada por nordestinos famélicos, índios destribalizados e cabocos desempregados, morando em infectos mocambos. Mais de 60% das casas eram de taipa nua, cobertas de zinco ou de palha, pequenas, de chão batido e socado, sem esgoto, localizadas perto dos charcos e alagadiços, que periodicamente invadiam as habitações. A maioria dessas casas sem água encanada possuía um só quarto, mas abrigava de 7 a 9 pessoas, dormindo em redes, uns sobre os outros. A cidade, portanto, continuava sendo edificada contra os interesses da população amontoada em casas úmidas no inverno e quentes no verão, pouco arejadas.  
Havia, pelo menos, duas Manaus – a dourada e a favelada. Ambas sofrem as consequências da crise da borracha. Durante a guerra de 1914-1918, com a depressão econômica, « mais de um milhar de prédios residenciais foram desalugados », criando a imagem de uma cidade-fantasma, conforme o ex-prefeito Agnello Bittencourt, em seu livro « Fundação de Manaus: pródromos e sequências ».
O serviço público entra em colapso, os edifícios ficam em ruínas, sem que os seus proprietários ou o Estado procurassem mantê-los de pé. Desse período da Paris dos Trópicos, sobraram 250 unidades inventariadas pela Fundação Pro-Memória, consideradas de interesse para a preservação. Mas tombados pelo Patrimônio Histórico apenas o Teatro Amazonas (1966), o Reservatório do Mocó (1985), o Mercado Público (1986) e o Conjunto do Porto de Manaus (1987). A Zona Franca de Manaus (ZFM), criada em 1967 pela ditadura militar implantada no país, vai acelerar o processo de demolição dos prédios construídos no período dourado da borracha.

(Na próxima semana, o último artigo da série: MANAUS; A MIAMI BRASILEIRA).

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