CRÔNICAS

O pé do Peduto: sandálias no Teatro Amazonas

Em: 25 de Fevereiro de 1992 Visualizações: 13821
O pé do Peduto: sandálias no Teatro Amazonas

Todo mundo sabe o que é um pé. Um pé é um pé.

E um duto? Você sabe o que é um duto? Um duto é um canal que conduz alguma coisa de um lugar para o outro. Em geral, é formado por uma tubulação que leva fluídos a grandes distâncias. Tem aqueduto: conduz água. Tem oleoduto: transporta óleo. Gasoduto: serve para levar o gás. Tem viaduto e tem peduto.

Peduto, portanto, é o duto do pé, aquilo que transporta o pé, como sapato e chinelo, substantivos masculinos. Mas tem também pedutos que são substantivos femininos como alpercata, sandália, sapatilha, bota e botina.

O Arnaldo, de sobrenome Peduto, foi contratado como bailarino do Teatro Amazonas. Bailarino usa sapatilha. Mas como o Arnaldo Peduto é o único bailarino do mundo que exerce a função de porteiro, ele faz um gênero especial.

Eu me explico. De passagem por Manaus, ganhei um convite para assistir, na quarta-feira passada, a apresentação do pianista Voytek Matusheviki. Pra falar a verdade, eu nem sei quem é esse cara de nome impronunciável, mas fiquei interessado porque ele iria interpretar obras de compositores como Vila-Lobos, Chopin e outros representantes da música erudita.

Acompanhado de dois amigos, professores da Universidade (UA), me apresentei pouco antes das 21h na porta principal do Teatro Amazonas. Arnaldo Peduto, como porteiro, me examinou da cabeça aos pés. Quando os seus olhos baixaram, ele percebeu que o duto do meu pé não era sapato, mas sandália. Pestanejou e tremelicou horrorizado. Com o dedinho médio da mão direita girando como o limpa pára-brisa de um carro, afirmou arrogantemente, autoritariamente:

- Não, não e não! Não pode! De sandália, não pode entrar.

- Por que não pode? Perguntei, disposto sinceramente a compreender. A pergunta parece que o irritou ainda mais:

- Não interessa. Eu cumpro ordens.

Os soldados nazistas que mataram milhares de judeus e os torturadores das prisões brasileiras também cumpriam ordens imbecis, eu tive vontade de dizer. Mas não disse. Em vez disso, pedi-lhe uma razão - uminha só - que justificasse tal ordem. Mas o Peduto não tinha condições de dar uma explicação racional. Não estava preparado para o diálogo.

- O convite não diz que está proibido de entrar de sandália, nem exige sapato. Não tem nada escrito.
Onde está essa ordem?

- Não interessa. Não vai entrar e pronto.

Para não ficar batendo boca com um subalterno, que parecia haver comido caroço de tucumã, e querendo impressioná-lo, eu solicitei:

- Quero falar com o diretor do Teatro. Me chama o Josetito Lindoso.

O lance do "você-sabe-com-quem-está-falando" também nào colou. O Peduto se mantinha irredutível. Respondeu com prepotência:

- O Josétito está viajando. Aliás, a ordem para não permitir que se entre de sandálias no Teatro Amazonas é dele. E você não vai entrar. NÃO VAI ENTRAR MESMO!

Ah, leitor, aí deu o maior "ó" do bobó. Resolvi ser tão boçalóide quanto o Peduto e entrei na sua, digamos assim, lógica cafajeste. Apelei pra ignorância. Levantei o pé na altura da cintura e exibindo as sandálias, esnobei:

- Escuta aqui, cara. Elas foram compradas em Paris. Em Paris, viu? Só em Montparnasse, mais precisamente numa loja na rue de Rennes, existem sandálias desse tipo.

A informação era absolutamente verdadeira. Mas nem isso o convenceu. Apontei pra igreja de São Sebastião:
- Quer dizer que os capuchinhos não podem entrar?
 
Ele respondeu:
- Não, não podem.
 
Então, berrei que ele era um colonizado mental, e fui embora, com meus dois amigos. Confesso que humilhado e impotente diante da burrice e da estupidez humana.

Fiquei batendo papo com os dois amigos no bar do português da esquina até o final do espetáculo. Pude observar os felizardos que saíram do recital de piano. E pasmem! Pelo menos um deles, um dos gringos da Expedição Roosevelt, saía do Teatro Amazonas com uma sandália. De borracha. E aberta. A minha era de couro. Fechada. O Peduto me barrou, mas deixou o gringo entrar.

Por que um cidadão amazonense não pode entrar no Teatro Amazonas com uma sandália? O que confere a um bailarino, travestido de porteiro, o poder de barrar alguém que vai em busca de lazer e de cultura? Professor de educação física que engana otários com sua Academia de Ginástica, sua missão não é a de incentivar a cultura, mas de bloquear o acesso a ela.

Num clima tropical como o nosso, só uso sandálias. Sem querer impor a minha forma de ser aos outros, acho que é mais cômodo, mais confortável e mais limpo. Os pés, como as idéias, devem ser livres e arejados. Não tenho calos e não cultivo chulé.

No entanto, não faço da sandália uma profissão de fé, nem uma forma de afirmação hipponga. Contesto a sociedade não com os pés, mas com a cabeça. Por isso, nos lugares em que se exige sapato, se me interessa ir, faço o sacrifício. Pareço um menino que vai fazer a primeira comunhão, mas calço os sapatos. Sem problemas. Não quero chocar ninguém. Sou um cidadão comum. Pago os impostos. Não piso na grama. Não estaciono em cima da calçada. Respeito os sinais de trânsito. Vejo telenovelas. E, como todo amazonense decente acho o Amazonino o fim da picada.

No convite para o espetáculo, não havia nenhuma referência quanto ao traje. Mesmo correndo o risco de ser interpretado como esnobador, posso citar todos os lugares onde entrei de sandália. Um deles foi o Ópera de Paris, num mês quente de julho. Lá, os bailarinos bailam, estão no palco, usando criativamente os próprios pés, e não na portaria fiscalizando burocraticamente os pés alheios. Imagino que os senhores conselheiros do Conselho Estadual de Cultura não estão de acordo com esta babaquice do Peduto. Não posso acreditar que um Joaquim Marinho (nome de rua, Peduto!), um Narciso Lobo (nome de sub-reitor, Peduto) e um Luiz Maximino (nome de edifício, Peduto!) queiram excluir da fruição dos bens culturais aos indivíduos decentemente (e ecologicamente) portadores de sandálias.

Não queria limitar a discussão a esse episódio particular, que me afetou. Nem quero importunar os leitores com questões pessoais. O que interessa é toda a carga ideológica que existe sustentando uma tal "política cultural". Não fui o primeiro, nem o único a sofrer este tipo de discriminação. Taí o Pereira que não me deixa mentir. O Pereira, leitor, você conhece muito bem. Ele ganhou o primeiro lugar no Festival de Música Estudantil de 1986 e teve sua música veiculada durante três meses seguidos numa TV local. Pois bem, o Pereira preparou o seu show "Clave de Lua". Estava tudo acertado para ser apresentado em setembro do ano passado no Teatro Amazonas.

No entanto, o Pereira é um excelente músico, mas não se amarra em sapatos e nem em formalidades vazias de conteúdo. Por esta razão, os pedutos da vida vetaram a apresentação do Pereira, uma importante expressão da nossa música, que já foi aplaudido por platéias de Belém e Salvador.

Leitor, se você está solidário, quer se vingar da pedutice dominante e passar momentos de intenso prazer, então calce as suas sandálias e vá, amanhã, quarta-feira, às 20:00 horas ao Teatro do Sesc. Lá você poderá assistir o showzaço do Pereira, vetado pelo Teatro Amazonas. (Se quiser, pode ir de sapato, que não será barrado).

O que eu queria mesmo era discutir a política cultural do Estado e o papel do Teatro Amazonas, sua relação com o público, com os artistas, com a chamada cultura erudita e com a cultura popular. Acabei gastando mais chumbo do que devia com o pobre do Peduto. Ele é apenas um pequeno parafuso de uma engrenagem maior. Essa engrenagem é que deve ser questionada.

Mas o leitor certamente entenderá essa crônica como um desabafo de alguém humilhado pela mediocridade e pela prepotência. E já que chegamos até aqui, convidamos todos os leitores a se levantarem, colocarem as mãos sobre o peito, entoando juntos:

- Peduto sem pé é duto
- Peduto sem duto é pé.
- Tirando o pé de Peduto
- Peduto não tem chulé?
 
P.S. - Essa crônica rendeu várias matérias nos jornais de Manaus, que entrevistaram os membros do Conselho de Cultura. Nenhum deles defendeu a proibição de entrar com sandálias no Teatro Amazonas. No Caderno Criação do jornal A Crítica, o jornalista Gilson Monteiro publicou uma matéria de página inteira.
 
 
P.S.  - Foto do quadro do Teatro Amazonas do artista plástico Roberto Bessa. Ilustração do Fernando Brum

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3 Comentário(s)

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Maria Das Graças De Carvalho Barreto comentou:
28/11/2017
Em algumas ocasiões a ignorância faz rir. Lembro daquele episódio em que só entrava as filhas dos coronéis de longo, luvas até a metade do braço, vestido longo e todas da Globo. KKKK e nós assistindo do lado de fora a quadragésima inauguração do teatro, cantando porto de lenha.... lembras disso Bessa?
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Ribamar Bessa comentou:
15/08/2010
Oi Carlos,Voce tem razão: com certeza o peduto fez mais pela dança no Amazonas que o meu chinelo fedorento. É uma pena que ele, Peduto, tenha exercido um poderzinho de porteiro para evitar o acesso de pessoas de chinelo a sua arte. Não questiono o bailarino, questiono o porteiro. De qualquer forma, apesar de discordar de você, por respeito, postei seu comentário.grande abraçobessa
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Carlos Pereira comentou:
14/08/2010
Achei infeliz este comentário. O que o Arnaldo Peduto fez pela dança no Amazonas é maior que a porcaria do seu chinelo fedorento e frances. Regras devem ser respeitadas e não se deve julgar as pessoas que estão ali para cumprí-las. O pior da velhice é quando se chega a idade da razão.
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