(De São Francisco de Paula – RS) – Daqui, do interior do Rio Grande do Sul, no meio de chuvas e inundações, escrevo, celebrando uma grande vitória do santo guerreiro contra o dragão da maldade. Interrompo o curso que estou ministrando para algumas dezenas de professores guaranis do RS, PR, SC, RJ e ES para ler a notícia de que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, há alguns dias deu razão aos índios Guarani na luta que se vem arrastando contra a empresa Itaipu Binacional.
No curso de formação de professores guarani, neste momento, estamos trabalhando com aquilo que a antropóloga Berta Ribeiro chamou de “narrativas gráficas”, os peruanos, nos Andes, chamam de “cuentos pintados” e os colombianos de “territórios narrados”. São histórias que são contadas a partir de desenhos. Os professores bilíngües que seguem o curso recuperaram alguns contos tradicionais guaranis, de rara beleza, com ensinamentos sobre a vida, a relação com a natureza e entre os homens, a resistência, que um dia ainda conto nesse espaço.
Agora, o que interessa comentar – até mesmo porque todos aguardamos a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a área indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima – é a interpretação dada pela Justiça Federal, na instância regional, sobre o conceito de ‘tradicional’.
A Constituição Brasileira determina que são terras indígenas todas aquelas terras ocupadas tradicionalmente pelos índios. “Tradicionalmente” aqui significa o tempo antigo de ocupação, mas – segundo a interpretação dos juízes do TRF – quer dizer também a forma de ocupação. Ou seja, se os índios guaranis – como agora no sambaqui de Camboinhas, Niterói (RJ) – estão ocupando uma área na qual vivem de acordo à tradição, não é necessário provar que seus antepassados Guarani viveram necessariamente nesse lugar. O que importa é a forma como eles estão vivendo. É isso que caracteriza a ocupação tradicional.
Vou agora mesmo dar minha aula e deixo o leitor aqui com a notícia que foi divulgada sobre o assunto, em nota do CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Ela comenta a luta de três aldeias guaranis, que constituem umas das poucas terras indígenas não inundadas pela construção da hidroelétrica de Itaipu. Que o leitor faça bom proveito dessa notícia alvissareira para os índios e para o Brasil, porque dessa vez a Justiça se fez de acordo com o que é justo e não protegendo quem tem mais grana. Os juízes foram unânimes na decisão.
O TRF e os indígenas
O Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, com sede em Porto Alegre (RS), por unanimidade, negou provimento à ação impetrada pela empresa Itaipu Binacional contra os Guaranis que vivem nas aldeias Tekoha Marangatu, Tekoha Porá e Tekoha Karambey, no município de Guaíra, no oeste paranaense.
Com isso, o Tribunal confirmou a decisão da Justiça Federal de Umuarama, PR, de dezembro de 2007, em relação à ação em que a Itaipu Binacional pedia a reintegração de posse das áreas de terra onde estão localizadas as três aldeias. Na sentença, o Juiz Federal defendeu enfaticamente o direito dos Guarani sobre suas terras tradicionais, afirmando:
"Ante o exposto, julgo improcedente o pedido possessório formulado pela ITAIPU BINACIONAL e declaro que as terras ocupadas pelos índios Avá-Guarani nos lotes abordados (Tekoha Porá; Karumbey e Tekoha Marangatu) constituem terras indígenas tradicionalmente ocupadas, não podendo ser objeto de domínio ou posse, senão pelos próprios índios, conforme disposição constitucional, independente de prévia demarcação".
Na decisão do TRF 4ª Região, publicada em 27 de outubro, os desembargadores citam parte da sentença da primeira instância:
"Atualmente as ocupações indígenas em Guaíra concentram-se em três lotes:
1) Tekoha Porá (sul);
2) Karumbey (norte) e
3) Tekoha Marangatu, na Faixa de Proteção.
É sobre a área desses três lotes que a requerente postula a proteção possessória. Todavia, segundo o estudo antropológico em questão, os dois primeiros lotes são provenientes de uma mesma antiga aldeia indígena, invadida pelo crescimento da cidade, que restringiu a extensão do território anteriormente ocupado pelos índios, envolvendo-o na zona urbana. Portanto, a área em questão representa terra tradicionalmente ocupada pelos índios, já que originária de uma só terra indígena, atualmente transformada em dois lotes de cerca de 2 has., mas que certamente alcançava uma dimensão muito maior, e que acabou sendo restrita ante o crescimento da área urbana de Guaíra".
Citam ainda parte do parecer do representante do Ministério Público Federal, segundo o qual "o argumento de que o alcance da norma inscrita no art. 231 da CF deve restringir-se às terras atualmente ocupadas por silvícolas não prospera. O art. 231 da Constituição deve ser interpretado segundo a lição de José Afonso da Silva: 'o tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam, etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições".
Assim, o conceito de posse indígena remete à ocupação de forma tradicional. Se os índigenas foram expulsos ou afastados da área no passado, isso não pode ser obstáculo ao reconhecimento do direito que possuem.
O Cimi comemorou, com os Guaranis mais esta vitória frente à poderosa e intransigente empresa Itaipu Binacional. Durante a construção da Hidroelétrica Itaipu, na fronteira do Brasil com o Paraguai, no rio Paraná, os direitos dos povos indígenas foram absolutamente desrespeitados, sendo que dezenas de Tekoha (território tradicional) foram cobertos pelas águas inundadas. Como se não bastasse, vergonhosamente, a Itaipu Binacional continua sua "cruzada" anti-indígena tentando, mais uma vez, inclusive judicialmente, expropriar os Guaranis de suas terras tradicionais, alegando, sem legitimidade, ser "proprietária" dos pequenos pedaços de mata que restaram ao longo do rio alagado.
Essa decisão faz a gente ter esperança de que o Poder Judiciário, às vezes, pode aplicar justiça.