CRÔNICAS

A reza de dona Elisa e os vereadores ressarcidos

Em: 22 de Março de 1994 Visualizações: 7362
A reza de dona Elisa e os vereadores ressarcidos

.Se não fosse um sacrilégio, eu diria que dona Elisa, em suas orações, fala com Deus de igual para igual, com a mesma intimidade com que compra banana na Leonor. Chova ou faça sol, diariamente, ela dedica, no mínimo, uma hora contada no relógio para suas preces.

Curioso, um dia lhe perguntei:

- Como é que a senhora reza? É Ave-Maria, Pai-Nosso, Creio-em-Deus-Pai? Quantas jaculatórias?

Ela me olhou com seus olhos azuis e respondeu:

- Não, meu filho. Não vou encher o saco de Deus repetindo o que ele já conhece. Cada dia crio uma oração nova, diferente. Eu converso com Ele.

Tema da conversa

As orações são improvisadas, mas o roteiro é sempre o mesmo. Os primeiros quinze minutos são dedicados a pedir pela paz no mundo, o que deixa dona Elisa prisioneira do noticiário da TV. Os massacres na Bósnia e a matança de palestinos no Hebron, anunciados no Jornal Nacional, são motivos, eu diria, quase de um "puxão de orelhas" em Deus.

- Como é possível tanta barbaridade? - ela cobra d´Ele.

Depois dona Elisa reza pela paz no Brasil, pede para que não se repitam episódios como o da chacina da Candelária, no Rio, quando oito jovens sem teto, do quais seis menores, foram assassinados por policiais militares, ou do sequestro do cardeal de Fortaleza, dom Aloísio Lorscheider.

Desta forma, ela segue, mais ou menos, o roteiro do PCdoB, quando faz análise de conjuntura: primeiro o contexto internacional, depois o nacional, para chegar no local. Implora para que Deus ajude a acabar com a fome, a miséria, a corrupção e a pouca-vergonha no Amazonas e que ilumine os nossos governantes, o que é - convenhamos - jogar um enorme pepino no colo do Criador. Como iluminar o Amazonino Mendes, meu Deus?  Nem toda Hidrelétrica de Itaipú daria conta de tal tarefa. Se a reza fosse minha, eu pediria outra coisa para o Amazonino. Mas, enfim, o papo é dela.

Finalmente o último quarto de hora é dedicado aos assuntos paroquiais e familiares. Dona Elisa pede conforto para sua vizinha portuguesa, dona Vera Margarida, para seu Agostinho e demais doentes da Pastoral da Saúde (sem direito a ressarcimento médico), a quem ela visita duas vezes por semana, além de alegria e discernimento para seus alunos de catecismo. Ela ora para que Deus conserve sempre seus filhos (dela, mas DELE também) pobres (por isso só tem pé-rapado), mas felizes e gozando saúde. Entram aqui alguns temas conjunturais. Pede pela saúde do Raimundinho Bessa, seu primo querido, e para que Deus dê juízo ao Pão Molhado.

Faltando dois ou três minutos para se despedir, as orações deixam de ser conversa para se transformar em fofoca com Deus - afinal ninguém é de ferro - onde entram seus netos, desde a gripe do Piriri, passando pelo vestibular do Dudu e do Fábio, a falta de apetite do Marcelinho, os namoros do Pão Molhado que não segue o exemplo do seu tio, ferrenho monogâmico, até o assalto diário, sistemático e implacável que a Preta, sua filha, faz à sua garrafa térmica. Algum (a) leitor (a) pode achar exagero, mas acho que a Preta tem esse apelido de tanto tomar café. Da dona Elisa.

O "Lá-do-Alto"

 

Para não ser acusado de estar transformando definitivamente a coluna num espaço familiar e privado, sugiro que me perguntem:

- Quem está completando 77 anos amanhã? Quem? Quem?

Bom, eu não ia falar nada, mas já que insistem, respondo:

- Ela, dona Elisa, 13 filhos, 46 netos e alguns bisnetos. Lúcida, ativa e poderosa. Inteligente e sensata. Ela é "assim ó" (esfregando os dois dedos indicadores) com o "Lá-do-Alto". Aquele que está por cima de toda a carne seca, cujo reino não é deste mundo.

Dona Elisa vai passar o dia do seu aniversário, militando em visitas a doentes e em reunião da Campanha da Fraternidade. À noite, vai dedicar o seu rosário, orando para que o seu filho não seja atingido pelas pragas dos vereadores ressarcidos de Manaus, que embolsaram dinheiro público.

E por falar em ressarcidos, desde a semana passada estou para comentar duas cartas: uma do Jelder Picanço e a outra do Pedro Missioneiro.

Duas cartas

Escreve Jelder:

"Moacir Marques era suplente na época do ressarcimento, mas foi um dos dos que mais se beneficiou com a corrupção. Esse vereador, que foi acusado até de estuprador - fato amplamente noticiado pela imprensa - também andou por ginecologista (Veja em anexo Empenho 737), além de tratamento odontológico na cidade de São Paulo, talvez até com passagem paga pela Câmara Municipal, o que seria interessante investigar".

"Esse ex-vereador também fez requerimento pedindo a volta do dinheiro, embasado em artigo, que é próprio do funcionário, o que não era seu caso (Veja requerimento de 4 de maio de 1991 no Empenho 343)".

"Observe que a ODONTOSERVIS ganhou muito dinheiro público, pois quase todos os recibos são emitidos por essa empresa. Mas há um rumor por aqui que esses recibos e até o carimbo faziam parte da turma da máfia, que os tinha já impressos em suas gavetas. O trabalho era só o de preencher. Quanta vergonha! Tudo isso com o pleno consentimento e cumplicidade do larápio César Bonfim, cujo mandato - pode crer - só vai ser cassado quando faltar um mês para seu término. Quem viver, verá. Atenciosamente". E aí vem a assinatura do missivista.

Jelter envia para a CPI do Taquiprati requerimentos, recibos e notas de empenho.Os requerimentos dão entrada num dia, no mesmo dia são conferidos pela Edinora, no mesmo dia são autenticados pelo Demasi, no mesmo dia o pagamento é autorizado por César Bonfim, presidente da Câmara,  e no mesmo dia o Moacir Marques embolsa a grana.

Como eles são rápidos no gatilho! Como são vorazes!

No dia 5 de março de 1991, Moacir abocanha um milhão e meio de cruzeiros, na época 6.659,56 dólares. No dia 27 de março abiscoita mais três milhões de cruzeiros, equivalente a 12.597,63 dólares.

Cabral avistou o Monte Pacoal no dia 22 de abril de 1500, mas só no dia seguinte meteu o pé em terras brasileiras. Moacir Marques avistou a grana dos ressarcimentos no 22 de abril de 1991 e no mesmo dia meteu a mão em Cr$ 3,227.600,00, o que na época valia 12.530,01 dólares. Finalmente, no dia 4 de maio de 1991, nosso bravo Moacir é ressarcido em um milhão e oitocentes mil cruzeiros (6.872,06 dólares).

Tudo somado, o total de ressarcimentos que o povo de Manaus pagou em apenas três meses a Moacir Marques atinge a soma de US$ 38.759,26 dólares, o que em valores de hoje daria mais de Cr$ 31 milhões. É muita grana para quem estava peidando de saúde.

A CPI dos Ressarcidos não deu um pio sobre essas falcatruas. E esses caras até hoje estariam mamando nos cofres públicos não fosse a corajosa denúncia do vereador Praciano, seguida de Ação Popular de Pedro Missioneiro, justamente o autor da segunda carta.

Ação Popular

Ameaçado de ser processado pelo ex-vereador e atual deputado Miquéias Fernandes, o nosso Missioneiro enviou-nos uma carta longa, bonita e bem escrita, que contém uma lição de cidadania. Reproduzo aqui alguns trechos:

"Talvez aquele deputado (Miquéias) não saiba que ação popular é o único meio que dispõe qualquer cidadão para coibir abusos ou anular atos lesivos ao patrimônio público, como comprovadamente o foram os ressarcimentos. A Ação Popular é uma ferramente tão importante que aparece na Constituição Brasileira, no capítulo dos "Direitos e Garantias Individuais do Cidadão".

Ele explica na carta que "o cidadão não tem qualquer despesa caso perca a ação, a menos se agir de má fé, o que não foi e nem é o meu caso" - acrescenta.

"Seria oportuno, isso sim, o aludido deputado apresentar um projeto onde a Ação Popular fosse obrigatoriamente difundida para estimular a sua prática, pois embora seja um instrumento muito valioso, ainda é desconhecida da maioria da população, além do que, para impetrá-la, é necessário o trabalho de um advogado, ficando seu acesso minguado à maior parte do povo, hoje sem recursos até para comer".

"A Ação Popular, meu caro Bessa, pode ser comparada a uma espada de Dâmocles pairando sobre a cabeça dos políticos, principalmente daqueles que, a exemplo dos vereadores ressarcidos, abusam do dinheiro dos contribuintes. Talvez essa seja a razão pela qual nossas autoridades não têm interesse em divulgá-la. Por mim, o alcance jurídico da Ação Popular seria ensinado até mesmo nas escolas primárias. Com certeza, a mentalidade do povo seria outra"

Sobre a Resolução 002/84, Missioneiro afirma: "A Justiça ainda não a considerou legal. Quem assim definiu foi tão-somente um membro do Poder Judiciário, em primeira instância. A palavra final da Justiça ainda está por vir. Aguardemos! A única justiça realmente feita até agora a respeito daquela Resolução foi a sua revogação pela própria Câmara, que reconheceu os abusos que até então vinham sendo cometidos. O projeto, de autoria do nobre vereador Jefferson Péres, foi aprovado por unanimidade por seus pares. Só com isso, eu já estava satisfeito, pois minha Ação Popular foi a causa do fato, resultando em substancial economia aos cofres da Municipalidade".

Grande figura, esse Pedro Missioneiro! Sua existência, leitor (a), nos prova que nem tudo está perdido. Desconfio que em suas orações dona Elisa, além de rezar para que o Pão Molhado seja virtuoso como o seu tio Taquiprati, está pedindo que Deus proteja, dê força e ilumine cidadãos como Pedro Missioneiro, Praciano e Jefferson Péres.

P.S. - Publicada originalmente com o título DONA ELISA. Essa foi a forma que encontrei para celebrar seus 77 anos de vida bem vivida sem deixar de lado a luta.   

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1 Comentário(s)

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Erika Dantas comentou:
03/12/2018
Lembro bem desses olhos azuis, do sorriso meigo e do olhar apaixonado pelas histórias da vida. Lembro bem do tio Raimundinho, do seu sorriso largo r das sandálias amazonenses. Lembro quando meu vô Bessa ligava para tia Elisa e lhe mandava beijos de cupuaçu, de morango, de chocolate. Primeiro perguntava se queria de sorvete ou algum outro doce, aí, dependendo da resposta eram enviados beijos de muitos sabores.... Bateu uma saudade de algo que ficou lá trás. Saudade boa de tempo de criança onde receber a família e ouvir suas histórias eram sinal de um dia feliz.
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