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"Porto de lenha / Tu nunca serás Liverpool /
Com uma cara sardenta / E olhos azuis".
(Aldísio, Torrinho e Wandler Cunha)
Manaus, porto-de-lenha, um dia será Liverpool sim senhor! Por pouco tempo, mas será. Manaus já tem tudo o que Liverpool tem. Ou quase tudo. Que os poetas Aldísio, Torrinho e Wandler me perdoem, mas apesar de toda a beleza da letra e da música, a profecia deles está equivocada.
Vejam só: a cidade inglesa fica à margem direita do rio Mersev. E daí? A capital do Amazonas fica à margem esquerda do rio Negro. Uma tem o primeiro cais flutuante do mundo, a outra o segundo, o Ródo. Liverpool, imitando Londres, exibe o seu "Convent Garden" para a apresentação de ópera e balé. Manaus, copiando o "Opera" de Paris, tem o Teatro Amazonas. Os liverpuenses bebem água de um gigantesco reservatório construído no século passado no rio Vyrnwy. Os manauaras temos a Caixa D´Água, ao lado do cemitério. Eles tem Margareth Tratcher - a dama de ferro. Nós, em compensação, temos Amazonino Mendes - o homem de borracha.
Um espírito-de-porco objetar-vos-á:
- E as meninas de cara sardenta e olhos azuis? Isto não existe em Manaus.
É verdade, é verdade, mas basta pintar umas sardas artificiais na vereadora Conceição Lins, na secretária de estado Betty Suely e na juíza Alzira Ewerton. Depois, colocamos nelas umas lentes de contato e perucas de trancinhas louras, transformando-as em guias de turismo. Com boa vontade, o problema está resolvido.
- E a estátua do Almirante Nelson? Manaus não tem um monumento similar - continuará contestando, triunfante, o mesmo espírito-de-caititu.
É verdade, é verdade. Em todas as cidades da Inglaterra existem estátuas do herói que, em 1805, derrotou Napoleão Bonaparte na batalha de Trafalgar, mostrando que quem mandava no mar eram os ingleses. Em Manaus, nelson de pitibiribas! Mas tal diferença deixará de existir brevemente, com a construção de um mirante no encontro das águas, onde figurará uma estátua gigantesca de Ajuricaba, dominando os dois rios. Desta forma, ficaremoa equiparados a Liverpool, pelo menos por um breve espaço de tempo.
Digo por um breve espaço de tempo, mas esse projeto do governador Amazonino Mendes foi defendido pela dupla caipira Nonato Chitãozinho Lopes e Washington Chororó Régis, como "um monumento eterno". Os dois, que nunca defenderam os índios de carne e osso invisíveis hoje em nossa cidade, recitaram como num jogral a seguinte frase publicada nos jornais:
- "A estátua de Ajuricaba será o símbolo permanente para o mundo de que a Amazônia não aceita viver acorrentada e sem liberdade".
Minha santa periquita do bigode louro! Quanto besteirol! O que é que é permanente em termos de obras públicas em Manaus? O sambódromo/bumbódromo construído no chão, em solo estável, pela COMAGI, desmoronou como um castelo de baralho. O que esperar de um monumento edificado sobre as águas por uma empreiteira qualquer dessas que existem na praça?
Aliás, alguém do CREA pode me responder de qual universidade é o diploma do engenheiro responsável da COMAGI? Pelas barbeiragens que anda cometendo, parece que ele foi colega do Ronaldo Tiradentes na escola lá do El-Dourado. Quem pode me dizer o que aconteceu com os 8 milhões - valores da época - que iriam ser restituídos aos cofres públicos devido à fraude cometida na construção do sambódromo/bumbódromo ou coisa que o valha.
Uma leitora me telefonou para avisar que ela anotou o que o vereador Serafim Correa havia declarado em entrevista ao SBT. Cerca de 5.2% de toda a arrecadação do Estado do Amazonas foi direto para as contas bancárias da COMAGI, que nos anos de 1990 a 1994 não teria descontado um só centavo de ISS (A CPI da Câmara - que vergonha - merece uma crônica à parte).
A construção do monumento ao Ajuricaba parece ter vários objetivos. O primeiro deles é favorecer as empreiteiras que vivem dos favores com recursos públicos. Ninguém no Amazonas duvida que os valores da estátua fluvial de Ajuricaba serão dez a quinze vezes maiores do que o preço de mercado. Afinal, precisa-se pagar comissão, propina, cala-boca e quiabo-a- quatro, como em todas as licitações para obras públicas, além de financiar campanhas eleitorais.
O outro objetivo é ideológico. Vão "suicidar" o Ajuricaba pela milésima vez. Em 1727, as aldeias dos índios Manáo foram invadidas, saqueadas e incendiadas pelas tropas de Belchior Mendes, que ninguém sabe se deixou filhos e netos no Amazonas. Milhares de índios foram aprisionados para serem vendidos como escravos aos portugueses em Belém. Acorrentado e algemado, o grande cacique Ajuricaba foi torturado e depois "suicidado", sendo seu corpo atirado no rio Negro para ser devorado pelas piranhas.
Agora, vão "suicidar" o Ajuricaba outra vez. As quadrilhas de turistas já estão preparadas para a visita ao grande monumento do "terceiro ciclo", megalomania de algum Mendes descendente de Belchior, enquanto os netos de Ajuricaba sobrevivem nas favelas da periferia, com fome, falta de postos médicos e de escolas.
Suspeito que quando o monumento aquático a Ajuricaba desmoronar, vão noticiar que foi realmente um "suicídio".
"Nem os nossos mortos estarão em segurança, se o inimigo vencer. E esse inimigo não parou de vencer" - como quer Walter Benjamin.
P.S. - Ontem, na igreja de Aparecida foi celebrada a missa de sétimo dia da morte do sr. Raimundo Aguiar, morador há mais de 50 anos do Beco Carolina Neves. À família enlutada, dona Maria - esposa e Edmilson e Auxiliadora - filhos, os nossos sinceros pêsames.