Na sexta-feira (11/09), O Globo publicou duas notinhas. Numa delas - Velinha ou velhinha? - Ancelmo Góis informa que no programa partidário na TV, quando a senadora Marina Silva falou da avó dela, colocaram legenda com a palavra: ‘uma velinha’. Na outra nota – Descredencia - Joaquim Ferreira dos Santos escreve:
- “A Bienal do Livro distribuiu credenciais onde estava escrito acessoria de emprensa”.
A ‘emprensa’ ficou também escandalizada com a filha da Xuxa, a Sasha, que escreveu no twitter:
- “Estou aqui filmando, vou fazer uma sena com a cobra”.
Os jornais, embora cometam infrações, acabam desempenhando a função do Appendix Probi, aquela lista feita por autor anônimo, no século III a.C., que continha palavras em latim vulgar e sua "correção" em latim clássico. A forma "correta" de escrever era, por exemplo, ‘articulus’ e não ‘artigu’, como a plebe falava, ou ‘artigo’, como ficou em português.
Tanto antigamente, como agora, ninguém diria que se tratava de um erro, se a palavra, em vez de escrita, fosse falada. Afinal, não existe diferença, na fala, entre sena ou cena, velinha ou velhinha, anselmo ou ancelmo, acessor ou assessor. Podemos observar que a forma de grafar os sons de uma língua tem sempre certa dose de arbitrariedade. O Ayrton podia muito bem ser "cena", que o "senário" não mudava, ganhava a corrida com "s" ou com "c".
Xerife da grafia
Numa peça de teatro que montamos com os índios guarani – o Bicho Lixo - eles não entenderam, assim como nós, porque se escreve “bicho” com “ch” e “lixo” com “x”, se o som é o mesmo. É claro que, na medida em que dá maior precisão à comunicação escrita, é recomendável a padronização ortográfica. que tem entre seus objetivos neutralizar as diferenças que fazem parte da vitalidade de uma comunidade linguística. A questão central está no papel que a escrita alfabética desempenha em uma sociedade e na sua relação com o poder. O problema surge quando o zelo pela norma leva a criminalizar a variação. Foi o que aconteceu agora no Peru e, no séc. XIX, na Amazônia Brasileira.
Lá, no Peru, os índios conseguiram eleger vários deputados, falantes de quéchua ou aymara como línguas maternas. A representante do Cuzco, Hilária Supa é uma camponesa, combativa, inteligente, sagaz, dona de uma boa oratória, fluente tanto em quéchua como em espanhol, que é sua segunda língua. Ela se comunica muito bem, falando. Escrever, em espanhol, já são outros quinhentos.
Então, um repórter bisbilhoteiro do diário Correo, de Lima, invadiu a privacidade da deputada e fotografou, sem permissão dela, a página de um caderno que continha suas anotações pessoais. Não se tratava de um documento público, oficial, apresentado pela deputada (para isso ela tem assessores, com muitos ‘ss’), mas de lembretes para uso próprio na hora em que subisse ou "subice" à tribuna para falar. Afinal, se ela escrevesse "cebiche"ou "ceviche" em suas notas, na hora do discurso, a pronúncia seria uma só.
O jornal não contou com conversa. Sua edição de 27 de abril de 2009 deu destaque com a manchete: “La Congresista no tiene quién le escriba”. O foco central da notícia era que a deputada não sabia escrever de acordo com as normas da Real Academia Espanhola. Um editorial assinado pelo diretor do jornal, um tal Aldo Mariategui - tinha que ser um Aldo - humilhou a deputada e exigiu sua cassação.
“Não se pode pagar mais de 20 mil soles por mês e dar tanto poder a pessoas que não estão minimamente iluminadas pelas luzes da cultura. Não é bom para o país que possa ser eleito para o Congresso alguém com um nível cultural tão baixo (sic), cuja ortografia e gramática revelam sérias carências. Uma pessoa com uma instrução tão elementar não pode contribuir na elaboração de leis e nos rumos da nave do Estado”.
O bicho lixo
Não se faz mais Mariátegui como antigamente! Saudades de José Carlos, que nos ajudou a compreender o seu país com os “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”. Já o Aldo Mariategui, me perdoem o termo, é um babaca. É o próprio bicho lixo. Seu discurso boçal defende que quem segue a norma é inteligente, quem não segue é burro. Ridiculariza a congressista, a quem recomenda um conhecido texto “Coquito” usado no Peru para alfabetizar, como no Brasil a cartilha Upa-Cavalinho, do saudoso Lourenço Filho.
Com uma visão cartorialista, teve a cara-de-pau de sugerir que o diploma universitário fosse requisito para que alguém pudesse ser candidato ao Congresso. Ele, que tem curso superior, escreveu dentro das normas ortográficas tantas besteiras, ignorando os avanços da linguística e da antropologia. É incapaz de refletir sobre a oralidade e a escrita, confunde cultura com escolaridade e acha que o conhecimento da ortografia significa sabedoria. Ele é um "huevón" que parece não entender bulhufas de bilinguismo, línguas em contato e glotopolítica.
Ao contrário de Aldo, que não fala e nem entende quéchua, a deputada Hilária Supa é bilíngue e transita por duas línguas oficiais do país, uma delas com maior fluência. Possui experiências, herdou saberes milenares e conhece muito bem a realidade peruana, como mostra sua participação nas comissões de Saúde e dos Povos Indígenas. Excluí-la do Congresso por não conhecer as normas da língua espanhola escrita é um projeto daqueles que usam a gramática normativa para policiar, controlar e impedir a atuação política de quem não forma parte da elite letrada do país, no qual até as pichações são bilingues.
Comeu inzercito
Na Amazônia, igual preconceito foi usado durante a Cabanagem, a revolta popular mais importante da história regional (1832-1840). Índios, tapuias, negros, enfim, toda a cabocada, que não falava o português como língua materna, saiu pro pau com os gringos de raízes lusitanas Os poucos cabanos alfabetizados escreveram alguns documentos, num português delicioso, que não seguia as normas ortográficas de Portugal.
Um desses documentos é um bilhete ameaçador, com letra irregular: “...E se V. Exa. responsave pellos mal desta provincia não sortar logo logo móhirmão e otros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.
As vacilações visíveis da ortografia, a segmentação das palavras e a concordância reproduzem na escrita algumas formas características do português falado na região, sem comprometer em nenhum momento sua compreensão. A prova é que a autoridade – o tal da Vossa Excelência a quem o bilhete foi enviado - não esperou o exército de cinco mil homens e soltou imediatamente o irmão e outros patrícios “que se acham presos”.
No entanto, mais tarde, essa forma de escrever, numa “caligrafia feita de garranchos”, foi apresentada no tribunal como “prova dos instintos criminosos” dos cabanos. Na opinião dos acusadores, o crime maior não era matar pessoas, mas “assassinar” a gramática. Quem não escrevia dentro da norma, imposta pelo grupo dominante, além de burro, era delinquente. Confundiam cinto com bunda e cipó com jerimum. “Assim é phooddaa” – como dizia a tia Ernestina, que mesmo depois da reforma ortográfica de 1943 continuou escrevendo com “ph” de pharmácia, dois “o” de cooperativa, dois “d” de toddy e dois “a” de caatinga.
Foi por isso que Xuxa tirou o seu da reta. Sasha não é nenhuma deputada indígena, nem um cabano qualquer. Se ela transgrediu a norma em português – disse Xuxa – é porque "estuda numa escola americana", onde se fala uma língua de prestígio.
– “Então, quem ensina inglês para a Sasha deve ser o Joel Santana” – comentou em sua coluna José Simão, que certamente trocaria o nome do professor, se conhecesse o inglês shakespeariano falado por Berinho, o eterno secretário de cultura do Amazonas, organizador do Amazon Film Festival.
P.S. – Ontem, sábado, na Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, houve um lançamento da segunda edição do livro “Os Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro”, que escrevi com Márcia Malheiros.
La diputada Hilária Supa y los cabanos
José R. Bessa Freire. Diário do Amazonas – 13 de setembro de 2009
En portugués, “velhinha” (“viejita”) y “velinha” (“velita”) se pronuncian igual, pero se escriben diferente. El viernes (11/09) el diario O GLOBO de Rio de Janeiro publicó dos notas:
En una de ellas - Velinha ou velhinha? – el periodista Ancelmo Góis informa que cuando la senadora Marina Silva mencionó a su abuela en el programa electoral de la TV, la viñeta escrita anunciaba: ‘uma velinha’.
En la otra nota – Descredencia – el periodista, Joaquim Ferreira dos Santos, criticó: “La Feria Bienal del Libro distribuyó credenciales para los asesores de prensa (“assessoria de imprensa”) en que estaba escrito: “acessoria de emprensa”.
En português, “cena” (“escena”) se pronuncia igual que “sena” (relativo a seis). Sasha, hija de la conocida cantora y actriz Xuxa Meneghel, escribió una nota publicada en el periódico: “Estoy filmando aquí, voy protagonizar una “sena” con una serpiente”.
Los periódicos, aunque cometan infracciones, acaban desempeñando la función del Appendix Probi, esa lista de autor anónimo, en el siglo III a.C., que contenía palabras en latín vulgar y su ‘corrección’ en latín clásico. La forma ‘correcta’ de escribir era, por ejemplo, ‘articulus’ y no ‘artigu’, como hablaba la plebe, o ‘artigo’, como ahora en portugués.
Tanto antiguamente, como ahora, nadie diría que se trataba de un error, si la palabra, en vez de escrita, fuera hablada. Al final, no existe diferencia, en el habla, entre “sena” o “cena”, “velinha” o “velhinha”, anselmo o ancelmo, “acessor” o “assessor”. Podemos observar que la forma de graficar los sonidos de cualquier lengua tiene siempre cierta dosis de arbitrariedad.
Sherif de la grafía
Cuando montamos una pieza de teatro con los guaraní de Rio – “O Bicho Lixo” (El bicho basura) – los indios no comprendían, así como nosotros, porque “bicho” se escribe con “ch” y “lixo” con “x”, si el sonido es exactamente igual. Nosotros no teníamos una explicación.
La estandarización ortográfica de una lengua tiene entre sus objetivos, neutralizar las diferencias que hacen parte de la vitalidad de una comunidad lingüística. La cuestión central está en el papel que la escritura alfabética desempeña en la sociedad y su relación con el poder. El problema surge cuando se criminaliza la variación. Eso ha pasado en el Peru y en la Amazonia brasileña.
En el Perú, los indios consiguieron elegir varios diputados, hablantes de quechua y aymara como lenguas maternas. La representante del Cusco, Hilaria Supa es una campesina, combativa, inteligente, sagaz, dueña de un gran habilidad oratoria, tanto en quechua como en español, que es su segunda lengua. Ella se comunica muy bien, cuando habla. Escribir, en español, es totalmente otra cosa.
Un reportero chismoso del diario Correo de Lima invadió la privacidad de la diputada y fotografó, sin su permiso, la página de un cuaderno que contenía sus anotaciones personales. No se trataba de un documento público, oficial, presentado por la diputada (para eso tiene asesores, con muchas ‘ss’), sino que eran anotaciones para uso propio cuando subiera a la tribuna para hablar. Al final, si ella escribiera “cebiche” o “ceviche” en sus notas, a la hora del discurso, no tendría problemas.
En su edición del 27 de abril de 2009 el diario dio el siguiente destaque en su titular: “La Congresista no tiene quién le escriba”. El foco central de la noticia era que la diputada no sabía escribir de acuerdo con las normas de la Real Academia Española. Un editorial firmado por el director del periódico, un tal Aldo Mariátegui la humilló, exigiendo la demisión de la diputada.
“No se puede pagar más de 20 mil soles por mes y dar tanto poder a personas que no están mínimamente iluminadas por las luces de la cultura. No es bueno para el país elegir para el Congreso Nacional gentes con un nivel cultural tan bajo (sic) que revelan sus carencias a través de la ortografía y de la gramática. Una persona con tan poca instrucción no puede contribuir en la elaboración de leyes y en el destino de la nave del Estado”.
El “bicho lixo”
Que falta nos hace José Carlos Mariátegui, que nos ayudó a comprender el Perú con los “Siete ensayos”. En cambio Aldo Mariátegui, mil perdones, es un papanatas. Su discurso petulante defiende que quien sigue la norma es inteligente y quien no la sigue es burro. Ridiculariza a la congresista, a quien le recomienda un conocido texto “Coquito” usado en el Perú para alfabetizar.
Con una visión burocrática, tuvo la desfachatez de sugerir que el diploma universitario fuera requisito para que alguien pudiera ser candidato al Congreso. Él, que tiene curso superior, escribió, dentro de las normas ortográficas, tantas sandeces, ignorando los avances de la lingüística y de la antropología. Es incapaz de hacer una reflexión sobre la oralidad y la escritura, confunde cultura con escolaridad y piensa que el conocimiento de la ortografía significa sabiduría. A lo que parece, no entiende nada de bilingüismo, lenguas en contacto y glotopolítica. En un país multilingüe!
Al contrario de Aldo, que no habla ni entiende quechua, la diputada Hilaria Supa es bilingüe y transita por dos lenguas oficiales del país, una de las cuales con mayor fluencia. Tiene experiencias, heredó saberes milenarios y conoce muy bien la realidad peruana, como muestra su participación en las comisiones de Salud y de los Pueblos Indígenas. Excluirla del Congreso por no conocer las normas de la lengua española escrita es un proyecto de los que usan la gramática normativa para controlar e impedir la actuación política de quien no forma parte de la élite letrada del país, en el que hasta los muros ostentan grafitis bilingües.
Comeu inzercito
En la región de Amazonía, se usó igual prejuicio durante la Cabanagem, el levantamiento popular más importante de la historia regional (1832-1840). Indios, cholos, tapuias, negros, en fin, todos los mestizos que no hablaban el portugués como lengua materna, se sublevaron contra los blancos de raíces lusitanas. Los pocos cabanos alfabetizados escribieron algunos documentos, en un portugués delicioso, que no seguía las normas ortográficas de Portugal.
Uno de esos documentos es un texto amenazador, con letra irregular: “...E se V. Exa. responsave pellos mal desta provincia não sortar logo logo móhirmão e otros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.
Las vacilaciones visibles de la ortografía, la segmentación de las palabras y la concordancia reproducen en la escritura algunas formas características del portugués hablado en la región, sin comprometer en ningún momento su comprensión. La prueba es que la autoridad – esa tal de Vossa Excelência a quien se le envió el mensaje - no esperó el ejército de cinco mil hombres y soltó inmediatamente al hermano y otros patricios “que se encuentran presos”.
Sin embargo, más tarde, esa forma de escribir, con una “caligrafía hecha de garabatos”, sirvió en el tribunal como “prueba de los instintos criminales” de los cabanos. En la opinión de los acusadores, el crimen mayor no era matar personas, sino “asesinar” la gramática. Quien no escribía dentro de la norma, impuesta por el grupo dominante, además de burro, era delincuente.
Hay justificativas “nobles” para no seguir la norma padrón. Sasha no es una diputada indígena, ni una revolucionaria de Cabanagem. Si su portugués no se encuadra en la norma estándar – explica Xuxa – es porque estudia en una escuela americana, en donde aprende una lengua de prestigio.