.Marchou por que? Por que marchou? No dia 5 de setembro, dois dias antes do Grito do Ipiranga, a Secretaria de Educação do Estado do Amazonas bota as crianças prá marchar. Na verdade, ninguém sabe direito porque está desfilando. Feriado. Data cívica.
A escola vai empurrando com a barriga, aos trancos e barrancos, obrigando os alunos a memorizarem algumas datas e os nomes de alguns "heróis". Acabam confundindo Tenreiro Aranha com aranha no terreiro.
A mídia vai fazendo como pode o seu samba do crioulo doido ou a toada do caboco pirado.
Comemorar o quê?
Alguns já trazem a resposta decorada: no dia 5 de setembro de 1850, o Amazonas foi elevado à categoria de Província. E daí? Entra por um ouvido, sai pela boca, e não fica na memória nem no coração.
Façam uma pesquisa de opinião, entrevistem os candidatos a vereador e a prefeito e perguntem de cada um deles: você sabe o que significou para a vida dos amazonenses a criação da Província? O cabo Pereira é capaz de jurar ter sido ordenança do João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha.
Taí, uma boa pergunta, leitor (a): o que teria acontecido com a gente, se não tivesse havido o 5 de setembro, isto é, se o Amazonas NÃO tivesse se transformado numa província autônoma?
Bom, em primeiro lugar, hoje não seria feriado. Que pena!
Em segundo lugar, continuaríamos sendo uma comarca da Província do Pará e depois um município do Estado do Pará. Do ponto de vista político, não teríamos um governador próprio. Mas não se alegre muito, leitor (a). Se existe uma vantagem grande em não ter de aturar o Amazonino, ela se dilui diante do Almir Gabriel, aquele que se recusa a investigar o massacre dos sem-terra. Ele seria o nosso governador.(Vade retro, Satanás!)
Não haveria também uma Assembleia Legislativa do Amazonas, da mesma forma que hoje não existe uma Assembleia Legislativa do Alto Solimões. Como o Alto Solimões nos enviou esses dois estadistas impolutos - Lupércio Ramos e Belarmino Lins - assim também nós enviaríamos para a Assembleia Legislativa do Pará, como representante do Amazonas, os uóchitons régis, os corados e os miquéias da vida.
Do ponto de vista cultural, o amazonense não existiria como identidade coletiva politicamente trabalhada e estimulada. Seríamos todos paraenses, conterrâneos - ai, meu Deus! - do Jarbas Passarinho, do Jader Barbalho e do Alacid Nunes, mas em compensação de gente porreta como o Lúcio Flávio Pinto, o Seráfico, a Edna Castro, o Paes Loureiro e tantos outros. O único lance preocupante: porque seríamos paraenses, falaríamos como os paraenses, enfatizando os "nh": maninio, queres comer farinia da vizinia?
Voltando para o sério: uma pesquisa histórica realizada em 1979 me levou a trabalhar os Anais da Assembleia Legislativa Provincial, onde estão as atas com os discursos dos deputados, os seus projetos, os argumentos a favor e contra, enfim as diferentes propostas dos setores dominantes. Publiquei então um artigo intitulado "Quanto vale um índio no Amazonas", onde reproduzi o primeiro projeto dos nossos deputados, que vale a pena ser relembrado.
A criação da Província do Amazonas permitiu que a elite econômica local organizasse a exploração da mão-de-obral, formada fundamentalmente por índios. Em 1850, cerca de 60% da população recenseada do Amazonas era constituída por índios aldeados. Como os negros não ultrapassavam o número de 500, os donos de plantações e os negociantes ligados ao extrativismo tinham nos povos indígenas a principal fonte de mão-de-obra.
Se o índio não trabalhasse, ninguém comia no Amazonas e as atividades econômicas ficariam totalmente paralisadas.
Os deputados da Assembleia Legislativa Provincial, representantes da minoria de 8% de brancos que aqui viviam se lançaram com voracidade sobre os índios. Os nobres deputados não esperaram sequer que a Casa fosse organizada para colocar as unhas de fora. Na terceira sessão da primeira Assembleia Legislativa que teve a província, isto, no terceiro encontro que tiveram os primeiros deputados da História do Amazonas, no dia 9 de setembro de 1852, foi lido o primeiro projeto, cujos quatro artigos merecem ser reproduzidos:
Art. 1 - Fica livre a todo morador poder ir contratar a troca dos indígenas bravios com os principais das nações selvagens.
Art. 2 - Feita a troca, o individuo apresentar-se-á com os indígenas perante o Juiz de Paz mais vizinho para assinar um termo de educação por espaço de dez anos.
Art. 3 - Concluídos os dez anos, de que trata o artigo antecedente, poderá o índio ser aldeano.
Art. 4 - Impor-se-á a multa de 100 mil réis e 20 dias de prisão a todo solicitador de índios de casa de seus amos; os aliciados serão obrigados por qualquer autoridade judiciária ou militar a voltarem para casa dos referidos amos.
Os nobres deputados voltaram a entrar na História pelas portas dos fundos alguns anos mais tarde. A Lei no.86 de 22 de outubro de 1858 concedia "um prêmio de 50$000 réis por indígena isolado e 100$000 réis por chefe de família indígena excedente a duas pessoas, maiores de 8 anos de idade, ao empresário que colonizar e fizer residir no estabelecimento número superior a 15 indígenas".
Deputados de uma Assembleia onde os índios não se achavam representados, eles foram responsáveis por uma política genocida. Para os índios, que constituíam a maioria da população, a elevação do Amazonas à categoria de Província significou o recrudescimento da exploração de seu trabalho, a invasão de suas terras, com consequências graves, que levaram ao extermínio de muitos povos e ao empobrecimento cultural da região.
Comemorar o quê? Quem comemora?
O que interessa agora é saber quando o Amazonas deixará de ser província. Vivemos até hoje a tensão entre a canoa e o boeing, a flecha e o canhão, o pirão de farinha e o caviar, o cachiri e a champagne, a maloca e a cidade. Algumas vezes resolvemos de forma sincrética esta contradição: o pirarucu-de-casaca, o Ézio-de-smoking, o Ronaldo Lázaro Tiradentes falando inglês na Coréia, o Átila Lins e sua barriga recebendo o terceiro secretário do Consulado da Bolívia...