"Olhos marejados / saudade se misturando / aos pingos da chuva”.
Aníbal Beça (1946-2009), poeta amazonense, Folhas da Selva haicais
A língua portuguesa tem seus mistérios na hora da concordância. Por exemplo, um homem pão-duro é sovina, quando devia ser sovino. E uma mulher sovina? Ela é pão-duro ou pão-dura? Preciso consultar o nosso latinista padre Nonato Pinheiro. Mas enquanto espero a resposta, vou usar o pão, masculino, com o dura, feminino, para dizer que a tia Dedé é pão-dura. Afinal, como já disse Guimarães Rosa, “pãos ou pães, tudo é questão de opiniães”.
Pão não concorda com dura, eu sei. Os dois também não concordam com a tia Dedé. O problema de concordância não se deve apenas aos mistérios da língua portuguesa, mas aos segredos da natureza humana. Ou mais precisamente ao fato de que o pão-durismo da tia Dedé é um caso singular. Ela é mão-de-vaca com ela mesma e extremamente generosa com os outros.
Faz um teste, leitor (a). Telefona pra ela:
- Dona Adelaide, o quilo da batata na feira de Aparecida está dois centavos mais barato do que no supermercado.
Uma hora depois, pode esperar na barraca da batata, que a tia Dedé está chegando. Ela se despencou lá da Rua Paraíba, num sol quente ou debaixo de chuva, a pé para economizar os trocados com o ônibus. Suas três filhas e seu marido trabalham, ganham bons salários. Seus genros, cheios da grana, um deles coronel e os outros dois quase gerentes de banco, balançam a cabeça: - “Ela não precisava fazer isso”.
Faz outro teste, leitor (a) Telefona pra ela e diz que estás com fome, sofrendo ou precisando de remédio. Ela vai te esculhambar (ela é linguaruuuuuda, tem uma língua do tamanho do coração), vai te chamar de imprevidente e, depois, vai te ajudar, se abrindo mais do que uma gaveta velha. Dá o que tem e o que não tem.
Tia Dedé economiza uns centavinhos aqui, uns tostõezinhos suados ali, sacrificando o próprio conforto para compartilhar com os outros o salário mixuruca de professora aposentada. Foi dessa forma que Dedé, coração-de-ouro, ajudou a educar toda a sobrinhada pobre. Cadernos, livros, sapatos, farda de normalista do IEA, nunca nos faltaram. Esse que batuca essas mal traçadas comeu o pão que a Dedé amassou.
- A Adelaide foi meu anjo-da-guarda – costuma dizer sua irmã, dona Elisa.
Assim é a nossa tia Dedé: uma pão-dura, que é um poço de generosidade. Ela tira dela mesma para dar aos outros. Suspeito, leitor (a), que tu deves ter tua tia Dedé, em dose maior ou menor. A minha faz aniversário hoje, 15 de março, junto com a Teca – outra pão-dura do mesmo calibre. Aproveito para homenageá-las e falar do contra-cheque da tia Dedé.
Aposentada inativa
Está lá, impresso no seu último contra-cheque, como uma ofensa: inativa. Inativa é uma ova! Engana-se redondamente quem pensa que Adelaide Bessa Wanderley, filha do Manuel Tibúrcio e da velha Maria Elisa, está passiva e entregou os pontos. Irmã da dona Elisa, ela ainda é capaz de se indignar contra a injustiça e de se meter numa briga por uma boa causa. Por isso nós, seus sobrinhos, achamos que ela continua ativa. Ativíssima. Sentimos orgulho dela.
Adelaide, a tia Dedé, durante trinta anos e lá vai fumaça serviu com uma lealdade canina ao povo amazonense, como agente administrativo da Secretaria de Saúde, que funcionava ali na Praça do Congresso. Chovesse ou fizesse sol, tia Dedé nunca faltava. Nem chegava tarde. Cumpriu seus deveres com um raro sentimento de consciência profissional. Sua folha funcional não possui sequer uma manchinha.
Tia Dedé começou a trabalhar quando os deputados Euler Ribeiro e Átila Lins (PFL, vixe, vixe) nem sequer eram nascidos e o truculento Secretário de Segurança Klinger Costa ainda não começara a distribuir cascudos em seus coleguinhas na creche. O salário dela nunca foi lá essas coisas, mas pelo menos lhe permitia viver com dignidade.
Complementava a renda familiar com os vencimentos de professora do turno da noite, no Grupo Escolar Cônego Azevedo e aplicando injeção a domicílio. Com esses recursos, ajudou suas irmãs e seus sobrinhos. Ela era alguém, no âmbito familiar e social, reconhecida pelos serviços que prestava. Lembro ainda do estojo retangular de metal, onde ficavam as seringas que ela usava para aplicar injeção. Lembro também do caderno onde ela copiava as letras de música, com destaque para as de Luiz Gonzaga.
Ainda solteira, suas economias permitia que fizesse viagens de férias ao Ceará, de onde trazia um presentinho para TODOS e para CADA UM dos sobrinhos, que eram muitos. Enfim, uma tia profissional, como não se faz mais.
Depois de toda uma vida dedicada ao trabalho na Secretaria de Saúde, contribuindo para diminuir o sofrimento alheio, tia Dedé aposentou-se. Quanto é que você acha, leitor, que valem mais de trinta anos de serviços prestados à sociedade amazonense? Adivinha quanto é que o Estado paga de aposentadoria à tia Dedé? O Estado dispensa a ela a mesma generosidade com que tratou a aposentadoria do Euler Ribeiro, do Átila Lins e do Belarmino Lins? Nerusca!
Estou aqui com cópia do contracheque do mês passado da tia Dedé. O vencimento-base dela é menor do que o salário mínimo: R$ 104,26. Ah, mas o Estado banca a diferença, pagando-lhe mais R$ 7,74. Paga-lhe ainda R$ 3,36 (eu escrevi três reais e trinta e seis centavos) de salário família, a fortuna de R$ 26,07 como adicional por tempo de serviço, mais R$ 41,70 por risco de vida (o que é muito pouco, considerando que o falastrão e prepotente Klinger Costa anda solto por aí), mais R$ 4,92 reais como Gratificação de Serviço de Saúde e R$ 15,39 como 13º salário integral.
Se você pegar uma máquina de calcular e somar tudo isto, descobrirá que o ganho bruto da tia Dedé atingiu a fortuna de R$ 203,44. Ela desconta a contribuição para a ASPA no valor de R$ 24,00 e embolsa, líquido, o total de R$ 179,44. Uma indecência! Ela se sente ofendida e violentada, com justa razão.
Cachorro pirento
Como é que uma cidadã honesta e trabalhadora serve à sociedade durante toda a sua vida e em troca, como retribuição pelos serviços prestados, recebe uma merreca dessa? Que falta de respeito! Que ultraje! Juro pela felicidade da minha mãe que dá até vontade de xingar o Amazonino Mendes e seu candidato a prefeito, Alfredo Nascimento, o Cabo Pereira, que foi Superintendente da Saúde. Tem algo de podre no reino da Dinamarca e nos porões do Governo do Estado do Amazonas.
Talvez uma das grandes qualidades da tia Dedé seja a gratidão, que ela cultiva como uma flor, dentro do seu coração. Um pequeno favor que lhe foi feito há 40 anos fica gravado na sua memória e ela se sente eternamente devedora a quem lhe prestou tal deferência. Guarda esse sentimento no peito como outros guardam antigos rancores: alimentando-o diariamente. Em consequência, abomina a ingratidão.
Por isso, esse contracheque - se eu a conheço bem - deve lhe doer no fundo da alma, todos os meses. Nem tanto pela merreca da grana! Ela não vai morrer de fome por causa disso: tem marido, filhas, genros. Mas pela ingratidão institucional do próprio Estado, oficializada no contracheque. O Governo a está humilhando, tratando-a como um cachorro pirento, que merece ser enxotado. Está desconsiderando tudo o que ela fez. Não reconhece sua importância. Para o Estado, ela deixou de ser alguém para ser Dedé ninguém, a inativa, que vale menos de um salário mínimo.
Tia Dedé é uma pessoa muito querida pelas filhas e por todos os sobrinhos. É alguém muito especial para nós. Apesar disso, seu caso não é singular. Todo amazonense tem uma tia Dedé, que contribuiu anônima e heroicamente para a grandeza do Amazonas e que em troca recebe mensalmente uma bofetada humilhante no contracheque.
Na hora do voto eletrônico, antes mesmo de apertar a tecla com o nome do candidato a prefeito, o eleitor amazonense certamente verá aparecer na telinha a cara de sua tia Dedé, sedenta de Justiça. Oxalá que ela o oriente para uma escolha certa.