A sabedoria popular tem uma resposta clara a essa pergunta, dada ao longo da história por diferentes povos. Tanto os romanos como os franceses acham que "quanto mais, melhor" ou "antes de mais, do que de menos". Um provérbio latino registra: "Quod abundat non nocet". E os franceses nos ensinam: "Abondance de biens ne nuit pas". Ambos podem ser traduzidos como: "não prejudica, aquilo que abunda".
Por falar nela, o historiador francês Jean-Luc Henning lançou há dois anos, em Paris, o seu livro "Breve História da Bunda" ("Brève histoire des fesses". Zulma. Paris.1995. 252 pgs. 110 francos). É isso mesmo que você leu, leitor (a). Eu também me assustei com o título. Como é que alguém pode interessar-se - cientificamente, é claro - por essa parte da anatomia humana e pesquisar seriamente durante anos sobre o tema?
Resolvi ler o livro - afinal, o que abunda não prejudica - para conferir o interesse acadêmico do autor por aquilo que no Brasil já foi conhecido popularmente como "poupança" ou "padaria" e em algumas regiões de Portugal como "beldroega"ou "tralalá".
O eminente bundólogo francês, Jean-Luc, parte de uma constatação original:
"Entre as 193 espécies de primatas, somente a espécie humana possui nádegas hemisféricas, carnudas, globosas e salientes sobre as quais pode sentar-se".
O que chegou mais perto do homem foi o babuíno, aquele macacão de bunda vermelha exposta. Você já havia pensado nisso, leitor (a)? Não é surpreendente? O homem é o único animal que tem bumbum, incluindo na espécie "homo" - é claro - a mulher, graças a Deus. A bunda é, pois, um fenômeno exclusivamente humano, mais humano - imagine só! - que o próprio coração, órgão compartilhado com outros animais.
Entusiasmado - digamos assim - com a humanidade da bunda, o historiador francês prosseguiu sua pesquisa para saber desde quando o homem a carrega. "Desde que o homem é homem"- ele responde:
"As nádegas datam da mais alta Antiguidade. Elas aparecem quando o homem adquire a possibilidade de ficar em pé, em posição ereta, apoiado nas patas traseiras, permanecendo nesta posição".
Confesso que isso nunca me havia passado pela cabeça. Por falar em cabeça, o bundólogo Jean-Luc faz uma revelação-bomba tão impressionante que se você estiver em pé, leitor (a) recomendo aproveitar a sua condição humana e sentar-se sobre o traseiro para não cair.
Ele afirma que "as nádegas do homem são responsáveis, em certa medida, pela origem das funções pensantes do cérebro. As nádegas, ao encontrarem definitivamente o seu lugar, permitiram ao mesmo tempo que a cabeça encontrasse o seu". Em outras palavras, sem bunda - quem diria, hein! - não haveria pensamento.
O genial Auguste Rodin já havia intuído essa verdade, quando modelou em bronze a sua escultura mais famosa. Não é à-toa que "O Pensador" está sentado. Não deitado, em pé, de joelhos ou de cócoras. Não. Está sentado. Ou seja, usando o bumbum para pensar. Disto tudo, se conclui que a lógica cartesiana baseada no "Penso, logo existo", deveria ser antecedida por "Sento, logo penso".
Nessa perspectiva, os grandes intelectuais do país seriam Rita Cadillac, Carla Perez, Gretchen, Luiza Ambiel, Valéria Valenssa. As carecas brilhantes dos sábios seriam trocadas por bundinhas arrebitadas como a da loura do Tchan. O bumbum substituiria a cara na carteira de identidade, reforçando as declarações da ex-chacrete, Rita Cadillac. Ela gostaria de ser velada de bruços para ser reconhecida por todo mundo.
"Vendo meu rosto, as pessoas ficam na dúvida. Quando olham para o bumbum, aí sim têm a certeza de que sou eu mesma" diz Rita.
Ela - a bunda - tornou-se tão importante, que acabou pagando por crimes que não cometeu. Um problema nas vias respiratórias, exigindo uma injeção: onde é que a agulha vai furar? Uma operação plástica necessitando de enxerto: de onde se vai retirar o tecido? Quem recebe palmadas por erros cometidos pela cabeça e pelo coração?
Aliás, o autor do livro apresenta exemplos abundantes - desculpem o infame trocadilho ou a redundância - de como a Revolução Francesa puniu os seus opositores: ou a guilhotina cortava-lhes a cabeça ou chicotadas públicas dilaceravam-lhes o bumbum.
Sempre injustiçada, a bunda, vestida com um adjetivo, transforma-se em ofensa. O ex-governador de SP, Orestes Quércia, acusou publicamente o atual, Mário Covas, de ser um "bunda mole" ou um "bundão".
O bundólogo Jean-Luc considera revoltante esse tipo de discriminação contra o seu objeto de estudo. Por essa razão, em seu livro, ele faz uma seleção literária de escritores e poetas que cantaram as virtudes do traseiro: Rabelais, Sade, Verlaine, Proust, Joyce e tantos outros.
No Brasil, o maior poeta de todos, Carlos Drummond de Andrade, canta os meneios das "duas luas gêmeas" num belíssimo poema:
"A bunda, que engraçada./ Está sempre sorrindo, nunca é trágica. Não lhe importa o que vai/ pela frente do corpo. A bunda basta-se. Existe algo mais? Talvez os seios./ Ora - murmura a bunda - esses garotos, ainda lhes falta muito que estudar".
Manuel Bandeira versejou sobre "as alvas formas de sereias, de braços nus e nádegas redondas". Cesário Verde mostrou-se maravilhado diante do sacolejo das "ancas opulentas" da amante e Jorge Amado partiu para a ignorância em Dona Flor: "Era uma bunda e tanto, das de tanajura".
A bunda literária é, quase sempre, um belo apêndice feminino. Existem exceções. Raul Pompéia menciona os sofrimentos do pequeno Sérgio, com a bunda colada na cadeira de sala de aula do colégio "O Ateneu". Por falar nisso, cadê o deputado Ronaldo Tiradentes, acusado de falsificar o seu diploma de conclusão do 2º grau?
O leitor, intrigado e meditabundo, nem desconfiava que iríamos concluir este tratado de bundologia, falando do Tiradentes. Acontece que na escola, o aluno passa a maior parte do tempo sentado, usa mais a bunda do que a cabeça. Tiradentes não conseguiu apresentar provas materiais de que frequentou a escola, porque infelizmente ninguém deixa na cadeira em que sentou as suas impressões - digamos assim - "digitais".
No entanto, qualquer pessoa é capaz de falar sobre sua vida escolar, de educando. Desta forma, Alferes Ronaldo Lázaro Tiradentes pode informar ao distinto público: onde é que ele sentava o bumbum na sala de aula? Quem sentava perto dele? Como era o nome do representante de turma? Qual a garota mais bonita de sua sala? Qual o colega mais inteligente, o mais burro e o mais chato? Quem foi o seu melhor professor? E o pior? Como eram feitas as provas? Quem colava de quem? Onde foi realizada a formatura?
P.S. O atraso de um voo obrigou-me a passar toda a segunda feira em cansativa espera em aeroportos, impedindo-me de escrever a crônica semanal. Para não deixar o leitor sem nada, clonei uma crônica antiga. Muitos já a leram antes, com ligeiras modificações. Não faz mal. Afinal, o que abunda, não prejudica.