CRÔNICAS

A menina do bonde

Em: 13 de Maio de 1997 Visualizações: 10638
A menina do bonde

Chovia fino naquela tarde de abril de 1925. O balconista da Casa 22 Paulista abriu o guarda-chuva, atravessou a Praça da Matriz e tomou o bonde do Plano Inclinado. Algumas paradas depois, subiu uma menina de 15 anos, extraordinariamente bela. Cabelos molhados, farda de normalista, recatada, mas toda empinadinha. Os olhares se cruzaram. O bonde, dlén-dlén-dlén. Os corações, tuc-tuc-tuc. Ele sentiu uma moleza nas pernas. Ela, um desfalecimento. Foi então que os dois compreenderam que o destino de ambos estava para sempre selado.

Filho de um ourives português, vindo do Rio de Janeiro para estabelecer-se numa portinha perto do Mercadão, em Manaus, no início do século, o balconista aprendera com o pai a identificar uma jóia. "É ela", pensou, assim que a viu. 

Era ela, a menina Isabel, filha do sr. Carvalho, morador da rua Xavier de Mendonça, no bairro dos Tocos. Durante algumas semanas, o bonde seria o palco de um dialogo silencioso. Olhos perguntavam, olhos respondiam: suspiros, juras e promessas de amor, num código que só os apaixonados conseguem decifrar.

 Meses depois, na igreja de São Sebastião, o padre pergunta: Alberto de Jesus Greijal, comerciário, 23 anos, aceita Isabel Carvalho, 16 anos incompletos, como legítima esposa? E você, menina Isabel, que ainda ontem estava brincando de boneca, aceita como esposo este carioca, nascido em 1903 no bairro do Estácio?

Aceitaram-se mutuamente. Ela ficou sendo Isabel Greijal. Durante mais de 70 anos, os dois andaram no bonde da história, prá cima e prá baixo, sempre juntos, trocando olhares, juras amorosas e algumas rusgas, necessárias como tempero do amor. Desfilaram pelos trilhos do plano inclinado da vida, servindo de modelo para a "(in) crível (a) ventura de viver a dois".

Com o nascimento de duas filhas - Wilma e Conceição (esta já falecida) - Alberto Greijal deixou o balcão da Casa 22 Paulista para abrir a sua própria loja, ali na Henrique Martins: a Casa Alberto. Vendia tecidos, confecções miúdas, armarinhos, até 1965, quando fechou a loja e se aposentou.

Durante mais de vinte anos foi diretor social do Rio Negro. Organizava festas e eventos diversos. Mas sua diversão predileta, depois de aposentado, era parar no Canto do Fuxico, para um dedo de prosa com o doutor Bezerrinha, Geraldo Pinheiro, Paulo Onety e outros amigos fiéis.

 - Levantai-vos, soldados de Cri-iiisto!. Era assim que começava a letra da música cantada na missa, assistida toda primeira sexta-feira do mês por Alberto Greijal, que desfraldava o pendão da vitória, juntamente com outros integrantes do Apostolado da Oração. Ele sempre teve uma vida religiosa muito ativa. Fazia parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento, do Apostolado, divulgava devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Era um homem de oração. Gostava de rezar. Sem ser carola.

- Nos últimos anos, os moradores de Aparecida enterneciam-se com aquele frágil velhinho que todos os domingos participava da missa das crianças, quase carregado pela Wilma, arrastando os pés. Na oração dos fiéis, padre Marcos levava o microfone até ele que, com voz quebrada, mas clara e audível e com muita lucidez fazia belíssimas invocações. Na saudação da paz, abraçava com entusiasmo os que dele se aproximavam.

- Seu Alberto Greijal o que a gente faz para viver tanto?

- Todos os dias, na hora da refeição tome um copo de vinho - respondia. - Mas só um copinho. De vinho. Cachaça não! - aconselhava.

João Barbosa, Camilo, Pedro Elóy e Carlão Das Águas exageraram na dose e acabaram indo antes do tempo. Em quase um século de existência, Alberto Greijal viu duas passagens do cometa Halley sobre a terra. A primeira, em 1910, quando contava sete anos. A segunda, em 1986, já no outono de sua vida, morador da Rua Monsenhor Coutinho, no bairro de Aparecida.

Diante dos seus olhos, desfilaram grandes acontecimentos internacionais, nacionais e locais, duas guerras mundiais, revoluções, enchentes, epidemias, gripes mortais, generais, políticos corruptos e gente íntegra. Acompanhou as mudanças da cidade. Presenciou abertura de ruas, aterros de igarapés, construção de praças, chafarizes, coretos e estátuas. Viu edifícios brotarem da terra, sobrados portugueses, janelas com balcões gradeados, varandas. Testemunhou demolições criminosas. 

Manaus era um canteiro de obras, quando Greijal aqui chegou no início do século. O Superintendente Municipal da época, Adolpho Lisboa, tocava um plano de melhoramento urbano e suburbano de Manaus, mas aproveitava para meter a mão nos cofres públicos, embolsando mais de 4.100 contos de réis, dando péssimo exemplo, seguido por grande parte dos prefeitos que vieram depois dele.

 Alberto Greijal conversava com as ruas de Manaus, cujas denominações eram nomes de gente que ele viu em plena atividade. Aos dez anos de idade, assistiu em 1913 o enterro do major da Guarda Nacional Leonardo Malcher. Acompanhou em 1918 o velório do jornalista e político chamado Lima Bacury e o sepultamento do médico Jônathas Pedrosa em agosto de 1922.

Na semana passada, nonagenário, foi a vez de Alberto de Jesus Greijal descer do bonde. Percorreu o caminho que fazia diariamente. Caminhou pela Rua da Instalação. Cumprimentou o seu Antônio da Padaria Progresso. Tirou o chapéu para Nicolau Montemurro, à porta de sua Sapataria. Passou pela loja da dona Júlia Chaim, com a sua enorme filharada. Mais embaixo, recebeu a simpatia do Salim, sentado à porta de seu comércio. Depois da Ferragem União, na esquina, acenou para a bela dona Sultana, da loja Dois Irmãos. Dobrou a esquina, entrou na Henrique Martins e parou em frente à Casa Alberto.

De repente, aquela Manaus se esfumaça e desaparece. O ex-balconista despediu-se de sua menina, fitando-a pela última vez, condensando naquele olhar, embaçado pelas lágrimas, 70 anos de intenso amor. O bonde, dlén-dlén-dlén, estacionou. O coração, tuc-tuc-tuc, parou. Descansou para sempre, levando com ele a imagem de uma normalista com os cabelos molhados, um pedacinho de todos nós e fragmentos da memória da cidade.

Ontem, na igreja de Aparecida, foi celebrada missa de 7º dia pelo sr. Alberto de Jesus Greijal. Para Isabel, a menina do bonde, exemplo de virtude, o nosso carinho e a nossa solidariedade no adeus a Alberto de Jesus. Alberto de Isabel. Alberto de Manaus.

Obs: Esta crônica foi publicada no dia 13/05/97, por ocasião da morte de Alberto Greijal. Sua viúva, Isabel Greijal, completou 90 anos de vida no dia 6 de dezembro do ano 2000, quando foi realizada uma missa de ação de graças, às 18:30 horas, na igreja de Aparecida. Na impossibilidade de comparecer, com dona Elisa, republicamos a mesma crônica, dedicada à menina mais linda do bairro, que continua firme no bonde da vida.

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5 Comentário(s)

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CARLOS VIEIRA comentou:
14/04/2023
Fantástica essa história. Maravilhosa. Fez-me lembrar de uma outra menina do bonde, esta em Belo Horizonte.
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Alfredo Mario Lopes comentou:
01/08/2017
José Bessa, para quem não teve a dita de respirar tão sublimes ares, uma ilustração musical que vc retoma neste delicioso e precioso texto... https://youtu.be/fInzwfwaTr0
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Maria Cabral (via FB) comentou:
01/08/2017
Mas é mesmo uma delícia essa crónica. E as outras também. Preciosidades! Taquiparati um blog para seguir. Grande homenagem a Alberto Greijal.
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Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (via FB) comentou:
01/08/2017
No bonde da História. Eu adoro esta crônica. Não por citar rapidamente meu pai, Geraldo Pinheiro, mas por dar vida a cidade da minha infância! Cf. Graça
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jones greijal holanda comentou:
17/07/2011
Que coisa linda, a sua crônica, mostrou, a fortaleza de um casamento, que durou uma vida. Quisera te-los conhecidos. sou neto do irmão dele. (Carlos de Jesus Greijal)
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