Os jornais sofrem para construir a notícia de segunda-feira porque, aos domingos, quase nada acontece. Naquele domingo, dezembro de 1967, o jornal O SOL estava sem notícias. Otto Maria Carpeaux entrou na sala de redação. Trazia cópia de um telex, com as declarações de um diretor da Associação Comercial de Recife, propondo que as lojas abrissem sempre aos domingos, mas - que safado! - sem pagamento de hora extra aos empregados. Era uma notícia. Insossa, mas era. Carpeaux pediu que eu colocasse tempero nela, entrevistando gente de esquerda e de direita.
De esquerda, não foi difícil, mesmo num domingo à tarde, em plenas festas natalinas. Com ajuda do meu caderninho de endereços, telefonei para vários sindicalistas, que defenderam o dia de descanso e esculhambaram o comerciante pernambucano. Faltava ouvir a direita. Consegui o telefone de um cúmplice da ditadura militar, o ex-ministro da Fazenda, Eugênio Gudin. - "Ele está dormindo a sesta, chame mais tarde", me responderam. Eram 14:h00. Vamos deixar a direita dormir. Enquanto esperamos que ela acorde, aproveito, leitor, para te contar como O SOL nasceu e como é que eu fui parar lá dentro.
Nas bancas
O SOL circulou pela primeira vez no Rio de Janeiro, no dia 21 de setembro de 1967, como encarte do Jornal dos Sports, que até então só era lido por quem estava interessado em futebol, atletismo, natação, boxe, automobilismo, turfe, torneio de pelada e campeonato de cuspe à distância. Quando morreu seu proprietário, Mário Filho, a viúva, dona Célia Rodrigues, decidiu conquistar outros leitores e aceitou a proposta idealizada por dois grandes jornalistas: Reynaldo Jardim e Ana Arruda.
Reynaldo Jardim foi quem criou, em 1960, o Caderno B, do Jornal do Brasil e reformou muitos jornais em todo o país, inclusive A CRÍTICA, de Manaus. Por isso foi apelidado de macaco-inventor. Ana Arruda, sua cúmplice, pilotava os sonhos que juntos concebiam. Ambos observaram que todos os jornais se pareciam, que o leitor estava desinteressado, que o modelo jornalístico dominante no país não dava mais no couro e precisava ser implodido. Era necessário inovar a linguagem, a pauta, a temática, a diagramação e até mesmo a organização editorial. Conceberam, então, O SOL, uma espécie de jornal-laboratório, destinado a ser campo de experimentação para jornalistas estreantes, supervisionados por profissionais experientes.
O novo jornal ficou muito conhecido, porque na música Alegria Alegria, tocada em todas as rádios, Caetano Veloso cantava: O SOL nas bancas de revistas, me enche de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia... É que Dedé Gadelha, sua namorada, estava entre os alunos-repórteres do novo jornal-escola escolhidos em disputado concurso, organizado em três fases: uma redação sobre a nova moda da mini-saia, uma prova com perguntas sobre a atualidade e uma entrevista. No final, apenas 50 foram aprovados, ficando automaticamente inscritos no curso intensivo de um mês, dado por jornalistas tarimbados, como Otto Maria Carpeaux, que se tornou conselheiro do jornal, Zuenir Ventura, Cony, Martha Alencar e outros.
Otto Carpeaux
Ah, onde é mesmo que nós estávamos? Na entrevista com o Eugênio Gudin. Chamei-o pela segunda vez, às 15:h00, mas ele continuava dormindo o sono dos justos. Portanto, leitor, temos tempo para que eu te apresente o Carpeaux, uma figura sagrada e consagrada do jornalismo brasileiro.
Quando ele nasceu, em Viena (Áustria), em 1900, filho de pai judeu e mãe católica, recebeu o nome de Otto Karpfen. Estudou física, química, matemática, filosofia e letras e doutorou-se em ciências naturais pela Universidade de Viena, sobrando ainda tempo para se dedicar à música. Durante a invasão da Áustria pela Alemanha, em 1938, viu os nazistas estuprarem um parente e, traumatizado, ficou gago pelo resto da vida, gagueira que não o impedia de falar, ler e escrever em mais de dez línguas europeias, incluindo o galego e o servo-croata.
Em 1939, fugiu da Alemanha nazista para a Bélgica e no ano seguinte fixou residência no Brasil, já com o nome de Otto Maria Carpeaux. Foi morar no interior do Paraná. Depois, já no Rio, colaborou com o Correio da Manhã até 1965. Erudito, escreveu vários livros sobre a história da literatura ocidental e sobre a história da música. Morreu em 1978, infartado.
Naquele domingo de dezembro de 1967, às 16:h00 horas, a edição estava sendo fechada. Carpeaux me deu prazo de dez minutos para entregar a matéria. Telefonei pela terceira vez, mas Eugênio Gudin continuava roncando. Então, resolvi inventar - o que não requeria muita imaginação - pois eu sabia que ele era economista e engenheiro, carioca, tinha 81 anos de idade, era ex-superintendente da Great Western of Brazil Railway Co., ex-delegado do Brasil na Conferência Monetária de Bretton Woods em 1944, ex-diretor do FMI em 1952, dois anos antes de ser ministro da Fazenda no Governo Café Filho. Professor de economia monetária e bancária, havia escrito vários livros sobre o tema.
Macunaíma
Na entrevista inventada, fiz Gudin declarar solenemente, entre aspas: "Concordo com a abertura do comércio aos domingos sem pagamento de horas extras aos comerciários". Para dar mais autenticidade, extrai umas expressões em economês da coluna que Gudin publicava no jornal O Globo, e coloquei em sua boca, algo assim como: "Estou certo de que as consequências disso sobre a propensão a poupar e a relação capital-produto serão benéficas". Entreguei a matéria, me achando muito espertinho.
Carpeaux tinha o dom do humor, da alegria e da fúria, segundo o seu amigo José Lino Grunewald. Gostou muito da matéria, sobretudo porque pensava que eu havia arrancado aquelas declarações abomináveis de um super-reacionário. Elogiou o texto, mas me pediu uma inversão: Gudin devia aparecer no primeiro parágrafo e no próprio título. Fiquei assustado. "No título não pode", disse e confessei que nada daquilo havia sido dito.
- De onde, então, você tirou isso? – perguntou Carpeaux.
- Não houve entrevista. Eu inventei – assumi fazendo inveja ao próprio Macunaíma.
Carpeaux ficou possesso. Escandalizado, deu um berro monumental, que ecoou por toda a redação, paralisando-a. Posso escutar ainda hoje o seu urro e o silêncio letal dos colegas. Seu olhar me fuzilava:
- Você não é um jornalista. Você é um men-ti-ro-so, ele gaguejava, apoplético, repetindo a palavra men-ti-ro-so, o que durou uma eternidade. (Carlos Heitor Cony jura, com carinho, que numa viagem que fizeram juntos do Rio a São Paulo, de carro, Carpeaux começou a falar o nome de Kierkegaard em Itatiaia e ki... ki.... ki...só conseguiu terminar em Taubaté. A mesma história é contada só que em companhia do poeta Carlos Drummond de Andrade).
Ética na mídia
Humilhado, recebi ordens para eliminar as mentiras. Antes, porém, arrisquei uma última ligação. Tive sorte. Gudin, o dorminhoco, enfim, havia acordado:
- O senhor concorda com a abertura das lojas aos domingos? E com o não pagamento das horas extras? Acha que isso influenciará positivamente a propensão a poupar e a relação capital-produto?.
Tive uma sorte danada, de novo. Ele respondeu: "sim" três vezes. Desliguei imediatamente o telefone. Devolvi a matéria ao Carpeaux, dizendo que podia publicá-la. A entrevista, que havia sido inventada, agora existia de verdade.
- Nunca mais faça isso, ele insistiu, mas publicou.
Como saber, aos 19 anos, o que é certo e o que é errado? Na guerra em que combatíamos, eu pensava que era válido mentir contra o inimigo: os fins justificam os meios. Otto Maria Carpeaux considerou isso uma monstruosidade. Sua opinião era incontestável, vinha de alguém insuspeito, que compartilhava conosco os mesmos inimigos. A reação dele, indignada, me deu lição que procuro cultivar: o jornalista, trabalhador da notícia, tem compromisso inarredável com a verdade. A mentira e a calúnia são procedimentos de quem, em vez de apurar os fatos, engana o leitor, desrespeitando-o, porque o faz engolir gato por lebre.
Costumava contar essa história – em que apareço como “bandido” - no primeiro dia de aula, no Curso de Jornalismo, para alunos da disciplina Ética e Legislação na Mídia, que ministrei durante anos na Universidade Federal do Amazonas e, depois, na Uerj, compartilhando com minha amiga Sônia Virginia Moreira. A história era o pontapé inicial para o debate sobre o código de ética.
Em toda redação, devia haver um Carpeaux. Todo jornalista devia trazer, dentro de si, um Carpeaux, questionando, dia e noite, permanentemente, sua conduta ética, lembrando-nos que inventar ou aceitar provas forjadas mesmo contra o pior crápula não é jornalismo. É delinquência.