But tell me: where do the children play?
Cat Stevens (1948- )
Parecia até uma decisão final do torneio Roland Garos. O domingo era ensolarado. A bola, nervosa, ia e vinha, quicando com extrema rapidez. No entanto, os dois tenistas, em vez de trajarem bermuda e camiseta brancas, usavam apenas um calção esfarrapado. As raquetes - pedaços de tábua rachada - reproduziam um ruído seco, quando golpeavam a bola. No lugar da rede de malha, uma corda. A quadra não era de cimento, nem de saibro, mas de asfalto irregular de uma rua pobre do bairro da Chapada, em Manaus.
Os tenistas - duas crianças pobres da periferia - foram agarrados, em pleno voo, pelo olho sensível e a lente atenta do fotógrafo Alberto César Araújo. A foto, publicada aqui em A CRÍTICA, há pouco mais de um mês, se não me falha a memória, registra um deles em ação. Parecia um quadro a óleo de Peter Bruegel, o pintor renascentista que, no século XVI, documentou meninos brincando nas ruas de Bruxelas, testemunhando, em cores truculentas, a forma como as crianças pobres se divertiam.
Esses dois meninos, molambentos, prováveis sobreviventes da Maternidade Balbina Mestrinho, têm algo de patético. É comovente a forma como organizaram o seu lazer dominical, inspirados talvez na imagem do tenista Gustavo Kuerten - o Guga - transmitida pela televisão. Tivessem um mínimo de condições, um dia poderiam - quem sabe? - ser campeões. Ali, no asfalto da Chapada, eram apenas uma pintura, um quadro da série 'Jogos Infantis' de Bruegel, o Velho, hoje fazendo parte do acervo do Museu de Viena.
O SONHO ALAVANCADO
Lembrei-me, ontem, da foto e de Bruegel - cujas imagens retratam o sofrimento popular - quando li a notícia de que o governo Amazonino Mendes, através da Secretaria de Cultura, Turismo e Desportos, destinou nos últimos dois anos 25 milhões de reais para os bumbás de Parintins. O pacote de investimentos do governo só para este 36º Festival Folclórico totaliza 6 milhões de reais, dos quais 1 milhão e meio foram doados ao Caprichoso e ao Garantido, segundo contrato firmado há três dias pelo secretário Robério Braga.
- Neste ano, uma das novidades são os elevadores e as escadas externas para os camarotes vips e centrais - gabou-se Berinho Braga, todo farofeiro. Se o orçamento do Amazonas fosse participativo, caberia perguntar à população: como devemos aplicar 25 milhões de reais de impostos arrecadados? Na construção de elevadores para os camarotes vips do bumbódromo? Em quadras de esporte para crianças pobres? Em equipamentos e remédios para a Maternidade Balbina Mestrinho? Ou em bibliotecas populares?
Taí: por que entregar de mão beijada em dois anos 25 milhões para o Garantido e o Caprichoso - com todo o respeito que eles merecem - e não dar um só centavo para bibliotecas? Em sua tese de doutorado na PUC de São Paulo, Célia Barbalho comprova que a Turisbraga - órgão de cultura do Estado - não abriu uma só biblioteca pública no interior ou nos bairros de Manaus, não montou sequer uma estante de livros. Por que não discutimos publicamente os critérios de aplicação de verbas desta Secretaria?
Cultura, no Amazonas, virou sinônimo de turismo ou daquilo que a Turisbraga entende como tal, caracterizado por uma subserviência às "quadrilhas de turistas", tendo como modelo o "sucesso sulista". O seu lema é: aquilo que, na nossa opinião, é bom para o turista, é bom para a cultura. Nesta semana, durante a instalação do Conselho Municipal de Turismo de Parintins, Berinho Braga discursou, lambendo os beiços:
- Estamos alavancando o turismo na interface com a Prefeitura, como desejou Amazonino Mendes desde que construiu o bumbódromo.
O quê? 'Alavancar'? 'Interface'? Livrai-nos Deus Nosso Senhor de tais palavras. Mas o pior ainda estava por vir. Olhando nos olhos do prefeito Enéas Gonçalves, Berinho objetou - sim, leitor, porque Berinho não fala, não diz, não pondera, Berinho objeta:
- A municipalização do Turismo é a realização de um sonho que perpassou os últimos oito anos de minha vida.
Francamente, vá sonhar alto assim lá na banda da Bica! Vá perpassar assim lá na pote-que-pote.
Esses são os sonhos da política - digamos assim - cultural do governo Amazonino Mendes. Os recursos que deveriam ser empregados em atividades criativas, capazes de contribuir para a liberdade e o exercício da cidadania, são desviados para projetos populistas e eleitoreiros. Berinho constrói elevadores para a diversão de uma cambada de ociosos e chama isso de cultura. Organiza festivais de óperas de qualidade duvidosa, enganando meia dúzia de trouxas, e chama isso de cultura. Pobres tenistas da Chapada com suas raquetes de tábua rachada!
BALBINA, OUTRA VEZ
O Jornal do Amazonas - Canal 5 - na segunda-feira, dia 28, registrou mais uma denúncia de morte de um bebê na Maternidade Balbina Mestrinho. A mãe se chama Eliete, era sua quinta gravidez. Foi forçado um parto normal, o bebê nasceu em asfixia grave, evoluiu para encefalopatia hipóxico-isquêmica, ficou na UTI por 12 dias e, por fim, o óbito.
Segundo o relato da mãe, enquanto ia visitar o seu bebê, sempre lhe diziam que ele estava bem. Na última vez que o viu ainda com vida, estava somente respirando com a ajuda de aparelhos. No dia seguinte recebeu um telefonema do hospital comunicando que havia falecido. Dirigiu-se para lá, mas não conseguiu sequer velar o corpo, que foi levado diretamente para ser sepultado. Carro, caixão, tudo do enterro havia sido providenciado. O bebé de dona Eliete é mais um número na estatística.
A situação já foi denunciada pela doutora Luíza Mendonça, assustada com o índice de mortalidade três vezes maior do que a média nacional: 76 mortos em dois meses. Esta coluna repercutiu a denúncia. A direção da Maternidade, em vez de tomar providências, organizou abaixo-assinado, 'em defesa da instituição', procurando confundir a Balbina - que é permanente, com sua atual direção - que é passageira. É o velho truque do Toninho Malvadeza: as críticas a eles são consideradas 'ofensas à Bahia'.
A Balbina é um patrimônio do povo amazonense. Afinal, quem é que a está atacando e denegrindo? A doutora Luíza, que arrisca sua própria pele para melhorá-la? Os funcionários que, em condições precárias, a constroem com seu suor e trabalho, de forma anônima? Ou a atual direção, mais preocupada em manter-se nos cargos do que em impedir o sucateamento da instituição?
Não podemos confundir dar a luz com dar à luz. Nesses tempos de apagão, a Maternidade Balbina, para diferenciar-se da hidrelétrica do mesmo nome, devia ser rebatizada como Maternidade Adma Guerrero, enquanto sua atual direção não for mudada. Para os alienados, que não veem novela, Adma Guerrero é o personagem vivido pela atriz Cássia Kiss, que matou, por envenenamento, metade do elenco da novela "Porto dos Milagres".
O tio do vizinho do meu sobrinho "Pão Molhado", funcionário da Maternidade, me escreve, informando que dona Judecélia Ramos dos Santos, Chefe do Setor de Pessoal, passou a semana toda 'coletando' assinaturas para um abaixo assinado, respondendo à coluna Taqui Pra Ti. Muitos funcionários, pressionados, assinaram mesmo discordando do conteúdo.
"O documento propõe que você visite a Maternidade, em vez de ficar falando sobre o que não conhece. Sugira, então, que sejam abertas as portas da instituição aos repórteres dos jornais, rádios e canais de televisão e que eles possam falar a sós com os funcionários, sem a presença do pessoal da direção. Que os jornalistas, incluindo o Brás Silva, do 'Ponto Crítico', visitem o CPD, que é o setor que dispõe de muitas informações, ocultadas pela Direção Geral".
A sugestão está feita, em nome do filho da dona Eliete que nunca poderá jogar tênis na rua, usando uma pedaço de tábua rachada como raquete..