« Eu quero ser enterrado, como meus antepassados,
No ventre escuro e fresco, de uma vasilha de barro».
(Gonzalo Benitez, poeta equatoriano)
Durante mais de mil anos, os moradores da margem esquerda do rio Negro, próximo a sua foz, reverenciaram como sagrado aquele pedaço de chão, que começava num terreno alto à beira do rio e se prolongava até o igarapé de São Vicente. Lá, sucessivas gerações de índios enterraram seus mortos, dentro de igaçabas - um pote feito de barro cheiroso, com boca larga e bojo grande. Era lá, nesse templo a céu aberto, que celebravam as cerimônias religiosas, os ritos e as pajelanças, tocando flautas, dançando, cantando e rezando.
Esse lugar sagrado foi profanado pela primeira vez num sábado, em junho de 1542, na véspera da Santíssima Trindade, por Francisco Orelana e seus soldados espanhóis. Eles desciam, famintos, pelo rio Amazonas, quando viram uma povoação, com malocas imponentes, amplas e arejadas, ao lado do cemitério. Invadiram a aldeia, incendiaram as malocas, mataram muitos de seus moradores, saquearam as roças, roubando os alimentos que encontraram. Depois foram embora, deixando os índios chorando seus mais recentes mortos.
O BERÇO DE MANAUS
Durante mais de cem anos, os europeus retornaram muitas vezes, transitando pela área em viagens exploratórias ou em expedições para escravizar índios. Numa delas, os portugueses decidiram ficar. Foi lá, justamente, em cima do cemitério indígena, que o capitão Francisco da Mota Falcão começou a construir, em 1669, o Forte de São José do Rio Negro, um prédio quadrangular, de barro, madeira e taipa socada, combinado com paredes grossas de pedra, erguidas graças ao trabalho compulsório dos Baniwa, Baré e Passé.
O barro usado na construção militar foi retirado, ironicamente, dos potes destruídos e das sepulturas violadas do cemitério indígena. Camadas de entulho soterraram outras igaçabas nas profundezas do subsolo, como uma tentativa de apagar definitavamente da memória dos índios, dos mestiços e de seus descendentes qualquer lembrança da existência daquele lugar sagrado. Profanaram a morada dos mortos, perturbaram seu descanso eterno e tripudiaram sobre os restos mortais dos vencidos, com a intenção deliberada de silenciá-los.
O forte, mal equipado, com quatro canhões enferrujados de calibre 1/3, funcionava como um « curral de índios », que ficavam aí aprisionados, para depois serem levados a Belém, como escravos. Pouco a pouco, casas de palha foram sendo construídas ao redor dele, formando um pequeno núcleo populacional, denominado ´Lugar da Barra´. No final do século XVIII, aquele lugar, antes sagrado e depois profanado, abrigava 40 fogos, com 301 moradores, sendo 243 índios, 47 brancos e 11 escravos negros. Foi ali que nasceu Manaus, naquela mistureba de cemitério indígena com quartel lusitano.
A PRAÇA DOS PODERES
Quando Manaus foi elevada à categoria de cidade, em 1848, o viajante italiano Gaetano Osculati procurou o Forte, mas não o encontrou de pé. Só havia ruínas, destroços e um terreno abandonado, pomposamente denominado de Largo do Quartel. Lá, ele viu um pelotão de soldados, em treinamento, marchando, só de calção, quebrando com os pés descalços as bordas de igaçabas vermelhas e alaranjadas que assomavam na superfície do solo. Com a ajuda das escavações feitas pelas chuvas, elas afloravam, teimosamente, dando um testemunho silencioso de que aquele espaço continuava ainda sagrado.
A morada dos mortos foi novamente profanada no final do século XIX, durante o processo de urbanização da cidade, planejado por Eduardo Ribeiro, no período áureo da borracha. Ele remodelou o antigo Largo do Quartel, rebatizado como Praça D. Pedro II, mandando nivelar as ruas do entorno. Na primeira escavação, apareceram centenas de urnas funerárias, proclamando que aquele espaço havia sido humanizado anteriormente pelos índios. No entanto, as igaçabas foram, uma após outra, destruídas pelas máquinas e, uma vez mais, soterradas por toneladas de entulho, comandadas pela burrice humana.
A partir de então, o espaço sagrado dos índios, militarizado pelos portugueses, foi gradualmente se transformando no miolo do poder local, sediando os aparelhos de Estado, numa prova de que havia, em certo sentido, uma continuidade espacial entre o que se estava construindo e o que se destruía. De espaço religioso, tornou-se o templo da política, depois de sediar as armas.
Ali, no lugar do forte, foi edificado o prédio da antiga Secretaria de Fazenda, mais tarde transferido para a Administração do Porto de Manaus. No cemitério indígena, o casarão que servia de cadeia e delegacia de polícia deu lugar ao Palácio Rio Branco, que se tornou sede do Poder Legislativo, depois de abrigar a Secretaria de Justiça. De frente para a praça, ficava o Paço da Liberdade, inicialmente sede do Governo do Estado e depois da Prefeitura Municipal. Na esquina da rua Governador Vitório, o Hotel Cassina. Do outro lado, foi erguido o IAPETEC, o nosso ´Empire State Building´, durante anos o mais alto da cidade.
OS MORTOS FALAM
Todas essas construções revelaram centenas de igaçabas. Cada vez que se cava um buraco no espaço sagrado dos índios, onde Manaus nasceu, as urnas funerárias brotam do solo, como se fossem cogumelos. O que aconteceu com os prédios públicos, ocorreu também nos particulares, como a casa do espanhol conhecido como Chico das Alvarengas, na rua Bernardo Ramos, ao lado do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas, em cujos alicerces foi encontrada em 1940 uma urna, com muitas miçangas coloridas e dentes de animais, como documentou Agnello Bittencourt.
Hoje, não existe qualquer vestígio do Forte de São José do Rio Negro, cuja edificação foi feita há três séculos, nem sequer uma pedra para testemunhar sua existência. No entanto, o cemitério indígena, datado pelos arqueólogos como tendo entre 1.000 a 1.500 anos, continua a exibir provas documentais de sua existência. Em maio do ano passado, durante remodelação da praça D. Pedro II, restos mortais de índios manifestaram, uma vez mais, sua presença. Desta vez, não foram destruídos, mas levados para o laboratório do Museu Amazônico, onde passam por processo de conservação e restauro.
Nesse momento, várias instituições discutem as alternativas para impedir que, uma vez mais, a memória dos índios e da cidade seja soterrada pelo entulho da burrice e da prepotência. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) está lutando para preservar o patrimônio cultural manauara, juntamente com o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Ministério Público Federal (MPF)
Já existe um projeto de intervenção arqueológica na Praça Pedro II, de autoria do pesquisador da USP, Eduardo Góes Neves. Uma das alternativas possíveis é a musealização daquele lugar sagrado, que revela a sua história de mais de um milênio, com a incorporação de réplicas das urnas funerárias na paisagem urbana, « aumentando em muitos séculos sua profundidade histórica ».
A construção de um memorial no espaço que foi o berço de Manaus nos faz lembrar o discurso do presidente do México, Adolfo Lopez Mateo, na inauguração do Museu Nacional de Antropologia, em 1964. Ofereço aqui aos leitores, com as devidas adaptações, um plágio descarado e assumido do texto, que foi gravado num pedestal de mármore na entrada do Museu. Ele reflete muito bem o que poderia ser o espírito do Memorial da Cidade de Manaus:
« O povo amazonense ergue este monumento nesse lugar sagrado, em honra das admiráveis culturas que floresceram durante a era precolombiana, em regiões que são hoje território do Estado do Amazonas. Diante dos testemunhos daquelas culturas, o Amazonas de hoje rende sua homenagem ao Amazonas indígena, em cujo exemplo reconhece características essenciais de sua originalidade e de sua identidade regional ».
Esse memorial pode ser a melhor homenagem já feita a uma cidade como Manaus, que recebeu tantas cantadas, em prosa e verso, dos nossos melhores escritores, como Luiz Bacellar, Thiago de Mello, Márcio Souza, Aldisio Filgueiras, Aníbal Beça, Elson Farias, Erasmo Linhares, Jefferson Peres, Áureo Nonato e tantos outros. Em torno dele – quem sabe ? – os índios poderão voltar a cantar, a dançar, e a celebrar suas cerimônias religiosas e pajelanças, para nos lembrar o lugar sagrado onde a cidade nasceu. Dessa forma, os vivos recuperarão a memória e os mortos descansarão em paz. Amém.
P.S. - E o Lula, einh! Um ano e dois meses no governo e não demarcou ainda a Terra Indigena Raposa Serra do Sol. Durante a campanha, ele prometeu, ele prometeu..