Dois petistas - o deputado Lindberg Farias (PT/RJ) e o senador Delcídio Amaral (PT/MS) - tiveram seus relatórios aprovados, na última terça-feira, pelos seus colegas parlamentares, propondo esquartejar a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, localizada no nordeste de Roraima, beneficiando fazendeiros e arrozeiros que lá chegaram alguns milênios depois dos índios. Se fizermos as contas, o mapa oral da Maloca da Raposa é mais velho que a soma das idades dos avós de todos os deputados e senadores.
Numa sociedade independente da escrita, o relato oral equivale a uma escritura registrada em cartório. Cada pedra ali foi tombada e patrimonializada pelas culturas indígenas. No caso de Roraima, as narrativas orais constituem uma espécie de mapa do território habitado, desde tempos imemoriais, pelos índios, o que é reforçado pelos vestígios arqueológicos
Os relatos indígenas contam que dois irmãos prenderam uma raposa que, muito esperta, fugiu. Eles foram procurar os rastos, mas o chão estava limpinho. "Como é que ela pode ter desaparecido sem deixar rastos?" - perguntaram, intrigados. Ai, eles viram a terra mexida e descobriram que a raposa havia cavado um buraco, como um tatu. Então, seguiram o túnel por todo o lavrado, chegando nas serras, onde viram a raposa tentando furar uma rocha de uma caverna. Conseguiram, finalmente, agarrá-la.
Depois disso, o mundo mudou. Os dois irmãos mataram e cortaram a raposa em três pedaços, que viraram pedra. De dentro das pedras, começou a sair água, que se enfiou pelas rachaduras da serra e se espalhou pelo lavrado, formando um igarapé. Isso foi há muito tempo, mas até hoje, ainda estão lá pra quem quiser ver: a caverna, as três pedras enormes, o igarapé, as serras vizinhas e a maloca. Por isso, o igarapé se chama, justamente, Igarapé da Raposa; as serras são Serras da Raposa, e a maloca, Maloca da Raposa.
O mapa oral da 'Raposa'
Essa história aqui resumida, narrada pelas pedras, locais de memória, vem sendo transmitida há muito tempo, de geração em geração. Foi contada no final do século XIX ao tuxaua Zeca Viriato pelo seu avô. O tuxaua, por sua vez, repassou pra seu filho mais velho, Gabriel Viriato Raposo, que nasceu lá, na Maloca da Raposa, por volta de 1920. O padre Sabatini Silvano ouviu a narrativa da boca do Gabriel em 1965, gravou e publicou tudo no livro "Ritorno alla maloca", em Bolonha, na Itália, em 1973. De lá foi retirada a versão, adaptada para o leitor do Diário do Amazonas, em maio de 2004.
O lavrado, por onde a raposa fugiu, é a planície inundável com muito pasto natural, cobiçado hoje pelas fazendas de gado e pelos plantadores de arroz; as serras, aonde ela chegou, integram o Maciço das Guianas, que despertam atualmente a ambição dos garimpeiros em busca de ouro e diamante. Essas duas regiões constituem o território onde havia uma numerosa população antes da chegada do branco, habitada hoje por cerca de 15.000 índios Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona.
Os viajantes europeus e nacionais que visitaram a região desde o período colonial foram unânimes em testemunhar que os índios que aí viviam eram alegres, gostavam de festas, cuja duração ia até a última cuia de pajuaru, celebrando seus rituais, cantando e dançando. Criaram uma literatura oral refinada, que acabou enriquecendo a literatura nacional, inspirando o movimento modernista e contribuindo para a trama de obras pioneiras como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Cobra Norato, de Raul Bopp, entre outras. Este último ficou maravilhado quando descobriu os mitos indígenas:
"Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio."
Uma proposta indecente
Essa literatura oral, veiculada quase sempre em línguas indígenas e ultimamente em línguas europeias, foi em parte recolhida por viajantes e estudiosos, entre os quais o inglês Everard Im Thurn (1878), o francês Henri Coudreau (1883), o alemão Theodor Koch-Günberg (1911-1912), o norte americano Hamilton Rice (1924-1925), o suíço Alcuíno Mayer - um beneditino que viveu mais de 20 anos com os índios. Centenas de narrativas, produtos da fantasia e da criatividade coletivas - como essa que conta a origem da Maloca da Raposa - foram coletadas e publicadas, fazendo circular saberes e se constituindo em fonte inesgotável de beleza e de gozo estético.
Toda essa literatura, essas línguas, esses saberes estão agora ameaçados, porque os índios que os guardam podem perder a terra, que lhes permite sobreviver e reproduzir suas culturas. O Senado e a Câmara aprovaram relatórios que propõem decepar cerca de 45% do território indígena, destinando uma parte aos arrozeiros que grilaram as terras, a outra para sede do município de Uiramutã, criado ilegalmente em 1997 para servir de base de apoio ao garimpo e, finalmente, uma faixa de terra de 15 quilômetros ao longo da fronteira com a Venezuela e Guiana para "resguardar a soberania nacional".
O mais grave nessa história é que os dois relatores que fazem essa proposta indecente não são parlamentares do PFL (viche! viche!), um partido filhote da ditadura militar, com atuação política marcada contra os interesses populares. Não! Eles pertencem ao Partido dos Trabalhadores, que tantas esperanças despertou nos setores oprimidos da sociedade brasileira, entre eles, os índios. O próprio presidente Lula, que devia homologar a demarcação da terra indígena em áreas contínua, adiou a sua decisão. Se ele ouvir os dois parlamentares do seu Partido, os índios estão fritos. E o Brasil, com sua sociodiversidade reduzida, ficará mais pobre.
A segurança nacional
Estou tentando entender, leitor, por que um deputado federal e um senador, ambos do PT – um partido de cuja fundação participei - prejudicam o setor mais frágil da sociedade brasileira, que vem sendo brutalizado há quinhentos anos? Fui presidente do PT no Amazonas, mas agora, eleitor no Rio, estou arrependido de ter votado em Lindberg. Votei pensando que ele ia defender os lascados e não o agronegócio. O que é que o PT ganha em propor que se cometa um crime contra a cultura brasileira e contra os índios, usurpando suas terras, legalizando a grilagem dos fazendeiros e os caminhos dos garimpeiros? Quais são os argumentos que apresenta para justificar tal posição? Quem é Lindberg e Delcídio, que aderiram ao PT muito depois de sua fundação? São confiáveis?
Não li nenhum dos dois relatórios, na íntegra, mas acompanhei, como todo mundo, as justificativas do deputado Lindberg Farias, publicada nos principais jornais do país e ouvi sua fala na televisão. Ele alega que 1,67 milhão de hectares é muita terra pra pouco índio, que Roraima vai ficar sem uma parte importante do seu território, e que os índios tem de ser retirados da área de fronteira, porque "falam a mesma língua dos índios da Venezuela, constituindo um único povo, uma única nação, o que afeta a soberania nacional".
O que afeta a soberania nacional é o fato de Lindberg e Delcídio falarem a mesma língua dos arrozeiros. Esse tipo de 'argumento' é cretino e inaceitável, porque trata os índios como "inimigos da pátria". Omite que na área de fronteira, além das terras indígenas, há também muitas grandes fazendas particulares, propriedades de poucos indivíduos recém-chegados, o que certamente lhes confere poderes e direitos sobre aquele pedaço de chão. Por que, então, Lindberg não diz que a propriedade privada nessa área afeta a soberania nacional? Por que não discute que é muita terra para um único fazendeiro? Por que, nesse caso, não fala que o Estado de Roraima fica desfalcado e diminuído?
Depufede cara-de-pau
Lindberg omite também que os índios - ao contrário dos fazendeiros - não são os donos da terra, mas apenas detém a sua "posse permanente". De acordo com a Constituição, as terras indígenas são "bens da União", ou seja, o Estado exerce plena soberania sobre elas. Portanto, as terras indígenas não colocam em risco a segurança nacional, nem "diminuem" o tamanho do Estado de Roraima. Lindberg agride a nossa inteligência ao ressuscitar argumentos usados pela ditadura militar, que foram ridicularizados em todo o país. Nenhuma pessoa honesta, de bom senso, com capacidade de raciocinar, acredita que 15 mil índios desarmados, pacíficos e de boa índole possam ameaçar a segurança nacional.
Depois de confundir os conceitos elementares de 'estado' e 'nação', por má-fé, por burrice ou por interesse, Lindberg defende os fazendeiros e plantadores de arroz, que estão dentro da terra indígena - coitados! - porque foram incentivados a ocupar a área pelo próprio governo e, portanto, não podem ser expulsos assim da noite pro dia, é preciso garantir os direitos que adquiriram, as benfeitorias que fizeram, da mesma forma que os moradores na sede do novo município devem também ser protegidos pelo Estado, porque afinal todos eles são brasileiros.
Não existe nenhum argumento - NENHUM - que justifique tomar as terras dos índios. A Constituição brasileira é bem clara, quando considera "nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas". Se Lindberg está tão sensibilizado com os prejuízos dos plantadores de arroz, que proponha então uma boa indenização a eles, de preferência descontada mensalmente dos salários dos parlamentares. Mas que não obrigue os índios a pagar mais uma dívida, que eles já pagaram durante cinco séculos.
Lindberg, ex-presidente da UNE em 1992-1993, surfista que montou na onda do movimento dos 'caras-pintadas' para se eleger deputado federal, na realidade não passa de um cara-pálida, que quer mostrar serviço aos que tem grana e poder. Enquadra-se naquela categoria criada pelo saudoso Stanislaw Ponte Preta, que chamava de "depufede" os deputados federais oportunistas, que usam o mandato em benefício próprio e não da população que os elegeu.
O depufede Lindberg, ex-cara-pintada, quer ser prefeito de Nova Iguaçu, aqui no Rio de Janeiro. Para isso, mancha a história da UNE, aliando-se com o que existe de mais podre na sociedade brasileira. Vai pagar caro por esse relatório contra os índios. Periodicamente, dou aulas em cursos pré-vestibulares para negros e carentes em Nova Iguaçu. Prometo aos meus amigos Makuxi e Wapixana - Terêncio, Euclides, Clóvis, Waldir, Valdemar e tantos outros - que infernizarei a vida desse depufede, panfletando lá onde ele vai pedir voto, para mostrar sua cara despintada, que revelou a cara-de-pau de um cara-pálida oportunista.
P.S - Depois de governar o Brasil por 485 dias, Lula ainda não demarcou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
NOTA POSTERIOR
Este artigo acabou repercutindo fora de Manaus, sendo republicado no Rio de Janeiro pelo ‘Jornal dos Economistas’ (nº177), órgão do Conselho Regional de Economia, além de ter sido traduzido ao italiano e circulado em Roma.
O deputado Lindberg, que é candidato a prefeito de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, não gostou da crítica, nem da sua repercussão. Contra-atacou no mesmo jornal (nº 178), com um artigo de título bombástico: “Guerra na Floresta: a quem interessa”? Mas em lugar de discutir a questão central - os índios têm ou não têm direito à terra? - ele fugiu do assunto e passou a discorrer sobre a pessoa que batuca essas mal traçadas linhas, me acusando de “passional”, “equivocado” e “claramente impregnado do mito do bom selvagem”.
Sem apresentar qualquer documentação ou prova de apoio à sua proposta, o deputado, parece que impregnado pelo mito do “mau selvagem”, preferiu reafirmar o preconceito grosseiro contra as universidades, desqualificando os centros de pesquisa, onde “as pessoas costumam estudar a teoria das coisas e não a sua práxis, o que é muito comum na academia frequentada por Bessa Freire”.
Em nenhum momento, Lindberg contestou os dados históricos. Aproveitou, no entanto, para me condenar, jurando que estou “protegido por milhares de quilômetros que separam a floresta da cátedra refrigerada da universidade” onde trabalho e que, por isso, não tenho noção do que está acontecendo em Roraima, onde, segundo ele, eu jamais pisei. A “acusação” é tão bobinha, que não merece qualquer comentário, não vou aqui enumerar a minha convivência com os índios de Roraima, in loco, desde 1977. Nem que na Uerj não temos ar condicionado. Ele está confundindo com os gabinetes dos depufedes.
Enfim, o deputado Lindberg desviou o tema central da discussão - a demarcação das terras indígenas - usando para isso o recurso manjado do “argumentum ad personam”, isto é, sem condições de defender sua proposta com argumentos, tentou desqualificar quem o criticava. Não vou apresentar meu curriculum vitae para o depufede Lindberg. Supondo que eu seja mesmo um estrangeiro, que desconheça Roraima, que nunca tenha visto um índio, que viva em gabinetes refrigerados, a pergunta é: em que isso diminui o direito dos índios sobre a terra?
Na realidade, não existe nenhum argumento honesto, coerente e legal – nenhum – que justifique tomar a terra dos índios. Por isso, o depufede Lindberg fugiu do assunto, preferindo tagarelar em torno de questões periféricas, ameaçando com uma “guerra na floresta”, se o presidente Lula homologar a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em áreas contínuas.
O jornalista Nilo Sérgio Gomes, editor do Jornal dos Economistas, responsável também pelo Programa “Manhã de Notícias”, da Rádio-MEC/AM do Rio de Janeiro, resolveu esclarecer essa questão. Fez um convite – a mim e ao deputado Lindberg - para debatermos a questão da demarcação das terras indígenas de Roraima. Lindberg disse que aceitava, mas na hora do programa entrar no ar, fugiu do pau, alegando uma emergência. Dias depois, o convite foi renovado, ele disse que aceitava, mas desapareceu pela segunda vez. Quarta-feira passada, pela terceira vez, ele jurou que estaria presente, mas também fugiu.
No artigo “Cara pintada, cara pálida ou cara de pau?” eu me perguntava por que um deputado federal, eleito pelo Partido dos Trabalhadores, cujo programa defende claramente o direito dos índios sobre o seu território, mudava de lado e passava a representar o interesse dos grileiros, dos grandes fazendeiros e dos invasores das terras indígenas. O que é que ele ganha rasgando o programa do seu partido, traindo seus eleitores e prejudicando um dos setores mais frágeis e mais injustiçados da sociedade brasileira?
A resposta foi dada nos jornais cariocas da última sexta-feira, que noticiaram as alianças políticas feitas em vários municípios fluminenses. O diretório municipal do PFL (viche! viche!) de Nova Iguaçu decidiu se aliar com o PT local, apoiando assim a candidatura de Lindberg Farias para prefeito. O relatório propondo entregar as terras dos índios aos fazendeiros, elaborado pelo depufede Lindberg, tinha a finalidade de costurar uma aliança espúria, mostrando aos setores mais retrógrados do país que ele – Lindberg – era um homem confiável, além, é claro, de obter recursos para a campanha.
Agora, Nova Iguaçu é o palco de uma aliança inédita, que é capaz de prosperar se os oportunistas e picaretas tomarem mesmo conta do PT. Lindberg, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, José Carlos Aleluia e Pauderney Avelino, o mesmo combate! Francamente, não dá nem tesão para discutir. Dá vontade mesmo é de baixar o nível e dizer ao deputado fujão: Lindberg, vai cheirar teu pé, vai! O que mais a gente pode dizer para ele, leitor (a)?