De longe, eu te avistei, meu maninho, meu irmão, com tua boca desdentada, teu ar subnutrido e tuas sandálias havaianas, caminhando pelas ruas da Compensa nesta segunda-feira, ao lado do candidato a prefeito, Amazonino Mendes. Observei quando um grupo de moradores, do qual fazias parte, improvisou uma coroa de papel dourado, colocou sobre a cabeça do candidato e começou a gritar em coro, numa cena patética, carregada de simbolismo:
- “Rei da Compensa! Rei da Compensa!”.
Depois da cerimônia de “coroação”, vi quando o séquito percorreu as vielas do bairro, subiu a rua da Paz, entrou na Amazonas, pegou a 1º de Maio e foi acabar na Dez de Julho, onde aconteceu um mini-comício. Lá, o ‘novo rei’ discursou para os seus “súditos”, usando uma frase pomposa, cujo significado só poderá ser decodificado pelo sociólogo francês Jean Baudrillard:
- “Não posso viver longe do meu povo, por isso estou novamente aqui como candidato”.
Reparei, meu maninho, meu irmão, que tu estavas entre os que aplaudiam com mais entusiasmo.
A Coroa do Rei
Lendo os jornais que noticiaram a caminhada da Compensa I, comecei a cantarolar uma marchinha, que era muito tocada nos carnavais da década de 50, na voz do saudoso Francisco Alves:
- “A coroa do rei, não é de ouro, nem de prata. Eu também já usei e sei que ela é de lata”.
Cantei até o último verso, confirmando que a coroa era mesmo “de lata barata”, não valia um vintém. Na música como na vida. Cantei alto, mas tu não me ouviste, meu maninho, meu irmão, porque estamos muito distantes um do outro.
Resolvi ficar mais perto e acompanhar o séquito durante toda a semana. Na quarta-feira, registrei a chuva que inundou muitas casas da periferia de Manaus, jogando lama dentro delas. Depois, no comício do Mutirão, lá estavas tu, aplaudindo os legítimos representantes da ‘nobreza de lata’ manauara. Em cima do palanque, as cabeças ‘coroadas’, as barrigas proeminentes; em baixo, as bocas desdentadas, a fome, a miséria e a desinformação. A condição para que os de cima fiquem por cima é que mantenham os de baixo lá embaixo. Tu estavas lá embaixo, meu maninho, meu irmão.
Aí, a alteza real, já sem sua coroa de lata, discursou, lembrando que o seu reino era desse mundo, que ele fazia e acontecia, que havia construído o Mutirão, porque tinha “uma alma gêmea do povo”. Com um estilo capaz de despertar inveja em Abelardo Barbosa Chacrinha, perguntou:
- “O Mutirão quer creche? Então vai ter. O Mutirão quer pré-escola? Então vai ter”.
Uma vez mais vi que tu, meu maninho, meu irmão, acreditavas na retórica vazia, naquilo que ouvias.
Fiquei, então, com pena de ti, de mim, de nós. De ti, meu maninho, meu irmão, porque estás desinformado, e tua desinformação te leva a agir contra os teus interesses históricos, te faz votar no atraso e no engano, não permite que percebas quem são teus reais aliados e quem são teus inimigos. De mim, porque do lugar onde estou dá para ver o que acontece, mas sou um pobre coitado e não encontro o caminho para te ajudar a abrir os olhos, como outros ajudaram a abrir os meus. De nós, porque podemos pagar caro, entregando nossa cidade nas mãos de quem não pensa cuidar dela, mas apenas saquear os cofres públicos, como vem se repetindo nas últimas décadas.
Coroa de Lata
Manaus é uma cidade – me lembra um leitor – com quase 2 milhões de habitantes. Movimenta aproximadamente 10 bilhões de dólares por ano. Possui um parque industrial com mais de 400 indústrias, que geram cerca de 80 mil empregos diretos, e rendem 2,79 bilhões de dólares aos cofres da União, o que corresponde a 60% da arrecadação do Norte.
O governo dessa cidade não deve continuar mais nas mãos de quem só pensa em enriquecer com os recursos públicos. Meu maninho, meu irmão, tu não podes mais seguir trocando o teu voto por rancho ou por trinta moedas de dinheiro como aquelas que Judas recebeu. Às vezes, por promessas que nunca serão cumpridas. Ou então te deixar influenciar por calúnias sórdidas manipuladas em programas de tv, num showmício de horrores comandado por delinquentes vinculados ao narcotráfico.
Querem manipular tua consciência! Tentam te enganar hoje em relação à cidade, como ontem te enganaram em relação ao país. Ontem, era um candidato a presidente da república que havia forçado o aborto de uma filha fora do casamento. Hoje, é um candidato a prefeito que cometeu adultério. O idealizador da calúnia é o mesmo indivíduo, pago a peso de ouro: Egberto Miranda Batista. Nos dois casos, não hesitou em aproveitar-se de pessoas fragilizadas, em estado de desequilíbrio psicológico, expondo publicamente suas misérias, para tentar desviar a discussão do seu foco central: um projeto de governo.
É verdade que com a vitória posterior de Lula para presidente da República, Egberto decaiu bastante, deixando de ser uma figura sinistra federal para ser uma figura sinistra estadual. Se agora o teu voto decidir, meu maninho, meu irmão, contra essa armação, nas próximas eleições Egberto será municipalizado, irá trabalhar em Eirunepé, aonde fabricará amantes e filhas enjeitadas de algum candidato a prefeito de lá.
Agora, tudo depende de ti, meu maninho, meu irmão. O destino da nossa cidade, da qualidade de vida para ti e para teus filhos, depende apenas da tua capacidade de abrir os olhos, votar consciente e colocar uma coroa de verdade – não de lata – na cabeça de quem merece.
Como entender o teu gesto, meu menino, meu irmão, coroando um candidato como o ‘Rei da Compensa’?
O sociólogo francês Jean Baudrillard tem uma teoria de que as massas muitas vezes escolhem uma coroa de lata, colocando-a na cabeça de alguns eleitos só para rir secretamente do poder. Quanto mais grotesco e mais ridículo o governante, maior sensação de superioridade o eleitor tem individualmente, mesmo que possa sofrer o peso da ira dele.
Outro pesquisador, o brasileiro Muniz Sodré, depois de analisar a influência do grotesco na programação televisiva, no cinema, na literatura e na política, concluiu que o grotesco pode ter uma função alienante, mas também uma função crítica. Cabe a ti, meu maninho, meu irmão, decidir hoje, nas urnas, qual o sentido da cerimônia de ‘coroação’ ocorrida na Compensa.
P.S. - Lula governa há 669 dias e nada de homologar a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, promessa de campanha..