CRÔNICAS

A Lamparina Amazonense e o Candelabro Italiano

Em: 21 de Novembro de 2004 Visualizações: 13757
A Lamparina Amazonense e o  Candelabro Italiano

O carro-de-som desceu a avenida Eduardo Ribeiro, bem devagar, mas com o volume do alto-falante ligado ao máximo. A voz do locutor, cavernosa e metálica, mastigava cada sílaba, saboreava cada palavra, anunciando a boa nova aos quatro ventos, com muitos pontos de exclamação: 

- “Candelabro italiano, ô filme dô séculô!!! Você vai se emocionar com essa bela  história de amor!!! A professorinha americana, Prudence Bell, viaja para Roma. Busca aventura e romance. Encontra Don, um jovem estudante, e Roberto, um homem maduro. O coração partido ao meio! Ô tri-ân-gu-lô amorosô! Uma paixão ful-mi-nan-te dividida entre a juventude de um e a experiência de outro. Quem ela escolherá? Você vai descobrir que o destino reserva sempre uma surpresa para um coração apaixonado. Não perca! Candelabro Italiano, um filme de Delmer Daves! Hoje, nos melhores cinemas de Manaus”.

Os melhores cinemas de Manaus, em 1962, eram Odeon e Politeama, mas a avant-première foi no Ypiranga, lá na Cachoeirinha. A cidade devia ter o quê? Uns 150 mil habitantes? Era por aí. Segundo o Censo, Manaus tinha exatamente 149.833 moradores. Eu era um deles. Todos nós estávamos convidados pelo carro-de-som, que percorria os bairros, a ver a atriz Suzanne Pleshette interpretando na tela a professorinha. O locutor dizia que ela era uma uva: suculenta, glamorosa, bocuda, olhos de gata. Contracenava com o quarentão italiano Rossano Brazzi e com o jovem galã Troy Donahue, cabelos louros desalinhados, lábios carnudos, uma covinha na ponta do queixo. Todos eles, no entanto, ilustres desconhecidos.

Quem era, afinal, Troy Donahue no jogo-do-bicho? Um canastrão? O público amazonense ignorava, mas sabia muito bem quem era Edney Azancoth, o soldado romano que guardou o santo sepulcro, no drama ‘O Milagre do Calvário’. Ele havia acabado de ganhar o prêmio nacional de melhor ator, fazendo o papel do Cabo Lucas, na peça ‘Beata Maria do Egito’, apresentada em Porto Alegre, no IV Festival Estudantil de Teatro. Da mesma forma, o público se identificava muito mais com Maria de Nazaré Palheta – a Bia, do que com Suzanne Pleshette. Bia, a melhor atriz do Amazonas, encantava o público infantil do Teatro do Luso. Ficaria célebre a cena de ‘Zero Hora’, em que ela morria no palco, espumando com uma pastilha de sonrisal escondida na boca.

Portanto, se toda a população de Manaus viu ‘O Candelabro italiano’, em 1962, não foi por causa do elenco mixuruca, nem pela história água-com-açucar, nem tampouco pelo cenário com as eternas belezas culturais e arquitetônicas da Itália, incluindo as fontes das praças de Roma. Na verdade, o ponto forte do filme, responsável pelo seu sucesso, era a trilha sonora, que havia estourado em todas as rádios do Brasil:

-“Al di la, del bene piu prezioso, ci sei tu 

Al di la, del sogno piu ambizioso, ci sei tu”.

‘Al di la’. Foi o apelo romântico dessa música que encantou o público. Sua melodia fazia a imaginação voar por ares nunca dantes navegados. Ela estimulava o sonho:

- “Quando ouço ‘al di la’, sei que alguém que amei está pensando em mim naquele momento, está bem perto de mim”, declarou aos jornais o lanterninha do Odeon.

Era essa música que deixava todas as donzelas enlevadas, arrebatadas, extasiadas, e fazia com que os marmanjos suspirassem por um grande amor. Ela tinha um toque mágico. Por isso, ninguém mais se casava sem integrá-la ao repertório da cerimônia. Assisti em 1963 um casamento em Coari – veja bem, em Coari – onde a noiva entrava na igreja de Sant’Ana ao som de “Al di la, delle cose piu belle. Al di la, delle stelle, ci sei tu”. O noivo, se não me falha a memória, era alguém da família Barreto, em cujo cabeção havia um topete igual ao do Troy Donahue.

Nas nossas próprias famílias, a gente podia constatar como a vida imita a arte. Acontece que minha terceira irmã, de nome Ângela e de apelido Dile, viveu um drama parecido ao de Suzanne Pleshette. Dois pretendentes deram em cima dela. Um deles morava na rua Xavier de Mendonça, era o Zé Cavalo, irmão do Brás ourives, filho do Manuel Paraguai. O outro, ex-estudante de medicina do Rio de Janeiro, morava na Luiz Antony, era conhecido como Newton Bocão ou Doutor Newton.

Naquela época, o amor não vivia sem serenatas. Pois bem, no mesmo dia, sábado à noite, em momentos diferentes, os dois fizeram serenata para minha irmã. Acordamos às 23:30 horas com o Newton Bocão na porta de casa tocando um violão e cantando – adivinha o quê? Adivinhou. Meia-hora depois, chegou uma lambreta, cavalgada pelo Zé Cavalo. (É bom lembrar que no filme, o Troy Donahue andava pra cima e pra baixo numa ‘vespa’). Ele veio sem violão, mas com uma vitrola à pilha e um disco de vinil do Emilio Pericoli. Enquanto o disco tocava, Zé Cavalo recitava com voz trêmula a tradução ao português:

- “Al di là, del bene più precioso, ci sei tu. Além do bem mais precioso, existe você. Além do sonho mais ambicioso, existe você. Além das coisas mais belas, além das estrelas, existe você, para mim, para mim, somente para mim. Além do mar mais profundo, além dos limites do mundo, além da curva infinita, além da vida, existe você, Ângela. Além, muito além, existe você, só para mim, Ângela-la, la, la, la, la, la, la, la, la, la, la, la, la, la, la, la”.

Até hoje, quando me lembro, fico arrepiadinho. Passa a mão no meu braço, leitora, espia só como os cabelinhos estão todos em pé. A bilheteria vendeu mais de 200 mil entradas para uma cidade que só tinha 149.833 habitantes. É que as pessoas viam o filme mais de uma vez. O Zé Cavalo, por exemplo, assistiu 53 vezes e decorou cada cena. A Lenina, filha da dona Bebé, viu 18 vezes e chorou em todas elas. Naquele ano, o Parque Amazonense ficou vazio na final do campeonato estadual, disputada entre Rio Negro e Nacional, porque a torcida estava toda no cinema, ouvindo ‘al di lá’. Apenas quatro gatos pingados viram os gols de Dermilson e Thomaz Passa-Fome.

Quem atraiu o público foi a música. Na época, imaginei um filme, com meus atores prediletos: Bia no papel da Dile Pleshette, Edney interpretando o Zé Cavalo Donahue, e como Newton Bocão Brazzi, um ator amazonense que naquele ano de 1962 interpretou o personagem do ‘Feiticeiro Tucano’ na peça ‘A Enjeitada’, de Américo Alvarez. Seu nome: Félix Valois. (Depois, ele acabou trocando um palco por outro, ao assumir com muita competência um escritório de advocacia). Aí, então, visualizei o carro de som descendo a Eduardo Ribeiro. O locutor, tendo como música de fundo ‘Al Dile lá’, anunciava: “ô filme dô século: a lamparina amazonense”. Ou então: “Não perca a Poronga Baré”. Ai que saudades dessa Manaus que se foi, onde a Bia, o Edney e uma trilha musical bastavam para alimentar os nossos sonhos.

P.S.- Lula governa há 690 dias e sequer explica as razões da não homologação da Terra Indigena Raposa Serra do Sol, que foi promessa de  campanha. 

.Essa crônica foi republicada em 2013 e vai dedicada a minha irmã Dile, que nesse ano completou 68 anos bem  vividos, depois de haver arrebatado corações de todo o bairro de Aparecida, dando bom exemplo pra sua filha Sandra.

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2 Comentário(s)

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aurelio michiles comentou:
08/03/2013
Babá, crônica arebatadora e comovente. Estou pensando no Edney, este sim, amava o Teatro como poucos.
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Daniel comentou:
25/12/2010
Meu irmão amazonense,fiquei maravilhado com sua cronica mas eu, daqui de São Paulo, gostaria de saber que fim teve naquela época o coração de sua irmã? (25.12.2010).
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