Na quarta-feira passada, dia de Nossa Senhora da Conceição, foi lançado em Brasília o livro “Rio Babel: a história das línguas na Amazônia”, que conta como é que nós, amazonenses e paraenses, começamos a falar português, e o que aconteceu com as línguas indígenas. A noite de autógrafos, organizada pelo Núcleo de Estudos da Amazônia da UNB, foi antecedida por uma palestra no auditório Darcy Ribeiro sobre língua e literatura indígena, feita pelo autor do livro, que é esse locutor que vos fala.
Esse locutor que vos fala pensou, então, em aproveitar a coluna de hoje para oferecer aos leitores um relato detalhado do que rolou em Brasília, citando nominalmente as pessoas que compareceram ao evento, entre as quais pesquisadores especializados no tema e vários amigos, alguns deles parlamentares, outros com cargos no alto escalão do governo federal, conquistados com competência. Dessa forma, agradeceria publicamente a presença de todos aqueles que o prestigiaram e que o fizeram sentir-se querido e respeitado. E ainda por cima se autopromoveria.
No entanto, o locutor que vos fala, ao batucar essas mal traçadas linhas, começou a se questionar se era válido usar esse espaço para alimentar seu próprio ego e sua vaidade pessoal, quando tantas coisas verdadeiramente importantes estavam acontecendo – ou deixando de acontecer. Umas delas é a luta desigual que os índios de Roraima estão tendo para verem homologada a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.
O JABUTI E A ONÇA
Foi aí, então, que o locutor que vos fala resolveu mudar de assunto e fazer uma ponte entre o lançamento do livro e a situação de Roraima. Na palestra sobre língua e literatura na Amazônia, em Brasília, lembramos ao público presente as histórias narradas em uma língua de base indígena – o nheengatu - que foram coletadas no final do século XIX por vários estudiosos como Couto de Magalhães, Charles Hartt, Stradelli, Barbosa Rodrigues e Brandão Amorim.
As histórias relacionadas ao ciclo do jabuti são particularmente interessantes, sobretudo aquelas que contam a luta dele com outros animais. Um dia, ele foge da perseguição da onça, escondendo-se num buraco na raiz de uma árvore. A onça, no entanto, conseguiu agarrar a pata do bicho:
- Onça burra, segurou uma raiz pensando que é minha pata - blefou o jabuti.
A onça, então, soltou. Ele recolheu a pata rapidamente:
- Onça burra, era minha pata.
A onça ficou desesperada:
- Eu tenho que comer esse jabuti esperto, ou então eu não me chamo Raimunda.
Contratou como advogada a raposa, cujo escritório havia defendido o cordeirinho, acusado de corrupção. Combinou com ela uma armação. A onça ficaria deitada no meio do terreiro, fingindo que estava morta. A raposa chamaria todos os bichos da floresta para o velório. Quando o jabuti se aproximasse, a onça – créu! – daria um salto, agarraria o bicho de casco e o comeria.
Dito e feito. A raposa, muito bem paga, anunciou a morte da onça, convocando todos os bichos para o funeral e a missa de corpo presente. Os animais vieram em peso: macaco, anta, capivara, paca, tatu, cotia também. O jabuti foi um dos últimos a chegar. Ficou olhando de longe, desconfiado, sem se aproximar. A raposa convidou:
- Pode chegar perto, compadre. Ela está morta.
O jabuti, então, de longe, perguntou:
- Ela já arrotou e já peidou?.
A raposa chalubosa respondeu:
- Não. Precisa?.
- Claro que precisa. Meu avô, antes de morrer, deu um arroto e soltou dois peidos. Se a onça não fez isso, é porque ainda não morreu definitivamente, ponderou o jabuti.
A onça, no meio do terreiro, de canela esticada, ouviu tudo sem respirar. Aí, querendo provar que estava efetivamente morta, deu um arroto e soltou dois peidos. O jabuti meteu sebo nas canelas e correu para bem longe, gritando:
- Onça burra, defunto de verdade não arrota nem peida.
LITERATURA INDÍGENA
Couto de Magalhães ouviu uma versão dessa história no Pará, em 1864, contada pelo tripulante de um barco, um índio - que só de calção - dava “aulas”, enquanto os demais riam. Aí, ele entendeu, porque os índios contam histórias. Numa sociedade desescolarizada, as narrativas têm uma função educativa, elas ensinam, passam informação, estabelecem regras de valores e de comportamento, enfim, fazem aquilo que a escola faz em nossa sociedade. “Um povo que apresenta um animal feio e fraco como o jabuti vencendo a truculência da onça é altamente civilizado, porque está ensinando que a inteligência ganha da força bruta”. Ouviu bem, George Bush?
Essas narrativas fascinaram os estudiosos do final do século XIX. Barbosa Rodrigues, que foi diretor do Museu Botânico de Manaus, em 1872, registrou muitas histórias que falam de doenças e contam como se preparava os remédios para curá-las. Elas funcionavam como um curso de medicina e de farmácia.
Charles Hartt ouviu uma velhinha em Óbidos contar a história de um caçador que flechou uma veada recém-parida, que ainda amamentava. Quando foi apanhar sua presa, descobriu que havia sido vítima de uma ilusão do Anhangá: a veada que ele matou, era, na verdade, sua própria mãe. A história funcionava como um código de leis para a caça, estabelecendo regras para poupar a vida de animais que amamentavam, para não esgotar as reservas.
Muitas dessas narrativas inspiraram a linguagem e a trama de várias obras da literatura brasileira, sobretudo o movimento modernista. O livro escrito por Mário de Andrade – ‘Macunaíma’ – foi inspirado na tradição oral coletada em Roraima pelo alemão Koch-Grünberg. Depois de ler as narrativas publicadas pelo amazonense Brandão Amorim, filho de Alexandre Amorim, Raul Bopp, autor de ‘Cobra Norato’, escreveu:
- Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio.
Todas essas narrativas maravilhosas, portadoras de saberes, estão agora ameaçadas de desaparecer, se o Lula não homologar em terras contínuas a área da Raposa-Serra do Sol. Por isso concordo com o leitor Welton Oda que propõe um boicote ao arroz de Roraima, vendido por fazendeiros que invadiram as terras indígenas. Ele quer que a gente faça como o jabuti fez com a onça, usando nossa inteligência:
- Enquanto essa briga entre índios e fazendeiros não acaba, podemos como consumidores inteligentes, evitar o consumo do arroz produzido por esses genocidas. Em Manaus, circulam as marcas Faccio, Itikawa e Acostumado (entre outras). Não compre o arroz de Roraima. Ele está molhado com sangue indígena. Compre o do Centro-Oeste e do Sudeste.
Será que dessa forma o fazendeiro truculento peida?
P.S. - Lula governa há 711 dias e não homologou ainda como prometeu a Terra Indigena Raposa/Serra do Sol;