Nelson Cavaquinho tinha pavor da morte e acabou projetando essa angústia obsessiva nas letras dos seus sambas. Um dia, ele sonhou que morria às três horas da madrugada. Acordou aflito pensando em compor uma música. Aí, olhou o relógio, eram 2h:45. Pensou:
- É um aviso, vou morrer dentro de quinze minutos, não tenho tempo para mais nada.
Olhou a sola do seu pé, já estava amarelando. Teve, então, uma ideia luminosa: atrasou o ponteiro do relógio em várias horas. Desta forma, conquistou a tranquilidade necessária para escrever um dos versos mais bonitos da música popular brasileira:
- Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor.
Depois de ouvir uma versão dessa história contada por Adelzon Alves em seu programa na Rádio MEC, fiquei pensando em usar o truque do Nelson Cavaquinho para enganar a morte e o tempo. Atraso o relógio não em uma hora, mas em cinquenta anos, só para poder ver outra vez, desfilando pelas ruas de Manaus, uma camioneta com o desenho do Saci Pererê, cheia de gente cantando:
- Você diz que amor não dói / No fundo do coração / Tome amor e viva ausente, oi caboca bonita / veja se lhe dói ou não’.
Essa camioneta era uma das três – as outras eram o Zé Carioca e o Tininim – que fazia o transporte escolar do Instituto Christus do Amazonas, na época de sua fundação, há meio século. Os alunos iam e voltavam para suas casas, cantando e cantando. Lá fora, todo mundo curtia. Debruçada na janela, a moça feia pensava que cantavam só pra ela. A namorada, que contava as estrelas, parava para ver, ouvir e dar passagem. Parecia até uma banda de música, animando a vida da cidade.
Canto das crianças
Está aí uma das professoras do Christus, Luíza Sanches, que não me deixa mentir. Ela lembra:
- A nossa pequena cidade perdia um pouco de sua tranquilidade e ganhava muita alegria quando passavam as crianças cantando festivamente. As pessoas paravam para ver a passagem dos alunos de uma escola que teve a coragem de ser a primeira em Manaus a inovar em suas atividades pedagógicas.
Orígenes Martins confirma: “O Christus era uma escola que cantava em sala, no pátio de recreio, na rua, nos bairros, no transporte escolar, em atividades docentes”.
Era como se o Nelson Cavaquinho trocasse as bolas e fizesse um apelo à população de Manaus: - ‘Bote seu sorriso no caminho, que eu quero passar com minha alegria’. Cantava pelo prazer de cantar, mas graças a seu repertório selecionado, cantava também como um exercício de auto-conhecimento e de amor à identidade regional.
Qual o repertório que tanto encantava os moradores de Manaus? Era variado. Havia as canções infantis: o cravo brigava com a rosa; o Sambalelê ficava doente; o Pai Francisco entrava na roda tocando seu violão; o bom barqueiro dava licença pra gente passar; a Terezinha de Jesus se esborrachava no chão; o sapo cururu cantava, maninha, quando estava com frio; a canoa virava por causa da Dilma que não sabia remar; mas se eu fosse peixinho e soubesse nadar, eu tirava a Nega Nathércia lá do fundo do mar.
Tinha muito mais. Tinha carneirinho-carneirão, tinha Sinhaninha com sete saias de balão, tinha escravo de Jó, tinha a Renata bebendo água no Itororó, deixando o Carlos três noites sem dormir, porque havia perdido seu galinho, que fazia qui ri qui qui. O alecrim dourado nascia no campo sem ser semeado, se misturava com roda pião, bandeia pião, e com o rebola bola, você diz que dá e dá. E o meu chapéu? Tinha três bicos, se não tivesse três bicos, não seria o meu, chapéu. Anda, Luzia, pega o pandeiro e vem pro carnaval. Leva, meu samba, este recado para o meu amor primeiro. Nesse côco eu não vadeio mais, Berenice apagou o candieiro e derramou o gás.
Voz da Amazônia
Todos os fins de semana, quem entrava na camioneta éramos nós, professores, rumo à Ponta Negra ou Ponte da Bolívia. Era uma festa só. Nós também circulávamos pelas ruas e pelas estradas, cantando as músicas de Waldemar Henrique, considerado por Turíbio Santos como “a voz da Amazônia, aquela que lembra a terra, os cantos da terra, a memória regional, cujas canções passeiam pelos rios, pelas matas, através das lendas e mitos do povo. Mas nunca se afastam de um sentimento universal de amor, de sensualidade, de paixão”. Conheci a obra de Waldemar Henrique em 1965, no Christus, compartilhando uma turma de alunos, como professor de português do antigo curso primário, com Dilma Afonso, Nathércia Menezes e Renata Gonçalves.
Era um espetáculo ouvir a Luiza Sanches cantar, quase recitando como se fosse uma ladainha: “Certa vez de montaria, eu descia um Paraná, e o caboco que remava não parava de falar, ô ô, que caboco falador”. Ou o nosso coral afinado atacar o “Tamba-tajá, me faz feliz, que meu amor me queira bem”. E logo depois: “Tajá-panema chorou no terreiro, e a virgem morena fugiu no costeiro. Foi boto, sinhá”. O nosso repertório era esse: Waldemar Henrique, Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Caimi, Noel Rosa, Ataulfo Alves. Com eles, íamos tecendo os fiapos da nossa identidade.
Uma madrugada, voltando de uma farra, depois de ter cantado umas e outras, a camioneta do Christus passava pela rua Recife, em Adrianópolis, quando o padre Ruas gritou: “Uma tartaruga! Pára!”. Ninguém acreditou. Todo mundo pensava que ele estava de porre. Ele insistiu: “Eu vi, ela é enorme”. O carro voltou. Não era uma alucinação. Efetivamente, uma tartarugaça, que havia fugido de alguma mansão, desfilava pelo asfalto. No domingo seguinte, almoçamos sarapatel. Na época, não era proibido.
O Christus acaba de completar meio século. Antigos alunos foram entrevistados: “Nessa data, quem você homenagearia?” Cláudia Vieira, que passou quinze anos de sua vida estudando na instituição, respondeu: “A tia Helô, do maternal. Até hoje recordo do lanche que ela fazia com tanto carinho, um copinho de gelatina ou uma banana deixaram um sabor de saudade”. Outros escolheram os motoristas Valmiro, Paulo e Fernando, que nos guiavam pelas ruas de Manaus.
Diante da mesma pergunta, escolho o idealizador e fundador da escola, Orígenes Martins, meu professor de Didática no Instituto de Educação do Amazonas. Ele despertou em todos nós o gosto pelo magistério. Metia pilha, tocava fogo, nos incendiava, convencendo-nos de que como professor, nós éramos o sal da terra, a luz do mundo. Por causa dele, ainda hoje, cada vez que entro em sala de aula, é como se estivesse participando de uma cruzada, de uma epopeia, ouço rufar de tambores, Prokofiev e Villa-Lobos. Essa crônica não é só saudade, é homenagem e reconhecimento, como o leproso do evangelho que voltou para agradecer a cura.
P.S. 1 - Publicada originalmente em 2004, foi novamente postada, sem qualquer modificação, em 26 de agosto de 2016, sexta-feira, quando o professor Origenes faleceu. Os comentários são em sua maioria dessa segunda postagem.
P.S 2– O ministro Carlos Britto, do Supremo Tribunal Federal, é o nosso herói. Ele derrubou duas liminares que impediam a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Agora, Lula não tem mais justificava para deixar de homologar a área de forma integral, retirando os fazendeiros e plantadores de arroz que invadiram o território dos índios. Se os índios forem mesmo os amigos ocultos de Lula, ganharão esse presente de natal.