CRÔNICAS

MORDE: uma mordida no FMI

Em: 10 de Abril de 2005 Visualizações: 11151
MORDE: uma mordida no FMI

.Domingo de sol na baía da Guanabara. Nas bancas, os jornais gritam, em manchetes ensurdecedoras, a morte do papa, mas no calçadão da praia de Icaraí, em Niterói, só se ouve falar no Fla-Flu, logo mais, no Maracanã. Alguém, no entanto, nada contra a correnteza: um senhor magro, de barba branca-branca, com aparência de Dom Quixote. Nem papa, nem Fla-Flu. Sua preocupação é mesmo com a agiotagem internacional. Por isso, distribui panfletos em nome do Movimento de Renegociação da Dívida Externa – o MORDE, que criou recentemente. Recebo um exemplar e tomo um susto ao reconhecê-lo, depois de ver sua assinatura: João Batista de Andrade. É ele mesmo, o meu velho amigo JB, que está ali, sozinho, sem ninguém a seu lado, nem mesmo um fiel escudeiro.

Depois dos abraços, as lembranças dos tempos em que fomos colegas na Faculdade Nacional de Direito há quase 40 anos. Fomos presos numa passeata contra a ditadura militar, no dia 15 de setembro de 1966, no xadrez do Regimento Marechal Caetano de Farias, na Frei Caneca. Guardei a data porque requeri os dados da ABIN. No dia seguinte, só saíam aqueles que estivessem acompanhados dos responsáveis, que moravam, no meu caso, lá no Amazonas. O pai do JB, doutor Andrade, que era advogado, veio tirar o filho da cadeia.

- Só saio daqui se o amazonense também sair.

O velho, muito chateado, foi obrigado a assinar um termo de responsabilidade por alguém que não conhecia.

Depois disso, editamos o “Lampião”, um jornal clandestino, mimeografado, ligado às lutas do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO). Sua periodicidade era irregular. Um número publicou lista com nomes dos dedo-duros e agentes policiais infiltrados no movimento estudantil. Outro número reproduziu artigo de Otto Maria Carpeaux, intitulado FMI – Fome e Miséria Internacional. O DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, apesar de procurar insistentemente, nunca conseguiu identificar os editores, que eram: esse locutor que vos fala, JB e Antônio Cardoso – um baiano arretado. No ano seguinte, a equipe foi enriquecida com um calouro que havia passado no vestibular, Mário Antônio Sussmann, hoje atuando na imprensa de Manaus.

Veio o exílio. Só voltamos a nos encontrar outra vez em fevereiro de 1980, em São Paulo, como delegados do PT, ele do Rio de Janeiro, eu do Amazonas, no encontro nacional realizado no Colégio Sion, para o lançamento do manifesto do Partido. Naquela época, o PT prometia não pagar a dívida externa. Agora, vendo o JB ali, persistente e fiel, em sua luta solitária, lembro de um filme americano, em que um indivíduo, também sozinho, circula o dia todo diante da Casa Branca, com um cartaz contra a guerra do Vietnã. Um policial, intrigado, pergunta:

- “Rapaz, você tá pensando que dessa forma , sozinho, pode mudar o mundo?

Ele, então, responde:

- Não. Só estou querendo que o mundo não me mude.

É isso aí. Os lugares da fala mudaram, o PT hoje está no poder, obrigado a compartilhá-lo com severinos, calheiros e jucás. A fala do PT é a fala do Poder. O JB, se quisesse, podia muito bem ter trocado de lugar, ocupando um cargo em comissão, por exemplo. Mas, fiel, recusa, preferindo continuar falando do lugar de onde sempre falou. Talvez não mude o mundo, mas resiste, impedindo que o mundo o mude.

Vendo as proezas do JB, sempre sonhador, generoso e combativo, mas solitário, me dá saudades dos velhos tempos. Por acaso, fiquei eu acovardado, fraco, envelhecido, “declinando para nãoezas”, como o dono da fazenda Santa-Cruz-da-Onça, personagem de Guimarães Rosa? Por Deus do céu, que tenho vontade de ressuscitar o jornal Lampião e sair pra porrada contra o capital internacional. Enquanto isso, me sinto o próprio Sancho Pança e estou aderindo ao MORDE, publicando seu manifesto e o e-mail do meu velho amigo.

Manifesto MORDE

« O governo Lula pegou a dívida em 623 bilhões de reais e já a elevou para 845 bilhões de reais. Não pensem que contratou novos empréstimos. Não senhor . Este salto é obra de ficção contábil. Resulta da política de juros altos do Banco Central. Finalmente, a TV mostrou: a cada meio ponto percentual a mais nos juros determinados pelo Banco Central, a dívida cresceu um bilhão de meio de reais em apenas um mês”.

“A dupla que representa a agiotagem internacional no governo Lula, Meirelles do Banco Central e Palocci do Ministério da Fazenda, está pagando 600 milhões de reais por dia só de juros, sem abater nada do capital, isto é, daquilo que dizem que o Brasil deve”.

“Quando a Rússia conseguiu um desconto de 81%, todos disseram que era porque ela possuía bomba atômica e por isso podia falar grosso. Agora a Argentina ficou mais de dois anos sem pagar nada, pois o FMI a levou à bancarrota. Assim mesmo, conquistou um abatimento de 76%. Outros países fizeram o mesmo e se deram bem, como a Malásia, que rompeu com o FMI.”.

“Ou levantamos a cabeça diante do FMI, representante dos banqueiros internacionais, ou confessamos que o Brasil não é um país independente . Nossa economia tem o 13º PIB (Produto Interno Bruto, que é a soma de tudo o que um país produz). Mas nosso IDS (Índice de Desenvolvimento Social) é o 78º. Isto é, nosso povo tem uma vida pior do que muitos países de PIB baixíssimo. Nos 15 países democráticos de maior PIB, o salário mínimo é maior do que 2.000 reais. Só há uma exceção: o Brasil, onde não chega a 300 reais. Ocorre que nenhum dos outros países está escravizado ao FMI”.

“Conclusão: para sermos um país democrático, nosso salário mínimo deve se elevar para 1.200 reais como já chegou a ser efetivamente. Não pense que os patrões vão quebrar, pois se todos os trabalhadores ganharem quatro vezes mais, todos os patrões vão vender quatro vezes mais. Aliás, é exatamente por isso que os países mais ricos, como os Estados Unidos da América, que controla o FMI, não nos dão alívio algum. Eles acham que se o nosso povo ganhar quatro vezes mais, nossa economia poderá ficar mais forte que a deles”.

“Precisamos renegociar a dívida a fim de parar de pagar apenas os juros e passar a pagar o que realmente devemos. Para pagar esses juros escorchantes, não sobra dinheiro nem para tapar os buracos das rodovias. Faltam médicos nos postos de saúde. Faltam professores nas escolas. Até a verba da saúde dos índios foi cortada em 20%, causando a morte de várias criancinhas, nas aldeias. Só uma auditoria poderá definir com certeza o que devemos”.

“Se você quer ganhar melhor, se você quer vender mais , se você quer derrubar essa política de juros altos, se você quer ajudar o Brasil a ser independente de verdade, tire cópia desse texto, ponha na Internet, fale com seus colegas, pressione os políticos a tomarem posição. MORDE – Movimento de Renegociação da Dívida Externa . João Batista de Andrade”. [email protected]

PS 1– Hoje, 10 de abril de 2005, o Governo Lula completa 830 dias , sem haver ainda homologado a demarcação da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol em áreas contínuas, conforme promessa de campanha.
P.S - 2 - Três anos depois da publicação deste texto no Diário do Amazonas, JB morreu. Abaixo vai o registro.
O professor de História João Batista Andrade, de 62 anos, morreu às 20h30 de ontem, 9 de dezembro de 2008,  no Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap), no Centro de Niterói. Na noite de terça-feira, ele foi atropelado quando andava de bicicleta pela Avenida Roberto Silveira, em Icaraí, na Zona Sul. Segundo a polícia, o professor, carinhosamente chamado de JB, foi atingido por um Ford Fiesta preto, que teria avançado o sinal da Rua Doutor Paulo César. De acordo com testemunhas, JB foi projetado contra o pára-brisa do veículo. O docente foi socorrido pelo Corpo de Bombeiros por volta das 22 horas e levado, em estado grave, para o Huap, onde não resistiu – segundo os médicos, a vítima teve uma parada cardiorrespiratória.

O motorista do carro causador do acidente, identificado pela polícia como Theodoro Martins, de 62, teria omitido socorro. Horas mais tarde, ele se apresentou à 77ª DP (Icaraí), onde o caso foi registrado, sendo liberado após prestar depoimento. Ele foi indiciado por lesão corporal culposa (sem intenção). Porém, com a morte de JB, é possível que ele responda por homicídio culposo. Segundo os médicos, o professor sofreu traumatismo crânio-encefálico. Ex-mulher de JB, Rita Mansur apontou a falta de um espaço para os ciclistas nas ruas da cidade como um dos fatores do acidente.  Antes de tomar conhecimento da morte do pai, Thaís Regina Eira de Andrade, de 19, afirmara que a família pensaria em ações judiciais.

João Batista de Andrade foi professor de diversas instituições em Niterói, como o Liceu Nilo Peçanha, no Centro, e o Gay Lussac, em Icaraí. Ficou conhecido por defender causas dos estudantes e por conta da atuação política na cidade, e ainda por colaborar na organização do Movimento Estudantil em várias escolas em que lecionou. JB, inclusive, foi militante do Partido dos Trabalhadores (PT). A Câmara de Vereadores de Niterói chegou a fazer, na sessão plenária de ontem, um minuto de silêncio em solidariedade à vítima. João concorreu, neste ano, a uma cadeira na Casa pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), obtendo 468 votos.
O corpo do docente deverá será velado na Câmara de Vereadores de Niterói e sepultado, ainda nesta quinta-feira, no Cemitério São Francisco Xavier, em Charitas.
Alunos, colegas de magistério e amigos dos colégios em que João trabalhou, como o Liceu Nilo Peçanha e a Escola Estadual José Bonifácio, lembraram do professor com carinho. Irreverente, brincalhão e abnegado pela educação foram algumas das palavras usadas para definir a personalidade de JB.
Na Escola Estadual José Bonifácio, onde JB lecionara História até o primeiro semestre deste ano, os estudantes cantarolaram um dos motes da campanha política de João: "Nazismo, maldade, malícia. Ou a polícia acaba com o esculacho ou o esculacho acaba com a polícia", cantaram em uníssono os alunos Philipi Costa da Silva, de 15 anos, e Marcos Paulo dos Santos Junior, de 14.
O diretor-geral do Liceu Nilo Peçanha, Celso Lopes, definiu João como uma figura folclórica.
"Como professor era excelente. Acreditava e brigava muito por esta escola. Ele pretendia voltar a lecionar aqui", disse.
João Batista foi um dos fundadores do PSOL na cidade, tendo se filiado ao partido em 2005. Nas últimas eleições, ele disputou vaga na Câmara Municipal, tendo obtido 468 votos, número insuficiente para ser eleito. Na verdade, o último pleito foi o sexto do qual participou. A trajetória política dele começou como militante do PT, ao qual esteve filiado de 1981 até 1988, quando foi expulso da legenda. Passou ainda pelo PDT e PV, antes de ir para o PSOL.
Expulso do PT, filiou-se ao PDT, tendo sido secretário de Defesa Civil na primeira gestão de Jorge Roberto. Disputou ainda as eleições para vereador em 1992, 1996, 2000 e 2004, nunca tendo sido eleito. Entre as bandeiras que defendia, estavam o passe-livre para os estudantes das escolas públicas, a preservação do meio ambiente e direitos entre casais gays. Em 1996, procurou a Ordem dos Advogados do Brasil de Niterói (OAB-Niterói) denunciando ameaças de morte contra ele.
Mensagens de carinho no Orkut
"Fala meu filho! Huhu". A frase, além de apresentar a comunidade "JB pra sempre vereador" no Orkut, retrata o bom-humor e o alto astral que João Batista irradiava. Esquerdista em tempo integral, JB era dono de outra comunidade no site de relacionamentos, a "Crítica da nova história crítica". Nela, defende a tese de que o Brasil não foi descoberto, mas sim invadido.
Na homenagem feita a ele na praça em frente à reitoria da UFF, em Icarai, fiz um pequeno discurso de adeus ao meu querido amigo.

 

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3 Comentário(s)

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Davi Yanomani comentou:
10/10/2014
Muito emocionante seu texto, sou o filho mais novo do JB. Contato de Davi Yanomani
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Mário Sussmann (1) comentou:
16/10/2011
Ribamar, onde estava essa pimentinha quando nossa única alternativa era o pastel de ORNI (Objeto Recheante Não Identificado) do restaurante (?) da Faculdade Nacional de Direito? Lembrei do "Lampião - A Luz que Brilha nas Trevas", que íamos rodar em mimeógrafo a alcool em Niteroi para colocar nas carteiras antes que alguém chegasse?
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Mário Sussmann (2) comentou:
16/10/2011
E o angu do Gomes, na Praça XV, um prato, duas colheres, tratado de tordesilhas, e alternavamos a única azeitona. Este era bom, mas a murupi teria ajudado. Na minha memória muitos temas para as tuas cronicas. Abraço, saudades sempre. Mário Sussmann
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