E os vizinhos / moram tão longe / vivem / e morrem / tão longe /
como se eu não pudesse / ouvi-los respirar / no endereço ao lado
(Aldisio Filgueiras)
Ninguém entendeu tanto o subúrbio como Nelson Rodrigues. Com olhar etnográfico e poético, ele observou como viviam os seus moradores, em cujas cabeças entrou, tentando descobrir a lógica que norteava seus pensamentos. Foi lá, nos bairros populares, convivendo em seus becos e ruas, que ele testemunhou o exercício da difícil arte da vizinhança. Várias de suas divertidas crônicas são dedicadas a descrever o universo mental e o comportamento dos vizinhos da Aldeia Campista, no Rio de Janeiro.
“Bem me lembro dos meus cinco, seis anos. O vizinho era, então, todo o meu horizonte humano. Ainda vejo as pessoas que moravam ao nosso lado, ou em frente, ou na esquina. Os sujeitos se cumprimentavam assim: - ‘Bom dia, vizinho. Como vai, vizinho?'. E a simples palavra tinha uma tensão, um frêmito, uma magia. O mundo era aquela meia dúzia de vizinhos”.
Os vizinhos cariocas de Nelson Rodrigues, em 1920, poderiam morar no subúrbio de qualquer cidade brasileira, como mostra muito bem o perfil de um deles: “Lemos, como Oliveira, é nome de vizinho. Um sujeito que se chama Lemos só pode ser vizinho. Era homem de vir para o meio fio, de pijama, aparar os calos com a gilete. E fazia isso com um deleite, um requinte, um lavor inexcedíveis”.
Os vizinhos de Aparecida
Muitos Lemos e Oliveiras povoaram o bairro de Aparecida na década de 50, mas escondidos, é claro, detrás de outros nomes. O Pedro Eloy, ex-pracinha que lutou com a FEB na Itália, por exemplo, era um legítimo Lemos. Quando não estava de porre, ficava de pijama, sentado na calçada do Beco da Indústria, cortando unhas e aparando calos.
Havia vizinhos que incorporaram ao próprio nome a profissão que exerciam: Alvina Tacacazeira, Pedro Marceneiro, Armando Padeiro, Duca Sapateiro, Luiz Barbeiro, Raimundo Jornaleiro. Alguns eram conhecidos por determinado traço físico: Fernando Gogó (teve papeira e conservou uma bolota no pescoço) Raimundinho 21 (tinha seis dedos na mão direita), Padinho Pé-de-pau, Geraldo Cegueta, João Carnudo, Rubem Rola (meu amigo, filho da Marina).
Alguns apelidos viraram nomes de família. As irmãs Saubinhas eram cinco calipígias que moravam em frente à igreja: Marluce, Marlene, Marilene, Marilda e Mariza. Os irmãos Buchinho eram dois gordinhos filhos de portugueses. A Fátima Buchinho foi cortejada pelo Dílson do SAPS, que apaixonado fazia serenatas pra ela:
“Foi numa noite de luar que conheci / uma cigana de olhar encantador”.
O Zé Buchinho podia irradiar durante noventa minutos uma partida simulada de futebol. Narrava impedimentos, pênaltis, escanteio e gols, com tanta emoção, que parecia de verdade.
A dona Alvina Tacacazeira reunia a vizinhança em torno de sua banca, na esquina da Xavier com a Alexandre Amorim, para fofocar e atualizar as informações, entre um croquete e uma cuia de tacacá. Dona Alvina foi a maior repórter da história da Paróquia de Aparecida. Sabia apurar bem, fazer entrevistas, checar os dados. Num furo de reportagem, foi a primeira a noticiar que a Odete, lá do beco da Escola, não era mais virgem e havia sido embuchada pelo Caboré.
O Pedro Marceneiro, que construía botes, canoas, portas e janelas, tinha um grande sonho: ser vereador. Candidatou-se, imprimiu milhares de cartazes – `Vote certeiro em Pedro Marceneiro`. Discursou num comício na Bandeira Branca, tendo ao seu lado, no palanque, outro candidato do PTB, o velho Francisco Plínio Coelho. Conclamou:
- “Não peço votos pra mim, que já estou eleito, mas para esse septuagenário”.
Os vizinhos atenderam o apelo. O pai do governador foi o vereador mais votado de Manaus e Pedro Marceneiro o menos votado no Brasil. Teve 1 (hum) voto, o dele mesmo.
Vizinho muito prestativo era o Armando Padeiro, um português baixotinho e gordote, que fazia pão no forno de lenha e vendia fiado. Parecia muito com o “Reizinho”, aquele personagem da história em quadrinhos. Tinha um dente de ouro, suava muito e usava suspensório. Sua mulher, dona Maria, vivia num eterno luto, nunca vestiu outra roupa que não fosse preta. Queixava-se de dores (algumas delas reais). A filha, Emília, também só se vestia de preto, abrindo exceção apenas para a farda do IEA (cursou o pedagógico, à noite). Tinha um ar triste, de órfã desesperançada.
A vizinhança na UTI
Mas as vizinhas mais ricas do bairro eram Lili e Lucinda Azevedo, duas irmãs que nunca se casaram, moravam num solar na Alexandre Amorim, herdado do pai, dono de trinta seringais. Falavam francês e gostavam de contar a visita que fizeram aos museus parisienses. Em todas as festas da paróquia, era inevitável: Lili recitava um poema, intitulado ‘As chinelinhas de Nossa Senhora', que narra a história de uma mendiga pobre, descalça e faminta. Desesperada, a mendiga entra na igreja e pede ajuda à Virgem Maria, uma imagem em tamanho natural, calçada com finas sandálias de ouro.
Nossa Senhora, comovida, dá uma de suas sandálias para a mendiga. Mas logo chega o sacristão dedo-duro, que grita (Lili Azevedo recitava com voz indignada):
- “Ladra! Ladra! Roubaste a chinelinha de Nossa Senhora!”.
Um tumulto grande na Igreja. Os fiéis começam a gritar: `pega ladrão`. A mendiga, coitada, se defende como pode e agora é Lili recitando com a voz desesperada:
- “Não! Não roubei! Foi ela que o ma deu”. (Ela dizia “quiu madeu”).
Entretanto, mesmo dentro da igreja, ninguém ali acredita em milagres. A polícia prende então, a mendiga, mas aí o milagre acontece de novo, desta vez na frente de todo mundo: Nossa Senhora atira o outro par de sandálias no colo da pobre mulher. O final é apoteótico, a voz de Lili Azevedo, tremelicando por um fio, recita:
- “E Nossa Senhora deixa cair outra chinelinha”.
Era emocionante, a plateia toda chorava aos borbotões.
Havia muitos vizinhos no bairro, mas apenas uma incorporou a denominação ao seu nome: a Vizinha França. Ninguém a chamava de dona França. Para todos, ela era a Vizinha França. Parece que já nasceu vizinha. Teve vários filhos: Lurdes, Piçanga, Milton, Mário, Gerson, Chagas, Rubem, Dica. Com ela moravam duas netas: a Adalgiza e a Lurdinha, que era uma magricela, um capiroto de danada. A Vizinha França, como minha avó, tinha um cheiro gostoso de café pilado misturado com tabaco de cachimbo.
A morte da Vizinha França abalou a instituição da vizinhança. Hoje, não tem mais ninguém na janela, como a dona Laudelina, com seu sorriso doce e seus olhos tristes. Segundo Nelson Rodrigues, “a televisão matou a janela”. Não tem mais “dona Vera Margarida, a mamãe mandou pedir emprestado um pouquinho de azeite”. Ninguém mais conversa na porta. O vizinho está agonizando, moribundo, na UTI. Em alguns bairros, ele já morreu, só falta ser enterrado. Nos condomínios, foi substituído pela figura insossa do condômino. O fato foi registrado pela sensibilidade do nosso poeta, Aldisio Filgueiras, no seu livro “Manaus – as muitas cidades”: “...E os vizinhos/ moram tão longe / vivem / e morrem / tão longe / como se eu não pudesse / ouvi-los respirar / no endereço ao lado`.
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