Formigas de fogo carnívoras do tipo Solenopsis Saevissima invadiram a cidade de Eirunepé, fizeram ninhos no leito seco dos rios e lagos, cavaram túneis nas ruas e praças, formaram colônias nos quintais e começaram a ocupar as residências. Com táticas de guerra de guerrilha, elas estão atacando a população civil a qualquer hora do dia ou da noite, sobretudo menores de idade, que são suas principais vítimas, segundo uma moradora, dona Zilá Cavalcanti, mãe de sete filhos: “Se a gente não tiver cuidado, elas entram até no ouvido das crianças”. As pessoas estão desesperadas, sem saber como combatê-las.
Vestido com farda de general, o prefeito de Eirunepé, Dissica Valério Tomaz, assumiu o comando das tropas de resistência. Instalou o acampamento militar no Lago dos Portugueses. Convocou o exército de reserva formado por ilustres eirunepeenses como Amazonino Mendes e os gêmeos Pau-Derley e Pau-Derney Avelino (PFL – viche! viche!). Pediu apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) para transportar duas toneladas de veneno, que será pulverizado nos formigueiros. Só não chamou os especialistas em guerra na selva do CIGS, porque suspeita que eles vão tirar o loló da seringa.
A notícia da guerra das formigas alcançou a Itália. Minha amiga e vizinha do bairro de Aparecida, Astrid Lima, que mora atualmente em Roma, me manda um e-mail, assustada com o que está acontecendo na Macondo Amazonense. Eirunepé, que é um imenso ‘panelão', ficará também conhecida em todo o Brasil hoje à noite através da TV Globo. O bacabeiro Pedro Bial e a bacabeira Glória Maria, no Fan-tás-ti-co, vão lavar a égua, dando ao caso o tratamento espetacular, como de costume, e desinformando os telespectadores, como de costume.
Formigas doidas
Essa não é a primeira vez que formigas atacam cidades da Amazônia. Os relatos de todos os viajantes dedicam longos capítulos a esse tema. Os alemães Spix e Martius, por exemplo, encontraram em dezembro de 1819, em Tefé, denominada então Vila de Ega, um exército de formigas doidas, assim chamadas porque correm com incrível rapidez de um lado para o outro, zanzando daqui pra lá, em todas as direções. Conhecida pelos índios como taciba cainané oaê, elas devastaram e saquearam as plantações na região do Solimões.
Na viagem ao longo do Amazonas, em 1819-1820, os dois cientistas encontraram outras variedades de formiga, entre as quais as brancas e as pretas. Spix foi picado por formigas pretas, cujo ferrão localizado no abdome, provocou dores insuportáveis. Na verdade, ele acredita que foi envenenado por elas, porque ficou logo com a mão e o braço inchados, até o cotovelo, teve um acesso violento de febre que durou todo o dia e ficou com manchas pelo corpo. Outra formiga preta pequena (fórmica destructor), chamada pelos índios de guajuguaju, acabou em algumas horas com uma plantação de laranjas e de abiu.
Martius relata uma experiência que mostra a malignidade das formigas brancas. “Uma noite fomos acordados pela sensação de desagradável friagem, que se nos espalhava através do corpo . Apalpamo-nos no escuro, e sentimos qualquer coisa fria e gordurosa ao tato, a qual rastejava sob a cama. Ao acender a luz, foi grande a surpresa, quando reconhecemos um enxame de cupins”. Eram milhares, extremamente vorazes. Os dois cientistas passaram a madrugada inteira matando cupim com água fervendo, enchendo vários paneiros grandes com os bichinhos mortos.
No combate entre homens e formigas na Amazônia, os índios nunca perderam, talvez porque nunca encararam a relação como uma briga, mas os portugueses e mestiços levaram surras homéricas. Velho Airão, no Rio Negro, foi abandonada, porque as formigas derrotaram os moradores. Em Vila Nova Vistosa, no Pará, os moradores foram expulsos por um exército de muriçocas e piuns, segundo conta Martius. “ Palavra alguma pode exprimir o tormento que esse terrível inseto inflige ao viajante ”, escreve ele sobre o pium, informando que sua picada irritava a pele e produzia tumores superficiais, formando uma bolha hemisférica.
O saber indígena
O naturalista inglês Henry Bates viveu onze anos na Amazônia (1848-1859). Nas suas andanças, passou por Aveiros, um pequeno povoado no baixo Amazonas, com vigário, juiz de paz e subdelegado de Polícia. Ali era “o quartel-general da formiga-de-fogo”.
“Aveiros foi abandonada durante alguns anos por causa dessa minúscula praga. Toda a área está minada por ela. As casas estão totalmente infestadas; elas disputam com os seus moradores até o último farelo de comida e destroem as roupas para comer a goma do tecido”.
Os moradores falaram para Bates que as formigas-de-fogo tinham nascido do sangue dos cabanos, que haviam sido massacrados na região do Tapajós. Próximo a Belém, na fábrica Maguari, de beneficiamento de arroz, Bates conta que as saúvas perfuraram o dique de uma vasto reservatório, e o enorme volume de água contido nele escoou-se antes que os danos pudessem ser reparados. Eram, além disso, ladronas. Ouvindo ruídos de madrugada, o naturalista se levantou:
“Apanhei o lampião e fui até a despensa, que ficava perto do meu quarto. Ali deparei com uma grossa fileira composta de milhares de saúvas, todas muito atarefadas em roubar o valioso conteúdo dos meus cestos. Cada uma carregava um grão de farinha. Por fim, me vi obrigado a espalhar pólvora ao longo da trilha por onde passavam e fazê-las ir pelos ares ”.
Os índios desenvolveram um conhecimento sofisticado sobre as formigas, fazendo uma rigorosa classificação de cada espécie. Eles sabiam – segundo Martius – que “a picada de todas as numerosas espécies de formiga deste país é dolorosa; particularmente maligna, porém, é a de uma espécie negra, bicornuda, chamada pelos índios tacibura (Atta cephalotes ) e da maior de todas que os índios chamam de tapiai e quibuquibura” (aparentada com a tocandira Cryptocerus atratus ). Esse conhecimento lhes permitiu não necessariamente derrotar as formigas, mas conviver com elas.
Martius viu como os índios usavam o cimento da casa do cupim para curar papeira e como misturavam cupim com fubá de milho, criando um nutritivo alimento para as galinhas. Os índios Tupi-Kawahib, do alto Madeira, observaram que as formigas kushi nunca montam seus formigueiros perto de um pé de cunapuru, porque a seiva dessa planta é ácida, leitosa e extremamente irritante para elas. Então, para espantá-las, os índios plantam alguns pés de cunapuru em torno das roças. Elas sentem o cheiro da planta e fogem para longe, deixam de atacar as plantações.
Os kayapó também usam um sistema interessante, misturando formigas pretas com cupins para que uns lutem com outros. Dessa forma, esses insetos deixam em paz a roça indígena e, com a decomposição de seus corpos, fornecem mais nutrientes para as plantações.
Só tem uma alternativa para o general Dissica não sair derrotado nessa guerra com as formigas: chamar os índios e usar os conhecimentos que eles tem para discutir a relação. Cabe aqui uma DR. São, no mínimo, 10.000 anos de experiência acumulada na Amazônia. Se o general tiver preconceitos, chame então os pesquisadores do INPA e da UFAM que aprenderam com os índios. Do contrário, vai ser vergonhosamente derrotado como em Ayrão, Aveiros e Tefé no século XIX..