CRÔNICAS

Camonibói: Delmo, venda de armas e o referendo

Em: 30 de Outubro de 2005 Visualizações: 10798
Camonibói: Delmo, venda de armas e o referendo

.Armado até os dentes, com revólver no coldre e uma estrela no peito, Joseph Oversea Verymuch, o temido xerife de Shit´s Street, montou seu cavalo e – tololoc, tololoc, tololoc - partiu para o confronto da lei contra o crime. Na cavalgada, passou em frente à estância da dona Nega. A filha dela – Lucila - estava na janela e, de lá, beijou a ponta dos dedos com um estalido prolongado, jogando o beijo para ele com um grito :

- Liiiiindo! Com um macho desse, eu me caso.

O xerife sequer diminuiu o trote, continuou a desfilar, garbosamente, pelo beco, fingindo ignorar o beijo. No entanto, debaixo da estrela, havia um coração que palpitava aceleradamente.

Se o xerife vivesse mil anos e tivesse dez mil namoradas, ainda assim nunca esqueceria aquele dia em que uma mulher já feita jogou-lhe um beijo e o chamou de macho. Como esquecer, se foi a primeira (e única ) vez na vida em que foi chamado de ‘lindo' e pedido em casamento? Lucila não era bonita, tinha a cara furada pela varíola, toda picada, cheia de buracos. No entanto, sua cara de lata amassada permaneceria para sempre linda na memória do xerife até o dia de hoje, quando já velho e alquebrado, batuca essas mal-traçadas linhas.

Mas voltando à vaca fria, vamos seguir o trote do xerife. Ele continuou cavalgando por Shit's Street, entrou na Rua Xavier de Mendonça onde viu, escondido detrás de um bejaminzeiro, o pistoleiro fora-da-lei, Harold Bird, também conhecido como Haroldo Bem-te-vi. Gritou autoritário:

- Estátua ! Sai não dou.

Bem-te-vi ficou imóvel. O xerife disparou, então, dois balaços: um nos cornos e o outro no coração. Bem-te-vi caiu sobre uma poça de sangue, ao lado da banca de verdura da Nilza, em frente ao Grupo Escolar Cônego Azevedo. Mais um sacripanta morto. A Lei havia, enfim, triunfado.

Bang-Bang

Naquele natal de 1953 não era nada fácil fazer justiça no condado de Shit´s Street. As últimas balas do revólver de espoleta haviam sido disparadas contra Bem-te-vi . Com a munição esgotada, o xerife se viu obrigado a usar uma pistola de plástico que disparava um jato de água, mas que, por sua vez, ficou logo inutilizada. É bem verdade que a lei vigente não proibia o comércio de armas e de munição, mas quem é que tinha dinheiro para comprá-las? Só os ricos e, por isso, só os ricos andavam armados. Até mesmo o cavalo de pau, com sua crina amarela, trazido também por Papai Noel, ficou manco e foi depositado em um estábulo, sem qualquer serventia.

Sem cavalo, sem armas e sem munição, como saber quem sacou antes, quem atirou primeiro, quem ia preso? Foi ai que bandidos e mocinhos firmaram um pacto: o pacto da palavra. O primeiro que gritasse ‘bang' matava o adversário. Mas se o xerife pronunciasse a palavra ‘camoni' ou ‘camonibói', isso funcionava como uma ordem de prisão, o bandido se entregava e era levado para o xadrez. Afinal, era assim que John Wayne prendia perigosos meliantes no Velho Oeste nos filmes americanos de ‘cow-boy' exibidos nas sessões do Polytheama e do Guarani. Bastava dizer “come on, boy ”, que neguinho se entregava, completamente rendido.

Belos tempos em que a ordem era mantida e a lei respeitada com apenas duas palavras mágicas – bang e camóniboi. A palavra era uma arma e tinha força. Quem sabia usá-la bem, no momento devido, não precisava atirar. Era a vitória da retórica sobre a pistola. Hoje, a coisa se inverteu. A bala mata a palavra. Eis aonde eu queria chegar. A maioria da população brasileira decidiu, no referendo de domingo passado, que é livre a venda de armas de fogo e munição no país . Teve gente que vibrou, comemorando o que considerava como sendo 'a vitória da democracia e a derrota do governo'. Ledo engano. Derrotados fomos todos nós. Derrotada foi a palavra.

Brincando de Delmo

Mas não era sobre o referendo que queria falar e sim sobre um grande crime que nos anos 1950 abalou a pacata cidade de Manaus, com repercussões no condado de Shit's Street. Numa noite, Delmo Campelo Pereira, completamente drogado, tomou um táxi rumo à Colônia Oliveira Machado, onde ficava a Serraria Pereira de propriedade de seu pai. Lá chegando, pediu para o taxista esperar. Entrou no escritório da serraria, tentou abrir o cofre, mas foi surpreendido pelo vigia. Delmo sacou, então, seu revólver, que não era de espoleta, e disparou: ‘bang, bang'. O vigia morreu na hora .

Nervoso, o criminoso correu em direção ao mesmo táxi, mandando que rumasse para o Seringal Mirim, onde hoje é a rua Cláudio Mesquita . Desconfiando que o taxista Zé Honório pudesse ter testemunhado o assassinato do vigia, Delmo o matou com várias cacetadas, deixando o corpo pendurado numa cerca de arame farpado. Zé Honório era muito querido pela categoria. Os taxistas de Manaus, furiosos, fizeram várias passeatas de protesto, exigindo que o assassino fosse identificado e preso.

- Camonibói – gritou o policial para Delmo, levando-o preso. O assassino foi denunciado por um vizinho da Serraria Pereira, que testemunhou tudo. A família Pereira que tinha muita grana conseguiu, porém, que um médico atestasse a insanidade mental de Delmo. Baseado nesse diagnóstico, um juiz deu a ordem para transferi-lo da cadeia ao hospital, onde ficaria internado. Tudo ia acabar em pizza. Mas no dia da transferência, o motorista da ambulância, um tal de Silva, parou a viatura na praça São Sebastião, onde taxistas revoltados arrancaram Delmo da viatura e se vingaram, matando-o.

Os taxistas foram a júri popular. A família Pereira contratou o melhor criminalista de Manaus – Milton Assensi, e mandou buscar do Rio nada mais nada menos do que Evandro Lins e Silva para tentar condenar os taxistas vingadores. O julgamento foi transmitido por alto-falantes instalados ao longo da avenida Eduardo Ribeiro.

Um taxista apelidado de ´Tambaqui', que depois morreu leproso, foi quem botou Delmo na mala do carro. Os outros que amarraram e arrastaram o cadáver pelas ruas de Manaus foram Pirulito, Ludgero, Carioca e um portuga, cujo sobrenome era Cruz. Lembrei desse crime, porque Lucila, filha da dona Nega, traiu o xerife, prometendo se casar com o Tambaqui ou com o Pirulito. Ela achava que eles provaram que se o Poder Judiciário era corrupto, era possível fazer justiça com as próprias mãos.

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