Ao Sebastião - o Sabá, professor da Faculdade de Odontologia - que está em todas as bocas.
Aquele glub-glub-glub assassino, no encontro das águas, jamais desapareceria da memória de Sabyra e de seus descendentes, nem mesmo muitas e muitas luas depois, quando três mil soldados da PM, a mando do governador Gilberto Mestrinho, atacaram 200 professores e jornalistas indefesos, na famosa 'batalha do igarapé de Manaus'.
Corria o ano de 1727. As aldeias dos índios Manáo, na margem esquerda do rio Negro, foram invadidas, saqueadas e incendiadas. Os arcabuzes e bacamartes dos soldados portugueses dispararam sem parar durante semanas, matando todos os que resistiam. O encontro das águas ficou em três cores que não se misturavam: o rio Negro, vermelho de sangue, desaguava no barrento Solimões, coalhado de cadáveres de milhares de índios. Muitos deles foram aprisionados e vendidos como escravos aos portugueses em Belém, sendo os netos dos netos de seus netos destinados ao trabalho forçado nas 'Lojas Americanas' ou no Distrito Industrial ou ainda, como professor colaborador, na Universidade do Amazonas.
Naquela época, acorrentado e algemado, Ajuricaba, o grande cacique do povo oprimido foi barbaramente torturado pela tropa lusa - como se estivesse hoje dentro de uma delegacia do cel. Lustosa. Sua própria mãe, uma velha índia, cujo nome a História sequer registrou, mas a quem poderemos chamar de Sabyra (1), presenciou toda a carnificina.
Com o coração de mãe sangrando, despedaçado de dor, Sabyra viu os soldados de Belchior Mendes pendurarem grilhões em volta do corpo do seu filho amado, a quem ela embalou tantas vezes no colo, cantando canções de ninar, fazendo bilu-bilu e perguntando: 'Quem é o Ajuricabinha lindo da mamãe, quem é?'. E ela viu quando o seu filho foi 'suicidado' e atirado na água, enquanto o caudilho português, com a dentadura escorregando - naquela época ainda não existia o curso de odontologia da UFAM - gritava: "Comigo é assim! Oposição, eu amarro dentro de um saco e jogo no fundo do rio Negro".
NU-PURY
A água negra - glub-glub-glub - chupou o corpo de Ajuricaba para o fundo do rio, num movimento circular e em espiral, formando um gigantesco redemoinho. Sabyra, inconsolável, lembrou que o seu filho predileto, o seu querido Juju, nem sequer teve um funeral decente de índio guerreiro, enrolado em sua rede e enterrado com suas armas em frente à maloca, no meio de lamentações e rituais tradicionais. Ajuricaba fora assassinado como um porco, como um bárbaro europeu, sem direito a uma rede como mortalha.
Quando compreendeu que nunca mais poderia catar piolho na nukuuna (2) do seu Juju fofinho, nem pentear os seus nu-kuuna itsy (3), nem passar talco de pó de mandioca nas inflamações cutâneas do seu nu-pury (4) assado, Sabyra ficou tão desesperada que sentiu vontade de rasgar as suas vestes de seda, de alto a baixo, como agiria qualquer personagem de tragédia grega, numa situação semelhante.
No entanto, Sabyra era uma índia Manáo e não tinha veste de seda como as sacerdotisas da Grécia Antiga. Por isso, arrancou solenemente apenas aquilo que trajava: a sua tanga de fibra de miriti - precursora do 'fio dental' e do 'cordão cheiroso'- e deu um grito de onça ferida, tão doloroso que comoveu os bichos da floresta e os peixes do rio. "Matica, matica, matica" (5) - gritava ela, em língua Manáo.
Em seguida, mater dolorosa, Sabyra inalou o fumo de folhas de tabaco que ardiam dentro de uma cuia pintada e, com o coração sedento de justiça, rogou uma praga, amaldiçoando o Amazonas e várias gerações de amazonenses, descendentes de portugueses e índios:
- “Oh, filho amado, tu serás vingado! Este território que te deixou morrer, chamado de Amazonas, jamais passará de um simples fio de nu-pury itsy (6): arejado, bem adubado, tem tudo para crescer, mas não crescerá jamais".
Um frio percorreu o coração de todo o mundo: praga de mãe pega, porque Deus ouve, o diabo concorda e os anjos dizem amém. Sabyra parou, olhou fixamente o redemoinho que acabara de levar o corpo do seu Ajuricaba e continuou sua maldição, bradando:
- Esta terra nunca crescerá, porque suas riquezas serão sempre saqueadas e levadas para fora daqui.
Esta maldição vem se cumprindo rigorosamente. Primeiramente, os portugueses exploraram os índios, extraíram as 'drogas do sertão' - o cravo, o cacau, a salsaparrilha - e ainda debocharam, passando o dedo indicador da mão direita debaixo do nariz: "Fiau, babau, vai pra Portugal". Depois, ingleses e americanos mamaram todo o leite existente em milhões de seringueiras e cantaram: "Tuturubim-tetê, borracha ser de mim e não de você". Finalmente, as multinacionais vieram explorar o sangue e o suor dos amazonenses, entoando: "Tique taque tambarola, levamos os dólares pra fora".
CABURTIQUEY
Sabyra continuou praguejando:
"- Os amazonenses morrerão de fome e de subnutrição, morarão em favelas, de onde serão expulsos, perderão a memória do passado, serão enganados por políticos trapaceiros e comandados por governadores corruptos. Os medíocres triunfarão sempre no Amazonas. A inteligência será permanentemente perseguida e castigada".
Inspirada por Sarana - o Espírito do Mal na mitologia Manáo - Sabyra lançou então a sua última praga, a mais terrível de todas. Ela falou que mais de 3.200 luas depois da morte de seu Ajuricaba, viria de fora o Cinco Nu-Kaita Tereta (7), um descendente de italiano que tentaria botar no nu-pury de todos os amazonenses. Ele faria uma forte aliança com Samaco Yni-Caburtiquey Mendes (8 e 9), herdeiro do carrasco português, Belchior Mendes. A quadrilha de Nu-Kaita Tereta e Caburtiquey continuaria o saqueio iniciado pelos portugueses.
Um forte cheiro de enxofre tomou conta do ambiente, quando Sabyra mencionou os nomes de Nu-Kaita e Caburtiquey Mendes, porque Manara - o Espírito do Bem - não aguentou tanta desgraça sobre o Amazonas e intercedeu ante a mãe de Ajuricaba, implorando:
- Oh, Sabyra, por que castigas com tanta severidade o povo amazonense? É melhor destruir todo o Amazonas por um grande fogo, do que entregar seus filhos à sanha de Carbutiquey e Nu-Kaita. Não! Nada de vingança! Perdoa os amazoneses e dá-lhes uma chance de salvação. Afinal, eles não são os culpados pela morte do teu filho.
Sabyra respondeu, então, com muita sabedoria:
- “O povo amazonense é o culpado de tudo, porque não resiste à opressão e aceita passivamente o engano e a mentira. Esta terra só deixará de ser um nu-pury itsy (6), quando este povo criar coragem e vergonha na cara e se revoltar, jogando dentro do rio Negro os herdeiros dos assassinos de Ajuricaba, que continuam no poder. Mas isso só acontecerá quando alguém, com o sorriso de quem nunca trabalhou, disser que "o trabalho fala mais alto" e o povo descobrir que ele está mentindo. Quando isto acontecer, minha praga ficará sem efeito".
A praga de Sabyra até agora pegou. É por isso, leitor e leitora amiga, que até hoje o Amazonas não consegue ser mais do que um simples fio de nupury itsy. Até quando? Você é quem sabe. Você decide.
Glossário
As palavras incluídas neste glossário pertencem efetivamente à língua Manáo, do tronco-lingüístico Aruak, e foram recolhidas pelo naturalista alemão Spix, no início do século XIX e publicadas por seu colega Von Martius em 1867. Algumas delas fazem parte do Catecismo em Língua Manáo, do século XVIII, que contém 154 perguntas e respostas e cujo original se encontra em Londres, na biblioteca do Bristish Museum.
(1) Sabyra = virgem
(2) Nu-Kuuna = cabeça
(3) Itsy = cabelo (Nu-Kuuna Itsy = cabelo da cabeça)
(4) Nu-pury = ânus, fiofó
(5) Matica = ele morreu
(6) Nu-Pury Itsy = (combinar 3 e 4)
(7) Cinco Nu-Kaita Tereta = Cinco Dedos (Di Carli)
(8) Samaco Yni-Caburtiquey = Fim do mundo, fim da picada
(9) Samaco Yni-Caburtiquey Mendes = Amazonino Mendes
Obs: Esta crônica, publicada originalmente em A CRÍTICA no dia 28 de maio de 1986, está sendo recuperada agora, em novembro de 2005, porque continua vigente a praga da mãe de Ajuricaba - o líder indígena dos índios Manáo, assassinado pelos portugueses no século XVIII.