Ele me mediu da cabeça aos pés e disparou:
- Você é um esgalamido.
Na hora, não entendi o sentido da palavra, mas desconfiei que era uma censura, pelo jeito com que me olhou. E agora, cinqüenta anos depois, ao descrever o que aconteceu naquele dia, sinto que estou colocando a carroça antes dos bois. Não seria melhor começar pelo começo para não confundir o leitor? Então, vamos lá. Era uma vez uma menina, fofinha e rechonchuda, que morava num casarão com jardim, porão e varanda, na Rua Monsenhor Coutinho, 380, no centro de Manaus. Seu nome era ....
(Égua! Pera lá! Será que vale a pena entregar aos leitores a verdadeira identidade dos protagonistas da nossa história? Afinal, quase todos estão vivos e alguns são figuras públicas, que aparecem na mídia baré. Mas, pensando bem, como nenhum deles fez o papel de bandido, acho que posso contar o fato como o fato foi, dando nome aos bois. Ai vai).
A linda menina do episódio de hoje se chama Vânia. É uma prima querida. Todo ano, no dia 4 de maio, seu aniversário era comemorado com uma festança do arromba. Tinha comida até o tucupi: vatapá, maionese, risoto, sarapatel, picadinho de tambaqui, pirarucu-de-casaca, tucunaré-de-paletó. Tia Dedé economizava o ano inteiro para fazer os doces, servidos em forminha de papel: brigadeiro, olho-de-sogra, beijinho de caboca, mas também pudim-quero-mais, musse de açaí, torta de cupuaçu com merengue. Corria solto guaraná de todas as marcas: magistral , baré e luséia.
A gente aproveitava para tirar a barriga da miséria. Quando digo 'a gente', não me refiro a todos os convidados, mas apenas a nós, os parentes do Beco da Bosta, lá no bairro de Aparecida. Durante o ano inteiro, comíamos a macaxeira que o capiroto ralou, acompanhada de leite em pó americano do Programa 'Aliança para o Progresso' e, às vezes, de queijo alaranjado e fedorento, que grudava no céu da boca, ambos “donated by the people of the United States”, conforme vinha escrito na lata. Quando chegava o 4 de maio, a nossa fome crônica, canina, nordestina, lavava a égua. Era, como diriam os franceses, “la grande bouffe”.
Inveja de Eirunepé
Entre os convidados, porém, havia gente abastada, que morava na Monsenhor Coutinho: profissionais liberais, médicos, advogados e juízes, da família Limongi, Batista, Cabral dos Anjos, que não sabiam o que era fome. Havia ainda dois vizinhos podres de rico: Mário Covas, da casa em frente, de número 389, e o velho Nasser, pai da Charufe, a sultana dos seringais, que morava na esquina com a Ferreira Pena.
Para quem vivia no Beco da Bosta, a mansão dos Covas era cinematográfica, apoteótica, holywoodiana, três andares, um jardim imenso com uma mini-floresta, piscina olímpica, chafariz com jacaré dourado jorrando água pela boca e pelo rabo, em cascatas iluminadas por lâmpadas fluorescentes, uma garagem entupida de carros, motos, barcos, inclusive um ônibus com carroceria de madeira construída em Manaus. Era de deixar qualquer eirunepeense arrivista roxo de inveja. Botava a mansão do Tarumã no chinelo.
O palacete dos Covas funcionava com um exército de empregados domésticos, encarregados de sua manutenção. Tinha mordomo, jardineiro, copeira, motorista, mecânico, eletricista, arrumadeira, passadeira, lavadeira, cozinheira, babá. Um recenseamento sério e isento mostraria que o número de domésticos do palacete era certamente maior do que a quantidade de soldados alistados no Quartel do 27º BC, ali onde hoje é o Colégio Militar. Mário Covas, dono das lojas 'Dragão dos Tecidos' e '22 Paulista', enriqueceu vendendo as cuecas que os amazonenses vestiam.
Naquele 4 de maio de 1957, o Nacional, com Pedro Brasil fechando o arco, ganhou do Auto Esporte com Vicente, Guarda e Gatinho. No exato momento em que Leal da Cunha, no programa 'Esporte no Ar' da Rádio Baré, anunciava que “O Brasil fabrica os melhores calçados do muuundo e a Sapataria Salvador vende os melhores calçados do Brasil”, os filhos do Mário Covas – Maria Amélia, Nelson, Jaime e José – atravessavam a rua para comemorar o aniversário da Vânia. Vamos atravessar a rua com eles, leitor (a). Não tem perigo de ser atropelado, porque todos os carros da cidade cabiam na garagem do Palacete .
Só come quando sobra
Sentado na varanda, Jaime Covas, hoje um médico competente, naquela época era apenas uma criança. Fomos servidos juntos. Em questão de segundos, a comida todinha desapareceu do meu prato, que ficou tão limpo que nem precisava ser lavado. Jaiminho, ao contrário, comia bem devagar, mastigando filosoficamente, e no final deixou uma porção respeitável de picadinho de tambaqui, para meu desespero, que não me conformava de ver aquilo jogado no lixo. Protestei contra o desperdício. Foi aí que Jaiminho, olhando de cima para baixo, me repreendeu:
- Você é um esgalamido.
Depois, para não haver dúvida, repetiu soletrando cada sílaba: “es-ga-la-mi-do”. Arrematou me dando uma lição de boas maneiras:
- A gente, quando é convidado, não come tudo. Deve deixar sempre a cerimônia no prato.
Intrigado, indaguei, querendo aprender mais:
- Por que?.
Ele concluiu, definitivo:
- Para não pensarem que a gente passa fome em casa.
Não quis decepcionar o Jaiminho e explicar que esse era, justamente, o meu caso. No Brasil ainda não havia o 'Fome Zero', nem o leite e o queijo doados pela Aliança para o Progresso eram suficientes para matar nossa fome.
Eis o que eu queria dizer: o Jaiminho Covas fez comigo o que o PFL (viche! viche!) está fazendo com o PT, querendo dar lição de moral, de barriga cheia. Os ACMs – avô e neto, o Bornhausen, o filhotinho do César Maia, depois de haverem mamado 500 anos nas tetas do Governo (Tomé de Souza e Duarte da Costa tinham ficha do PFL), se tornaram, de repente, virgens impolutas. Dá vontade de rir quando vejo na tv o Pauderney – o Pauderney, gente! – falando de moralidade, de ética, de honradez e oscambau a quatro.
Tá certo, a impressão que alguns companheiros do PT dão é que estão comendo tudo, rapidamente, com muita voracidade, sem deixar um restinho no prato. Aí, parece que os militantes se comportam, no Poder , como um bando de esgalamidos. Podiam ser mais discretos, é verdade. Nós, que neles votamos por causa dos princípios que juntos defendíamos, podemos criticá-los, gritando:
- Es-ga-la-mi-dos.
Mas o PFL não. O PFL está protestando, de barriga cheia.