CRÔNICAS

Minhas irmãs, Lula e o gás boliviano

Em: 14 de Maio de 2006 Visualizações: 9219
Minhas irmãs, Lula e o gás boliviano

O noticiário recente sobre o gás boliviano me fez buscar o colo das minhas nove irmãs, a quem sou grato, entre outras razões porque todas elas, boas parideiras, me deram uma penca de sobrinhos queridos biológicos, mas também adotados. Quase todas perfilharam crianças de origem humilde, compartilhando diariamente o pão e o afeto com todos elas.

As 'meninas' são assim: generosas. Ensinam, através do exemplo, que a solidariedade é um valor supremo. Vivem suas vidinhas, cuidam dos filhos, (des) entendem os maridos, ajudam o próximo, amam, trabalham, rezam, fofocam, brigam, celebram a vida e, juntas, encaram as aflições e amarguras do cotidiano. Por isso, hoje peço licença para me dirigir a elas.  

Maninhas, saudações

Escrevo essa carta, mas não reparem os senões. O meu desgosto com o noticiário sobre o gás da Bolívia foi tão grande, que começo essa missiva copiando a letra de uma música de Waldik Soriano, da década de 60. Na realidade, estou escrevendo, porque preciso compartilhar essas preocupações com vocês, esperando que me compreendam.

Acontece que governos corruptos da Bolívia, em passado recente, concordaram em vender gás ao Brasil por um preço de banana, inferior três vezes ao que cobra o mercado. Os bolivianos protestaram e elegeram Evo Morales, porque ele prometeu fazer aquilo que o Brasil fez na década de 1950: nacionalizar o petróleo e o gás e estatizar as empresas estrangeiras, entre as quais se encontra a Petrobrás, que lá é estrangeira.

Evo cumpriu sua promessa. O presidente Lula fez, então, o melhor discurso de seu governo, invocando o princípio da solidariedade. Reconheceu o sofrimento do povo boliviano e seu direito soberano de decidir sobre os recursos naturais, lembrando que o Brasil havia feito o mesmo nos anos 50. Falou que ia negociar uma alternativa interessante para os dois países.

Foi aí que grupos dominantes na política e na mídia brasileira desencadearam uma campanha histérica, explorando um sentimento bom dos brasileiros de amor à sua pátria. Os mais calmos chamaram Lula de “romântico” e “idealista”, como se isso fosse um pecado mortal. Os mais raivosos proclamaram que ele era fraco, pusilânime e titubeante.

Os jornais só faltaram enviar correspondente de guerra a La Paz. O Estadão, para quem “Lula escolheu o caminho da rendição”, reproduziu a opinião da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo(FIESP), dizendo que o presidente do Brasil não foi firme na defesa do interesse nacional. A Folha de São Paulo em manchete de seis colunas falou em “invasão da Petrobrás”. O Globo, bem o Globo é o The Globe, o seu tom belicoso dispensa comentários.

 As revistas de circulação nacional, exaltadas, perderam qualquer objetividade. A Veja chamou a nacionalização do gás de “roubo” praticado pelo “índio pastor de lhamas” em aliança com Chaves, o satanás. A Istoé desinformou seus leitores, aterrorizando-os com o fantasma do desabastecimento do gás. Colocou na capa uma foto de Evo – “o homem que pode parar o Brasil” - sentado sobre um botijão.  

As emissoras de rádio meteram lenha na fogueira. Na CBN, Arnaldo Jabor, num comentário provinciano e boçal, chamou Lula de frouxo, Evo de cocaleiro primitivo, e Chavez de porteiro de boate gay. Na Jovem Pan, José Neumanne Pinto decretou: “Isto é guerra”, protestando contra a invasão militar das instalações da Petrobrás. Na Bandeirantes, José Paulo de Andrade reclamou uma ação contundente contra os bolivianos: “Eles nos invadem, enquanto nós continuamos impassíveis”.

Nos noticiários da TV, senadores e deputados, engravatados e grávidos, cobravam uma ação firme de Lula. Eles competiam para ver quem esculhambava mais o a Bolívia, parecia até que quanto mais raivoso era o discurso, maior era o amor ao Brasil. Mas essas vozes “em defesa do interesse nacional” são as mesmas que no governo anterior defenderam a privatização das empresas estatais brasileiras, incluindo a Petrobrás. Subservientes aos Estados Unidos e arrogantes com os bolivianos. 

A coragem desses políticos – a maioria do PFL (viche! viche!) e do PSDB – lembra muito a de D. João VI, o rei que em 1808 fugiu de Portugal se cagando de medo das tropas de Napoleão, mas aqui no Brasil decretou guerra aos Botocudos do vale do Rio Doce,  estimulando a escravização dos índios e a pilhagem de suas terras. Macho pacas!.

A pressão da mídia foi tanta que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, diante da insistência de um repórter, perguntou: “O que é que você quer, que o Exército brasileiro invada a Bolívia e obrigue os bolivianos a pagar o preço que nós queremos? Esse não é nosso método”. O próprio Lula teve de dizer que ele não era Bush.

Uma das poucas vozes dissonantes na imprensa brasileira foi a de Roberto Mangabeira Unger, que escreveu um belo artigo na Folha de São Paulo intitulado “Nosso dever para com a Bolívia”. Vale a pena reproduzir um trecho.

“A reação da parte endinheirada e cosmopolita da sociedade brasileira contra a nacionalização do petróleo e do gás na Bolívia revela a miopia, a mesquinharia, e o mercantilismo que pervertem a discussão da política exterior no Brasil. O interesse vem travestido do direito, o privado confundido com o público e as vantagens de curto prazo sobrepostas aos objetivos de longo prazo”.

Mais adiante acrescentou: “O que fazer diante da nacionalização e da revisão forçada dos contratos de fornecimento? À Petrobrás, como empresa privada, cabe reivindicar seus direitos por todos os meios legítimos. Seus diretores estão obrigados a fazê-lo. Ao governo brasileiro cabe negociar com o governo boliviano com a magnanimidade dos fortes e dos clarividentes, demonstrando espírito de sacrifício e de solidariedade”.

Mangabeira Unger considera essa gritaria contra a Bolívia como um “movimento que desonra o Brasil” e que não tem nada a ver com nossa tradição pela construção da paz, nem com o nosso futuro. Ele acha, maninhas, que o princípio de solidariedade, presente na relação de vocês com os vizinhos e os filhos adotivos, deve vigorar na relação com países vizinhos e amigos como a Bolívia. Por que não?

Ele tem razão. A saída é a negociação, baseada no respeito mútuo e na busca de convergência de interesses.  Nesse momento, o Brasil não pode viver sem o gás boliviano e a Bolívia não pode viver sem vendê-lo ao Brasil. Se esticar a corda e engrossar o pirão, os dois países perdem. Se negociar, os dois ganham. Não tem como um ganhar e outro perder. Portanto, quem está defendendo os interesses nacionais é Lula e não a oposição. Essa faz o jogo daqueles que não querem ver a América Latina unida.

P.S. – Confesso minha simpatia pelo povo boliviano, que durante um período acolheu exilados brasileiros perseguidos pela ditadura, dividindo com a gente a batata, o milho e a chicha. Isso não me impediu de pular no colo das minhas irmãs, quando vi na TV o ministro de Hidrocarburos da Bolívia, Andrés Soliz Rada, com sua boca de arapapá e seus dentões de jacaré-tinga. Vocês viram o cara na TV, maninhas? Ai, que meda! Com todo respeito.

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