CRÔNICAS

As crianças no exílio e o mundo flicts

Em: 21 de Abril de 2025 Visualizações: 444
As crianças no exílio e o mundo flicts

Anda, preparándote a vivir, en América, tu América

(Canción de Payo Grondona. Valparaíso. 1969) 

As lembranças evocadas com a leitura de “Crianças e Exílio: Memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar” foram tão pungentes, que adiei a resenha desse livro com depoimentos de 46 pessoas. Senti-me instigado a contar, antes, alguns lances da convivência pessoal com três delas: uma no Chile - Isabella Thiago de Mello e duas no Peru – André Luiz e Maria José, os dois últimos, que ainda não narraram suas histórias, estão ausentes do livro.

Em Santiago, presenciei a mãe de Isabella, Lourdinha, “com o vestido cada dia mais curto”. Quando deu à luz a filha, recebeu flores entregues pessoalmente por Allende, então presidente do Senado e sempre amigo do poeta Thiago de Mello.

Morei um par de meses com eles. Em suas eventuais saídas, eu ficava de baby-sitter, fazendo jus ao apelido de babá. Isabella, quietinha no berço. Eu, atento a algum terremoto, por si acaso. Entre algumas músicas de ninar que ouvíamos, lembro de “Duerme, duerme, negrito” na voz de Victor Jara em um LP lançado na época. A audição era compartilhada entre padrinho e afilhada, como até hoje nos tratamos.  

No texto escrito para o livro, Isabella reconstruiu suas lembranças e, em mensagem a mim enviada, filosofou:

- A Memória é química, faz parte do corpo e da alma, para sempre. É uma ilusão achar que o tempo passa. O Tempo fica na gente, entranhado nos glóbulos vermelhos, aqueles pontinhos do cerebelo. O Tempo é totalmente relativo, se fosse um gráfico jamais seria uma linha reta. O Tempo é sólido, tem altura, largura e profundidade como a Cordilheira dos Andes.

Flicts e André

Segui a Cordilheira. Despedi-me do Chile para ir ao Peru integrando o Teatro de Bonecos Dadá dos titiriteiros Euclides e Adair. O casal foi condenado no Brasil a quatro anos de prisão, acusado de “ensinar marxismo-leninismo a crianças de três anos do Jardim da Infância Pequeno Príncipe”. Policiais invadiram a casa, destruíram cenários, cortinas, bonecos e destriparam Eva, presente do ´papa dos títeres´ Sergey Obratzov, do Teatro Kukol de Moscou. Feita de espumas, Eva não consta na lista de desaparecidos políticos.

É aqui que surge André, nascido em 1968. Seus pais saíram clandestinamente para o Chile onde viveram nove meses e, em seguida para o Peru, onde passaram seis anos. Deixaram o filho com a avó em Curitiba. Trazido a Lima aos dois anos de idade viu três desconhecidos: a mãe, o pai e eu, ali no meio. Conheceu, enfim, sua família e seu lar: a garagem alugada de uma casa em Magdalena del Mar. Já familiarizado, ele despertava cedinho, antes de todos, cutucava meus olhos com seus dedinhos e murmurava:

- Zé Bessa, acorda, vamos pro parque.

Fomos algumas vezes ao zoológico do Parque de las Leyendas. Foi lá, à beira do lago, que contei para André a história de Flicts, cuja versão para o teatro de bonecos seria feita anos depois. Eu folheava o livro de capa dura com as figuras do Ziraldo, mostrando a ele a cor flicts em sua inútil busca por um lugar no mundo. No final, percebi no rosto do André, de perto, algumas lágrimas furtivas e silenciosas, mesmo estando ele aliviado por saber que a lua, de perto, era flicts.  

Nas encenações dominicais em Miraflores, André nos acompanhava. Sabia de cor as falas dos bonecos. Lá, na plateia, no meio de outras crianças, dava spoiler, se antecipava aos personagens e irradiava o que iria acontecer em seu portunhol, para assombro do público infantil, que se sentia diante de um herói. 

No jardim da burguesia

Certa vez, uma brasileira residente em Lima, trouxe o filho de 5 anos para ver “Os palhaços sem cabeça”. O garoto se divertiu. A mãe, encantada, revelou que era amiga do embaixador do Brasil e nos convidou para apresentar o espetáculo no Centro Cultural Brasil-Peru (CCBP) para filhos de brasileiros residentes em Lima. Ela desconhecia nossa condição de exilados. Fingimos estar em uma tournê pela América Latina.

Embora a gente sempre mantivesse distância da Embaixada e de suas ramificações, fomos ao CCBP. Pouco antes de lá chegar, em conversa reservada entre nós, manifestei preocupação:

- A porra desse Centro deve tá cheia de policial.

Na chegada, fomos apresentados ao cônsul, ao lado do adido militar, ele acariciou a cabeça do André, que falou em voz alta:

- A porra desse Centro deve tá cheia de policial.

Nunca mais nos convidaram. Nem aceitaríamos. No lançamento do livro Teatro de Bonecos Dadá, memória e resistência, em 2019, só de pirraça, tiramos uma foto com bonecos fantasiados com a foice e o martelo.

Outra vez, após o espetáculo, desmontamos o palco, guardamos os bonecos na mala e, carregando as tralhas, saímos a pé para casa, com André a tiracolo, numa caminhada de uma hora por um bairro residencial – um deserto naquele domingo. “Eu quero fazer cocô” – ele insistia, se contorcendo. A mãe respondia: - “Espera chegar em casa”. Ao passarmos diante de uma mansão com porta fechada e muro baixo que dava para um jardim, suspendi André nos meus braços e o coloquei sobre o gramado:

-  Faz cocô agora aqui no jardim da burguesia.

Fez. Durante algum tempo, grato, pedia a confirmação diante de amigos que nos visitavam:

- Zé Bessa, eu fiz cocô no jardim da burguesia, não foi?  

Creche nunca mais

Depois, o Teatro Dadá se uniu ao grupo Kusi-Kusi para fundar o Teatro y Escuela de Títeres. Uma foto registra cada um com o seu boneco. Levei, então, meu exílio para Paris. Adair contou que André chorava minha ausência em portunhol:

- Mi papito se fué.

Esta confusa noção de família era baseada na sua vivência. Conheceu Euclides e eu no mesmo momento, na mesma casa, compartilhando os mesmos cuidados e exercendo ambos autoridade inquestionável. Assim, acreditava que as crianças podiam ter dois pais: um biológico e outro de criação. E aqui entra a outra filha do exílio.

Filho de peixe, peixinho é? Depende do peixe.  O consulado brasileiro em vários países recusou registrar crianças filhas de exilados. Maria José foi uma delas. Nascida em Lima em 1974, tinha direito à dupla nacionalidade por ter pai brasileiro e mãe peruana, mas o consulado ficou enrolando. Foi registrada graças à diplomata Vera Pedrosa, filha de Mário Pedrosa, acionada por seu ex-marido Luciano Martins.  Seu nome registrado homenageava Maria José Lourenço, amiga exilada e companheira de militância do pai. O primeiro berço da Zezé II foi presente da Zezé I: um moisés com capota de vime.

Crianças de pais exilados quase sempre crescem em situação de graus diversos de bilinguismo, com função diferenciada para cada língua que, em situação de contato, deixam marcas mútuas, mexem e remexem com as identidades. Falsos cognatos e outros tipos de ruídos causam conflitos na comunicação.

A primeira língua da neo-brasileira, do ponto de vista cronológico, foi o espanhol adquirido na convivência com o entorno: mãe, avó materna, primas e primos. Entendia o português falado e cantado em casa pelo pai e interagia com eventuais exilados brasileiros. A escola, lugar de socialização, permite conversação na língua oficial do país acolhedor. Mas ela não teve escolaridade no Peru. O breve ensaio na creche do Ministério da Educação, local de trabalho da mãe, foi um fracasso. Um coleguinha deu-lhe uma mordida: “creche, nunca mais”.

Buenas noches

Após Zezé completar dois anos, em dezembro de 1976, a família se mudou para Brasil. Para o pai, era um retorno. Para a mãe e a filha, uma aventura em terra desconhecida. No aeroporto de Manaus foram recebidos por 82 pessoas: nove irmãs e dois irmãos, tios e tias, muitos sobrinhos, primos, cunhados e xerimbabos.

A família se hospedou na casa da vó Elisa, no bairro de Aparecida, onde moravam as duas irmãs mais novas solteiras e uma terceira divorciada com um casal de filhos pequenos. Passado o natal, a mãe retornou ao Peru por um mês para arrumar as coisas: pedir demissão do trabalho, organizar os livros, entregar a casa. Quarenta e oito horas depois, a Policia Federal prendeu o pai. De um dia para o outro, Zezé ficou sem pai nem mãe.

- A minha angústia – escreveu a mãe – é imaginar como a Zezé sobreviveu naquelas três semanas em um universo desconhecido, sem a principal referência, o pai, que a fazia dormir com canções de ninar. Ela ainda engatinhava na língua portuguesa.

A mãe agradeceu o esforço da família brasileira para se fazer entender:

- Soube que as tias se desdobraram para protegê-la na sua orfandade ocasional. Uma delas contou que ao dar boa noite, a sobrinha respondia:

- Buenas noches. E com voz chorosa perguntava pelo pai.

- Foi comprar sorvete. Helado – explicava uma das tias.

Três semanas depois, liberado pela Polícia Federal, um cunhado aconselhou no caminho para casa:

 - Compra um sorvete.

Comprei. Quando lhe entreguei o helado, ela me olhou, com uns olhos andinos tristes. Acariciou minha cabeça com um jeito protetor. Parecia uma velha. De repente, a ditadura invertera os papéis, transformando-me no filho órfão de minha própria filha. Seu olhar, condensando o sofrimento vivido, e seu gesto maternal, me deram a certeza de que uma vida toda não seria suficiente para digerir aquele sorvete de graviola.

Mais adiante, o pai sofreu um acidente, quebrou um braço e um pé. Chegou em casa todo engessado:

- Foi a Polícia que fez isso? – ela perguntou, condoída. Começava a torcer pelos índios que nos filmes americanos lutavam contra os  caubóis e lutavam contra o sistema.    

Sua benção, mamãe

Maria José regressou várias vezes ao país onde nasceu para recolher seus passos. Sua tese de doutorado em antropologia foi fruto do trabalho de campo no Vale do Colca, Sul do Peru, a 3.800 metros de altitude. Em setembro de 2023, acompanhou seu pai na Caravana Viva Chile, composta de 150 ex-exilados, que foram levar flores ao túmulo de Allende e agradecer o acolhimento dos chilenos. Visitou os lugares de memória de sua proto-história.  Em um deles, foi filmada por Silvio Tendler em frente a Pensão da calle Michimalongo.

 - Nesta casa, seu pai e eu dormimos na mesma cama. Posso ser sua mãe. Exijo, embora tardiamente, um exame de DNA – disse o sacana do Silvio.

Não foi preciso. Ao se despedir, a sacana da Zezé pediu:

 - Sua bênção, mamãe!

Silvio a abençoou de uma forma que faria inveja à avó da abençoada.

P.S. – Esses são relatos de quem conviveu no exílio com essas três crianças. As lembranças delas, como de tantas outras, estão sendo elaboradas com suas próprias impressões e auxílio de fotografias amareladas, de visitas aos lugares onde viveram e de histórias contadas pelos pais e amigos, documentos orais, escritos e visuais, que sempre necessitam passar pelo filtro da crítica e do cruzamento de dados.

Confesso que a leitura do livro Crianças e Exílio, recém lançado, me deixou dilacerado com algumas noites de insônia. Registra histórias de terror, sofrimento, traumas de infância, sequestros de bebes, crianças e adolescentes filhos de opositores ao regime ditatorial, tratados como apátridas e mini terroristas. Mas o livro acena também para a resistência, as brincadeiras infantis, a solidariedade, a amizade entre exilados. A dose de humor de alguns relatos abre, aqui e ali, janelinhas de esperança da qual todos nós tanto precisamos.

As crianças exiladas em muitos países hispanos americanos parecem ter seguido o conselho de Payo Gondrona e aos trancos e barrancos aprenderam “a vivir en América, nuestra América”.

Referências:

  1. Nadejda Marques e Helena Doria Lucas de Oliveira (orgs). Crianças e Exílio. Memórias de infâncias marcada pela ditadura militar. (46 autores). São Leopoldo (RS). Carta Editora. 2025.
  2. Crônicas do Taquiprati:

a. De volta do exílio, a prisão. 06/05/ 2004 https://www.taquiprati.com.br/cronica/290-de-volta-do-exilio-a-prisao

b. De volta ao lar no Chile: a nossa cetutxiá. 01/10/2023. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1714-de-volta-ao-lar-no-chile-a-nossa-cetutxia-version-en-espa

c. Teatro Dada: o Brasil através dos bonecos. 07/04/ 2019. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1450-teatro-dada-o-brasil-atraves-dos-bonecos

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9 Comentário(s)

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Raimunda Assunção comentou:
21/04/2025
Quero muito ler esse livro sobre as crianças brasileiras exiladas. Sua crônica me estimulou. Obrigado
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Celeste comentou:
21/04/2025
Ufa!! Eu tive que ler a crônica em doses homeopáticas...muito forte esses relatos. E, enquanto lia eu pensava no enorme risco que o país passou em 2022 ...quem seriam as"crianças no exílio" dessa vez, com suas histórias cheias de lacunas tatuadas na memória? Me deu um frio enorme na barriga! Caramba, é preciso contar essa história nas escolas para os nossos jovens, ainda que possa doer e chocar. Ditadura nunca mais!
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Valter Xeu comentou:
21/04/2025
Publicado no blog Patria Latina https://patrialatina.com.br/as-criancas-no-exilio-e-o-mundo-flicts/
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Bolivar Corrêa De Carvalho comentou:
21/04/2025
Muito linda e ao mesmo tempo com muita adrenalina. . tinha que dar uma de Garrincha, sempre driblando os X9
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Nana Soeiro comentou:
21/04/2025
Que memoria!! Que riqueza de detalhes que so vc Baba apresenta em suas cronicas!! Vc eh HISTORIA VIVA!
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Dinah Ribas Pinheiro comentou:
21/04/2025
Crianças e exílio despertou, além da minha curiosidade, um profundo sentiento de melancolia. Teu texto é sensível e me tocou profundamente.. Onde posso adquirir o livro? Conheço duas crianças que mereceram tuas memórias, André Luiz e Zezé. Imagina acessar as história de 46, hoje adultos, que tiveram que deixar seus binquedos, suas escolas seus amigos por causa das ditaduras cruéis dos países latino-americanos. Relatos necessários para que não se esqueça do que se passou aqui no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai em períodos sombrios. Há crianças palestinas, ucranianas, congolesas, sírias e de vários cantos do mundo que continuam experimentando suas diásporas. até quando?
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Silvia Inés Cárcamo de Arcuri comentou:
21/04/2025
Genial essa resenha. Um convite para ler essas historias de exilio e infância não apenas para saber de histórias truculentas, mas também para reconhecer resistências, inocências e humor de crianças e adultos que, a seu modo, nao aceitaram o obscurantismo das ditaduras cívico militares.
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Marisa Castellani (NSS) comentou:
21/04/2025
Textos do Bessa são sempre um presente incrível! Que beleza!
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Célio Cruz comentou:
21/04/2025
Crônica maravilhosa, comovente e esperançosa. Coisa comum ao Mestre Babá.
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