- Como diz o maranhense, eu estou “bestinha”, sem saber como é que devo me comportar, se choro, se sorrio, se sinto, se fico paralisada.
Foi assim, majestosa, combinando seu cocar e a veste talar, que a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, recebeu o diploma de doutora honoris causa das mãos da reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Gulnar Azevedo e Silva, quarta-feira (28), no Teatro Odylo Costa filho. Ouvidas por indígenas, professores, alunos, parlamentares e lideranças de movimentos sociais, ambas se solidarizaram com a ministra Marina Silva insultada e agredida no dia anterior por senadores misóginos em audiência no Senado Federal.
Escolhido para falar em nome da UERJ, este professor aposentado que vos fala também ficou “bestinha” (se a ministra permite plagiá-la), porque, todo “posudo”, trajava pela primeira vez a “veste talar”, embora não soubesse bem o que era, quando informado dias antes pelo Cerimonial de que teria de usá-la. Conto o lance no final. Primeiramente, vamos à cerimônia.
O evento começou com apresentações musicais dos corais da Uerj focados no repertório musical brasileiro: o Altivoz e o Núcleo de Envelhecimento Humano. Na sequência, o Coral Indígena Guarani da Aldeia das Mata Verde Bonita, formado por crianças e adolescentes da Escola Municipal Indígena Guarani Para Poty Nhe´e ë Já, de Maricá (RJ) cantou como nunca. Os três corais, uma beleza.
A Uerj e a ministra
Aqui vai uma versão resumida do discurso de recepção. Este locutor que vos fala destacou que o título concedido era imprescindível por duas razões: o tratamento dispensado pela Uerj nos últimos 33 anos às culturas e línguas indígenas e a trajetória de Sônia Guajajara no cenário nacional e internacional.
A Uerj criou o Programa de Estudos dos Povos Indígenas e o Núcleo da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, construiu parcerias com várias instituições, realizou pesquisas, desenvolveu projetos de extensão, promoveu mudanças curriculares, produziu material educativo para escolas indígenas e não indígenas, ministrou cursos de formação de professores bilingues, publicou livros e artigos sobre bibliotecas indígenas, que atraíram a atenção da Unesco e de organizações internacionais.
Uma enquete da Uerj, em 1994, ouviu 250 pessoas sobre a imagem que tinham do indígena. “O índio é um câncer da sociedade, porque não trabalha e impede o crescimento econômico do país” – disse um entrevistado formado em economia. Sua mãe, que só tinha o ensino fundamental, afirmou: “O índio é alguém que ama a natureza, não contamina os rios, respeita árvores e animais”. Será que quanto mais escolaridade, maior o preconceito? Qualquer que seja a resposta, era preciso atuar no sistema escolar de ensino.
Uma lei de 2008 que tornou obrigatória a temática indígena na sala de aula, não bastava. Fazia-se necessário atualizar professores e produzir material didático adequado, sem o que os bandeirantes continuariam sendo tratados como heróis e os indígenas como preguiçosos. A Uerj realizou, então, inúmeras oficinas de formação de docentes e produziu livros paradidáticos, um deles Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro com tiragem de 10.000 exemplares distribuídos nas escolas públicas pela Prefeitura do Rio.
A ministra recebeu exemplares desse e de outros livros, o último deles “Povos Indígenas, Povos Originários” do Projeto Trilhos da Alfabetização da Fundação Getúlio Vargas, coordenado por Vilma Guimarães, com textos de representante da UERJ e fotos de Kumreiti Kiné, o Mre Gavião, fotógrafo do Ministério dos Povos Indígenas, falecido recentemente aos 27 anos.
Voz à prova de bala
Sônia Guajajara, mãe de três filhos, graduada em Enfermagem e Letras, pós-graduada em Educação Especial pela Universidade Federal do Maranhão, liderou várias organizações indígenas. Candidata a vice presidência da República, se elegeu depois deputada federal com expressiva votação para “aldear a política” através da “bancada do cocar”. Sua voz “à prova de bala” ecoou na ONU e no Parlamento Europeu, reconhecida pela revista Time e pela BBC como uma das cem pessoas mais influentes e inspiradas do mundo.
Convidada pelo Governo Lula para ser titular do Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara continua o papel histórico das mulheres na preservação das culturas e línguas nativas, ilustrado com a narrativa do jesuíta João Daniel que, no séc. XVIII, viu um padre espancar uma mulher indígena na ilha do Marajó com uma palmatória. - Só paro de bater se você disser “basta”, mas não na tua língua materna - falou. Bateu “até lhe inchar as mãos e arrebentar sangue”. Suas mãos sangraram, mas ela resistiu.
- As mulheres resistem mais do que os homens a abandonar suas línguas – escreveu o jesuíta. Se ele tiver razão – e ele tem - o Brasil deve sua atual diversidade linguística e cultural à resistência das mulheres, sobretudo das avós, que não deixaram o colonizador completar o glotocídio, o que permitiu o Brasil manter hoje, ainda vivas, 274 línguas autodeclaradas das 1.300 existentes no séc. XVI.
Sônia Guajajara simboliza essa resistência de 525 anos. Participou, em 2023, do lançamento da Constituição de 1988 traduzida ao Nheengatu, integrando a comitiva da então presidenta do STF, Rosa Weber a São Gabriel da Cachoeira (AM) e depois à Aldeia Maturacá, onde Rosa Weber foi batizada com o nome de Xororima – andorinha na língua Yanomami. Como uma Xororima só não faz verão, os Yanomami batizaram Sônia Guajajara com o nome de Horetoma, cujo significado é o equivalente à mulher magnifica.
Magnífica Sônia. Magnífica reitora Gulnar. Essa magnificência compartilhada permite que a Uerj aprofunde o diálogo intercultural dos saberes ancestrais com o conhecimento científico, compromisso acadêmico que vai muito além e se firma no apoio a políticas públicas pela demarcação das terras, a defesa dos direitos indígenas, de suas línguas e culturas. Que o diploma de doutora honoris causa hoje concedido à Sônia Guajajara fortaleça essa aliança perene entre a veste talar e o cocar.
Refloresta mentes
O discurso da ministra, aqui em versão resumida, destacou a importância da presença indígena nas universidades brasileiras. O título concedido “é antes de tudo o reconhecimento da trajetória coletiva dos povos indígenas no Brasil” e do caráter pioneiro da Uerj, “a primeira universidade pública a criar o sistema de cotas, que depois se expandiria para todas as universidades federais. O mérito acadêmico não pode ser separado das desigualdades estruturais de nossa sociedade”.
“Sinto profunda alegria ao ver as novas gerações ocupando as salas de aulas, os meios de comunicação, as artes, o parlamento, o judiciário e também os espaços no Poder Executivo municipal, estadual e Federal”.
A emoção da homenagem por uma universidade geograficamente tão distante do lugar onde nasceu, a Terra Arariboia, no Maranhão, foi explicitada: “A distância reforça a potência desse gesto, que rompe fronteiras, com um título concedido por uma Universidade, que é referência na produção do saber e na formação crítica”.
A defesa do meio-ambiente foi centrada na "floresta amazônica, que é uma obra viva, manejada ao longo de milênios, com sistemas agrícolas complexos, aldeamento de espécie e engenharia ecológica sofisticada”. A floresta foi edificada com o saber e o trabalho indígena.
- A Amazônia deve ser vista como um monumento à inteligência e à resiliência indígena, erguido e tecido em biodiversidade e conhecimento sustentável. Contra as queimadas, reivindicamos o reflorestamento, que se tornará possível se a gente refloresta mentes.
“Nunca mais o Brasil sem nós”. A ministra foi aplaudida calorosamente.
No encerramento, a reitora Gulnar Azevedo e Silva destacou ser “essa a primeira vez que a Uerj entrega a uma personalidade indígena o nosso grau máximo de reconhecimento, por contribuição à sociedade, à cultura e à ciência”. Ressaltou que “os povos indígenas produzem conhecimentos e saberes” e que “na nossa Universidade entendemos que esses saberes, fundamentais para a pluralidade e para a construção de uma sociedade mais justa em um país livre e soberano, são partes vivas da nossa história e do nosso futuro”.
Veste talar
Vai aqui um comentário pessoal. Dias antes da solenidade, o eficiente Cerimonial da Uerj indagou a altura e o número da camisa de cada um para preparar a veste talar. A informação foi dada, mas ficou a vergonha de perguntar o que era aquilo. Consultar o Google? O receio era de receber dezenas de mensagens tentando vender veste talar, como sói acontecer sempre que googleamos. Foi quando minhas oito irmãs me chamaram pelo zapp para o encontro diário do grupo de oração.
Gosto de me exibir para elas, a primogênita com 84 anos, a caçula com 63. Assim, eu disse, afetando naturalidade:
- Vou falar na solenidade de entrega do diploma de doutora honoris causa à Sônia Guajajara. Terei que trajar uma veste talar, mas não sei o que é isso. Se fosse um cocar igual ao da ministra, eu saberia.
- “Estás brincando ou fazendo charminho” – desconfiou uma delas, professora aposentada da Universidade Federal do Amazonas. “Todo universitário sabe o que é veste talar”.
- Quero ver nossa mãe mortinha no inferno se eu souber. Cocar, conheço vários tipos: a coroa radial Kaxinawá com plumas coloridas de mutum, o diadema Kayapó com penas de maguari e garça-branca, a coroa radial com penas da asa da arara-vermelha do meu amigo Carlos Tukano. A dos Waiãpi feita com penas de pássaros que voam alto. Conheço até o adorno de aro emplumado dos Tiryó com penas de anambé-de-peito-roxo. Mas veste talar é como o arcabouço fiscal. Eu e a torcida do Flamengo não sabemos o que é.
- É uma espécie de batina – falou a irmã viúva de um ex-padre redentorista. As referências delas são todas de igreja. A outra, que já visitou três vezes o Vaticano e é viúva de um quase padre salesiano, completou:
- É aquele casaquinho parecido com o do papa.
Uma das irmãs invocou sua autoridade por ter filha advogada e, puxando brasa para o seu pacu, garantiu:
- É aquela beca que o Xandão os advogados usam no tribunal.
A caçula googlada esclareceu:
- Gente, não existe um modelo único. A veste talar do reitor é uma, dos pro-reitores é outra, com cores diferentes de acordo com a área do conhecimento. Além disso, tem toga de juiz com aquele babador branco, tem um com a borla em torno da gola, tem aquela capa pequena sobre o ombro encobrindo a veste preta até a altura do cotovelo. Vejam os cardeais e os bispo. Tem de tudo.
Assim, ela encerrou a discussão. Começou, então, a oração do grupo. Na hora em que cada um reza por suas intenções, me deu vontade de recorrer a uma intenção profana, mas elas protestariam se eu falasse:
- Para que saibamos o que é veste talar, rezemos ao Senhor.
Nenhuma delas responderia:
- Oh Senhor, escutai a nossa prece.
No entanto, confesso, garboso, que gostei de trajar pela primeira vez a veste talar. Dá um tom solene que a cerimônia merece. A ministra Sônia Guajajara estava à vontade, ela já sabia o que era aquele traje. Eu aprendi agora com meu guru para assuntos de solenidades:
- Volto com você aos estúdios, Rodrigo do Cerimonial da Uerj.
P.S. – Nunca vi veste talar em museus. Mas cocar sim. Eles podem ser consultados nos livros de 1) Sonia Ferraro Dorta & Marilia Xavier Cury. A Plumaria Índígena Brasileira no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. São Paulo. EDUSP-MAE, 2000. 2) Berta Ribeiro. Dicionário do Artesanato Indígena. Belo Horizonte/São Paulo. Editora Itatiaia/Edusp. 1988
Exemplares dos livros abaixo foram entregues em nome da UERJ à doutora Sônia Guajajara por Martinha Guajajara, diretora da Escola Mata Verde Bonita de Maricá, acompanhada de duas crianças guarani:
1.Vilma Guimarães (org), José R. Bessa Freire e Maria José Freire: Povos Indígenas, Povos Originários: Trilhos da Alfabetização. Rio de Janeiro. FGV/DPE. 2024
2.Flávia Marinho, Ivânia Neves, Maria do Rosário Gregolin (orgs) O Governo da Língua. Uma perspectiva discursiva sobre o lugar da língua nas relações de poder no Brasil. Guarapuava. Unicentro. 2023.
3.Solange Bastos. Na Rota dos Arqueólogos da Amazônia. 13 mil anos de selva habitada. Teresópolis. FB Editora. 2015. (Prefácio de Eduardo Neves).
4.Autores indígenas e Lucila Silva Teles (org). Maino`i Rapé. O caminho da sabedoria. Rio. Iphan/Cnfcp/Uerj. 2009. (Equipe Uerj: José R. Bessa, Ana Paula da Silva, Andrea Ribeiro Sales e Valéria Luz).
5. J.R. Bessa e Márcia Malheiros. Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro. Rio. Eduerj. 2009 (2ª edição).Depext-Uerj. 1997 (1ª edição).
6. Ailton Krenak & 35 autores indígenas. Te mandei um passarinho. Provas e versos de índios no Brasil. Orgs: Ira Maciel, José R. Bessa, Nietta Monte e Núbia Melhem. Brasília. Mec. 2007. (Prefácio de J. Bessa Uma Floresta de livros. Versão digital, OPIERJ) https://drive.google.com/file/d/1nomRlHaiWZIFOULcI98xIRU-GE4lzCNG/view
7. José R.Bessa (org). Os Índios em Arquivos do Rio de Janeiro. 2 tomos. Rio. Gráfica da Uerj. 1995.
8. Taquiprati. A Constituição em Nheengatu na Canoa do tempo. Taquiprati. Manaus. Diário do Amazonas. 23 de julho de 2023. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1703-a-constituicao-em-nheengatu-na-canoa-do-tempo
Crédito de fotos: Comuns, Emerson Baré Puranga, Rodrigo Chagas, Leticia Luna Freire. A cerimônia na íntegra na TV UERJ - https://www.youtube.com/live/VNMr3vlx8V0