“Em Mangueira, quando morre um poeta, todos choram” (Pranto de poeta. Nelson Cavaquinho. 1956)
Pedro Antônio Custódio era poeta e residia no morro da Mangueira. Daí o inevitável e justificado choro coletivo no seu velório, domingo (1), no Memorial do Carmo do Cemitério do Caju. O pranto foi abençoado por Nelson Cavaquinho.
Pedro cantou a pedra em seus últimos poemas. Em “A vida que me resta”, percebeu que iria “viver sem tempo para ensaiar antes”, sem poder se exercitar para os embates da existência, consciente de que ninguém vence o jogo sem treinar. Previu, em “Tadinho do meu coração”, que o órgão no lado esquerdo do peito “não sobreviveria apenas para me servir”, pois tinha mais o que fazer. E, em um terceiro poema, talvez inspirado nas Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, irradiou sua própria morte:
- Pronto: morri. E afinal, quem Eu fui?
Pois é, boa pergunta: afinal quem foi Pedro Custódio?
Respostas antecipadas foram dadas em versos pelo próprio poeta e pelos amigos docentes da Faculdade de Educação da UERJ presentes ao velório. Lá, compartilhamos a dor com os familiares: a viúva Nadir – o amor de sua vida, os dois filhos – a professora Helena Marina (38) e Lottar Mateus (34) e os cinco netos: Heloíze (17), Gustavo (12), Noah (6) Sarah (4) e Pedro (3), além das irmãs Graça (67), Fátima (64) e do caçula Marcos (57) - protetor e protegido do irmão.
A aula do Pedro
Por que professores da UERJ foram se despedir do Pedro? Durante dez anos, ele nos abria as salas de aula e dava suporte técnico na manutenção de computadores. Mas fazia algo menos prosaico. E mais poético. Cedinho, antes da aula, quando íamos compartilhar o cafezinho na sala multimídia, rolava um papo instigante. Pedro nos deslumbrava com sua sabedoria e veia poética. Recitava uma poesia aqui, outra ali e nos provocava “a pensar melhor sobre o que dá sentido à vida”, mostrando que a sabedoria não precisa de diploma:
- Pedro era um mestre sem mestrado, um doutor sem doutorado. Seu diploma era o amor pela escrita, pela poesia crítica, com um jogo de palavras bem jogado, brincando com suas próprias ideias – escreveu José Carlos Lima, que fazia parte da “turma do cafezinho”, junto com Sammy Lopes, Ana Mignot, Letícia Freire, Lígia Aquino, Washington Dener, Evelyn Almeida, José Gondra e outros doutores, que não dispensavam um dedo de prosa e de poesia e interagiam de igual para igual, aprendendo com quem não havia concluído o 2º grau.
Uma manhã, o papo esquentou mais do que o café, quando Pedro, desafiador, disse detestar a alegria: “A alegria não deixa a gente pensar, ao contrário da tristeza, que provoca reflexão”. Discordei. Foi um duelo, cujas espadas eram menções a letras de música. Ele revelou que gostava de duvidar de “verdades” estabelecidas, como uma forma de descobrir coisas novas. Fiquei tão tocado por seus argumentos, que o convidei a dar aula comigo. Entramos na sala, ele proseou, versejou e filosofou. No final, os alunos o aplaudiram de pé. Contei isso em “Pedro Custódio, o filósofo da Mangueira na Uerj” (link abaixo), com lances de sua história de vida.
Nascido na Casa da Mãe Pobre, Zona Norte do Rio, Pedro residiu sempre na Mangueira. Quando criança, ficou paralítico devido a uma febre reumática, que provocou também séria disfunção cardíaca. Em cadeira de rodas, acompanhava sua mãe, merendeira em uma escola, e lá ficava o dia todo, sentado no pátio, quieto, “contemplando o mundo e registrando tudo com os olhos e os ouvidos”. Aos 8 anos foi operado do coração e ressuscitou, recuperando sua mobilidade.
Dança das artérias
No entanto, há alguns anos, Pedro voltou a sentir cansaço extremo e falta de ar. Encaminhado pela então diretora da Faculdade de Educação, Rosana Glat, buscou na reitoria o médico José Augusto Quadra, que o examinou e perguntou:
- Você costuma se sentar na cama, à noite, e fica debruçado com os cotovelos sobre os joelhos? Teve “febre reumática” na infância?
Pedro olhou o “bruxo” Quadrinha e confirmou com uma pergunta:
- Como o senhor sabe? Eu nunca lhe contei isso!
O doutor Quadra constatou que havia um grave problema na válvula aórtica, que estava insuficiente e causava um “tremor” nos vasos do pescoço, conhecido como “dança das artérias”. Concluiu que era urgente uma cirurgia cardíaca. Encaminhou-o ao Hospital Pedro Ernesto. Lá, a válvula aórtica doente foi substituída por uma válvula metálica “barulhenta”. A operação foi um sucesso. A “dança das artérias” do pescoço e os sintomas de descompensação clínica desapareceram, propiciando um retorno à vida normal.
Pedro voltou renovado da cirurgia para a labuta diária ao lado do colega Cristiano. A partir daí, Quadra se integrou virtualmente à “turma do cafezinho”, encantado com o poeta, que lhe mandava suas poesias.
Mas alguns anos se passaram e “em um abrir e fechar de olhos tudo se foi” - escreveu Pedro no poema “Um, dois, três”, no qual confessa um segredo:
- O tempo me disse que se vê incapaz de tornar a unir o que foi partido.
Há um mês, quando o coração já funcionava apenas com 8% de sua capacidade, a “turma do cafezinho” se mobilizou e conseguiu interná-lo no Hospital Pedro Ernesto, sem tempo, porém, de operá-lo.
Pedro e seu “pquyquy”
- Infelizmente nosso amigo se foi. A situação atual era gravíssima. Em conversa com colegas da cardiologia, fui informado que o seu estado era terminal – disse Quadra, que fez a intermediação com os especialistas da área.
O coração não aguentou. Explodiu. As artérias pararam de “dançar” dois dias depois de Pedro completar 65 anos.
Cardiologistas amantes de poesia suspeitam que, em casos como o do Pedro, o eletrocardiograma não dá conta do ritmo cardíaco, pois sua batida é a de um “pquyquy” - denominação para “coração” na língua indígena muísca da Colômbia. O campo semântico do “pquyquy”, porém, é muito mais amplo, não designa apenas o órgão muscular, abarca talento, imaginação, habilidade, sagacidade, amizade, aflições, culpas e muito sofrimento. O muísca pensa com o coração. Como examinar um “pquyquy”, guardião da memória?
No poema “Coração: cuide do seu”, o Pedro de muitos corações revela seu lado muísca, o que exige abordagem interdisciplinar com a participação de neurologistas:
- Um só coração / é pouco para alguns. [...] Para outros, um coração é muito. / Não ter nenhum coração / lhes basta. / Enfim, sendo assim, / acaba faltando humanidade.
Na língua muísca, quando alguém é muito inteligente, se diz que tem “o coração cheio de luz”. Foi desse coração que nos despedimos no velório de Pedro, cuja poesia nos ilumina, dá vida a nossos sentimentos e nos instiga a pensar.
Favela do Esqueleto
Por outro viés, a leitura dos poemas do nosso Pedrão nos remete a Raul Bopp, autor de Cobra Norato, quando conheceu a literatura oral na língua Nheengatu:
- Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo as árvores falavam, o sol andava de um lado para outro, os filhos do trovão levavam de vez em quando o verão para o outro lado do rio.
É assim a poesia de Pedro. Ele atribui alma, autonomia e fala aos sentimentos e à natureza, conversa com eles, trata-os como gente com intimidade. Escuta as árvores, os dias nublados e o silêncio. Belisca a barriga do tempo, da saudade e do sonho. Puxa a orelha da dor, da tristeza e da agonia. Discute com a solidão e a paixão. Desconfia do que a felicidade, o prazer e a alegria vivem cochichando no seu ouvido. Faz perguntas à honra, à mediocridade, aos posicionamentos políticos e, mangueirense tocador de violão, ouve o que diz a música.
“Estou aqui, sou eu, a Lembrança” – esse é o título do poema feito para o documentário de Letícia de Luna Freire sobre a Favela do Esqueleto, cujos moradores foram enxotados para dar lugar ao campus da Uerj, no Maracanã. O vídeo com a entrevista filmada de Pedro será exibida em breve na presença dos familiares. A personagem Lembrança, personificada, celebra “alguém que muito sofreu, por ter sido esquecido: um Esqueleto que se tornou favela”. Termina registrando sua gratidão: Eu, Lembrança, agradeço.
A metapoesia
Pedro é um metapoeta. O tema central de algumas poesias suas é a própria poesia, que dialoga com ele e com o leitor, ampliando sua natureza discursiva, com considerações sobre os limites da linguagem. Ele reflete sobre a relação entre “O poeta e a poesia” e se pergunta, em Longe da Poesia, o que é que ela lhe diz.
No Memorial do Carmo, a pedido de colegas e com a anuência dos familiares, li seu poema: “Pisei em uma poesia”, suas próprias poesias de quem ele se despede, desejando: “Vão com Deus, queridas”.
Vá você com Deus, Pedrão querido. Os poemas que me enviou estão em processo de edição para serem publicados em livro, afinal, muita gente precisa conhecer o autor dessa ¨poesia pisada”. O Pedro (65) continua vivo em sua poesia e no neto Pedro (3).
Concluo esse adeus com a recomendação do Nelson Cavaquinho, para quem “o pranto em Mangueira é tão diferente / é um pranto sem lenço / que alegra a gente”. Dessa forma posso te dizer, Pedro Antônio Custódio, que sinto saudades do teu sorriso maroto e alegre quando, ao te encontrar naquelas manhãs cinzentas da Uerj, eu costumava brincar, recitando os versos do poeta maranhense Artur Azevedo, escrito durante a rixa entre o marechal Floriano Peixoto e seu adversário, o Almirante Custódio de Mello:
- Custódio, Custódio / que nome tens tu? / termina com ódio / e começa com... Ah, deixa pra lá, Pedrão. Descansa em paz.
Referências:
- Antônio Custódio. O Poeta e a Poesia. Livro póstumo em elaboração a ser editado em 2025
- José R. Bessa. Pedro Custódio, o filósofo da Mangueira na Uerj. Taquiprati. 11/03/2018.
- __________. Stella no coração das línguas indígenas. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1446-stella-no-coracao-das-linguas-indigenas