CRÔNICAS

Taturaia e o chá da Maroca: entre mpox e basófilos

Em: 31 de Agosto de 2024 Visualizações: 3158
Taturaia e o chá da Maroca: entre mpox e basófilos

“Coça que coça, coça, coça, comichão / Vai coçar pra outras bandas e deixa em paz meu coração”. (Luiz Gonzaga. Aroeira. 1961)

Se fosse hoje, as erupções cutâneas, as bolhas e crostas no corpo do Taturaia, um menino então com 7 anos, poderia levantar a suspeita de que ele havia sido atacado pelo vírus da Mpox, a tal da “varíola dos macacos”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) enviaria seus especialistas a Manaus, o bairro de Aparecida ficaria célebre em todos os telejornais nacionais e internacionais. Mas aconteceu em 1954.

Na época, ninguém conseguia curar as lesões na pele do Taturaia. O médico Carvalho Leal nascido em Urucará, consultado por dona Diva, sua conterrânea urucaraense. estava em campanha eleitoral como candidato ao Senado (UDN vixe, vixe) e mijou fora do caco.  Decepcionada, a mãe do Taturaia não votou nele, que foi derrotado.

Buscou, então, a cura do filho no ambulatório situado inicialmente num pavilhão de madeira ao lado do Colégio de Aparecida, em Manaus, onde o padre redentorista Frederico Stratman, paramédico, tratava os doentes do bairro. Ele examinou os inchaços avermelhados espalhados pelo corpo, rosto, pescoço, cotovelo, braço e joelho do Taturaia, aqui e ali com bolhas, descamação, pele rachada e uma coceira crônica enlouquecedora. Com sotaque de Oconomowoc, diagnosticou carregando nos “rrr”:

- Dermatite.

Dona Diva perguntou as causas da doença, o padre disse que se tratava de dermatite atópica, que não tinha agente etiológico definido. Mandou dar banhos de água fria e colocar gelo para diminuir a coceira. Receitou analgésico via oral e uma pomada. Taturaia melhorou, mas sem dinheiro para os remédios, logo tudo voltou a ser como dantes no quartel de Abrantes. A coceira veio com mais força.   

Maroca, a benzedeira

Vai daí, dona Diva consultou a benzedeira Maria do Capinzal, a Maroca, mãe do Fernando Gogó, uma sábia afrodescendente, que havia chorado na barriga da mãe e tinha o dom de adivinhar as coisas. De noite, dormindo, ela descobriu a causa daquela cafubira. Sonhou que o Taturaia havia mamado, escondido, no buraquinho da lata de leite condensado e quase engoliu uma barata que estava lá dentro, cujas patinhas coçaram a língua dele.

Foi pá, casca! Encostado na parede, o menino confessou haver efetivamente assaltado na despensa da mãe a lata já usada, que estava aberta com dois buraquinhos, por um deles entrou a baratinha, sem fita no cabelo, nem dinheiro na caixinha. A partir dessa informação, o diagnóstico da Maroca foi preciso:

- Diacho, isso é seborreia! Foi a barata.

Com seus olhos bonitos e ovoides de maracujá, Maroca examinou a criança, invocou o Orixá Obatalá, rezou Baba yetu, yetu ulive - versão do Pai Nosso em língua swahili - e receitou chá de folha de melão-de-são-caetano, erva-de-lavadeira e mamoeiro bravo para tomar antes das refeições, além do tratamento tópico: lavagem das perebas, curubas e piras com cascas de pau-d´arco deixadas de molho em dois litros de água misturada com cuspe de homem, que devia estar em jejum e ser respeitador de mulher.

Não foi fácil localizar em Manaus um cuspidor com tais qualidades. “Achar macho é muito fácil, tem aos montes, o difícil é achar homem” – canta Nara Leão em “Cabra Macho”. Felizmente encontraram lá na Cachoeirinha, o militante do Partidão, Geraldo Campello, então namorado de Maria Pucu e um tal de Paivinha, estudante de direito, mais tarde presidente da OAB-Am com nome completo de José Paiva de Souza Filho. Os dois deram uma cusparada certeira na casca do pau d´arco. Deu certo. As pústulas pruriginosas desapareceram.

Os basófilos

Curado, Taturaia jurou que nunca mais, nunca, sugaria o leite condensado que devia ser compartilhado com seu irmão Guardinha e com a irmã Graça. Garantiu ainda que nunca mais, nunca, assaltaria a goiabeira do quintal da Maroca, cheia de goiabas vermelhas, de casca amarelada e, por dentro, rosada.

- Esse um está mesmo curado, seu menino – disse a Maroca.

Os moleques do Beco da Bosta deixaram de bullyngnar o Taturaia, com gritos de "pira pirento, macaco fedorento”, o que lhe havia causado danos psicológicos, a ponto de ter sido diagnosticado pela doutora Elisângela como autista, quando o autismo ainda nem era diagnosticado com tanta frequência. Foi um final feliz de uma doença, cujo diagnóstico só agora, 70 anos depois, desconfio que podia ser.  

Lembrei do Taturaia porque nesta semana fui acometido de coceira infernal no meio de uma tosse intensa com suspeita de coqueluche. O exame de sangue mostrou que os basófilos – a quem nunca fui apresentado – estavam altíssimos. O doutor Orlando me explicou que, presentes no nosso sangue, os basófilos são parte do nosso sistema imunológico e, quando em baixa concentração, defendem o organismo de infecções.  Quando em alta, porém, causam a basofilia, que acarreta dermatite crônica e urticária.  

Não entendi bulhufas sobre a informação de que os “grânulos metacromáticos dos basófilos, maiores do que dos outros granulócitos, contém enzimas hidrolíticas, fatores quimiotáticos para neutrófilos e eosinófilos”. Eu hein? Me inclui fora dessa. Além disso, foi difícil entender que diariamente nosso organismo produz cem bilhões de basófilos. Assim, não tem curuba de peruano que aguente. Não sei se a Maroca e o padre Frederico sabiam disso e se ele explicou ao pessoal do Apostolado da Oração.  

Cruz com três ramos

Alguns anos depois, ainda havia quem sacaneasse o Taturaia, quando a Rádio Baré tocava Aroeira, uma das mais de 600 músicas gravadas por Luiz Gonzaga, cuja letra anunciava:

“Teu amor comicha mais que aroeira

Vou fazer uma benzedura, pra ele não me comichar

Faço uma cruz com três raminhos de alecrim

pra teu amor não coçar em mim.

Não sei se a barata que coça a língua de humanos aumenta os basófilos. Ignoro se Taturaia tinha basofilia. Só sei que a benzedura da Maroca curou aquilo que ela denominou de seborreia. Quanto a mim, a coceira está desaparecendo lentamente, graças ao doutor Orlando e às rezas diárias de minhas 8 irmãs reunidas no grupo de zapp. Funciona assim. Uma delas pede:

- Para curar a basofilia do nosso irmão, rezemos ao Senhor.

E todas respondem:

- Oh Senhor, escutai a nossa prece.

Xô basofilia! Xô Bozófilia!

P.S. – Geraldo Campello e Paivinha, lá do Além, entraram no grupo de oração e pediram:

- Manaus merece ser amada. Para que Félix Valois (PT), candidato a vereador, leve para a Câmara Municipal de Manaus seus 81 anos de experiência e militância, com uma votação que puxe outros candidatos, rezemos ao Senhor.

As meninas minhas irmãs, em coro, entoaram: Oh Senhor, escutai a nossa prece.

Créditos: as duas fotos de abertura pescadas na internet. As demais copiadas do livro de Moacir Andrade: Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus. Editora Calderaro. 1985

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18 Comentário(s)

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gilberto menezes moraes comentou:
18/10/2024
[email protected] dando lugar a [email protected] E você, Bessa, como ficou depois dessas coisas que você citou ?
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Tito Guimarães Filho comentou:
15/09/2024
Publicado No Diário de Minas. https://diariodeminas.com.br/Publicacao.aspx?id=534842
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Victor Gesta Bonfim comentou:
03/09/2024
Se estivesse em Manaus meu voto seria em .Felix Valois. O melhor nome para a Câmara de Manaus com certeza.
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Irio Sussuarana comentou:
03/09/2024
José Bessa concordo,com o voto no Feliz. Belo texto. Em tempo: aludindo a Georges Moustaki, gosto muito da canção "Mon vieux Joseph".
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Izabel Valle comentou:
02/09/2024
Adorei, Bessa. Geraldo Campelo era meu tio, por parte de minha mãe. Convivi com ele e Maria Pucu na adolescência, quando ele já havia voltado da Rússia e era identificado na família como comunista. Foi morar, com a Maria,no casarão da Huascar de Figueiredo, que era da minha vó Minerva. Eram dois revolucionários e adoravam jogar buraco todas as noites, invariavelmente, após a janta. Tenho muito boas lembranças desses momentos no velho casarão. Grande abraço
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Felix Valois Coelho Junior comentou:
01/09/2024
É a união da generosidade com o talento. Muito obrigado
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Heliete Vaitsman comentou:
31/08/2024
Oito irmãs, que sorte! E boa sorte pro candidato.
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Judite Rodrigues Pucu comentou:
31/08/2024
Que crônica adorável de ler! Imaginar esses comunas passeando por MAO, junto com as benzedeiradas queles tempos! Puxa! Me dá até uma coceira de tanta saudade!
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
31/08/2024
Babá, eu lembro que, quando eu era menino, volta e meia aparecia uma notícia no jornal que lá pras bandas do javari alguém havia morrido de febre de macaco. desconfio que era alguma coisa que nem a covid, mas como lá tem pouca gente, o surto acabava logo. se fosse em wuham, távamos ferrados. ou me engano? sei lá, mano...
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Vera Nilce Cordeiro Correa comentou:
31/08/2024
Amém! Que Félix Valois seja eleito! A Câmara e o povo de Manaus só ganharão com isso
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Lúcio Resende comentou:
31/08/2024
Morei na Aparecida há mais de 60 anos. Conheci dona Maria do Capinzal. Ela morava numa casa de madeira, no fundo de um terreno que tinha árvores frutíferas, entre elas a goiabeira e que ficava ali na Alexandre Amorim à esquerda de quem vinha descendo pela 10 de julho. Não sabia que ela era benzedeira. Artigo muito bom para reavivar a memória.
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Helso do Carmo Ribeiro comentou:
31/08/2024
Obrigado, querido Babá. Leitura que alegra meu dia!! SDs do melhor bate-papo.
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Magela De Andrade Ranciaro comentou:
31/08/2024
Chorando, aqui, de tanto rir das MENINAS entoando o coro: “Oh, Senhor, escutai a nossa nossa prece”. E, por fim: o apelo do Paivinha… mano, esse foi por demais. Juro pela fé de Deus que ainda veremos Felix Valois Coelho Junior sendo conduzido à Câmara de Vereadores e, nós, a entoar o coro: MANAUS, QUEM AMA, RESPEITA!
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Marcos Montysuma UFSC comentou:
31/08/2024
Cara Você mantém meu ânimo e minha imunologia em alta. Quando era criança eu fiz pior: não só chupei no buraco da lata de leite condensado, quanto mordi a miserável da barata morta. Nunca joguei um conteúdo da boca cheia, numa só cusparada para fora com tanta dó como naquele dia. Quando mordi logo me veio à mente: barata!!!! A reação foi imediata!!! Joguei tudo fora e fui direto pro pote e puxei uns três copos d’água lavando a boca, fazendo gargarejo… poxa vida, que inferno! E da sala a minha mãe gritando: Marcos Fábio, o que se passa que tu tá fazendo gargarejo, secando o pote? Nada mãe, nadinha. Estou tirando um pigarro da garganta pra não gripar. Ufa!!! Escapei por pouco… de engolir a barata e de levar uns sova da minha mãe… Até hoje lembro disso… e agora tu me vem com esse primor!!!!
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Flávio (EGC) comentou:
31/08/2024
Bessa Compa Querido, não conheci o Taturaia. Mas esse um tinha pavulagem de vizinho em oração de pira pra maldar o caboclinho. Vixe, esconjuro só de pensar nesse bando de basófilos alimentando essa uma basofilia. Minhas irmãs rezadeiras foram pro saco em outra dimensão. Mas eu que não sou abestado e nem leso, tenho minha benzedeira afrodescendente de 81 anos completos e muita fé quilombola contra nascidas, furúnculos, calombos e outras cepas de pira contangiantes que nem patas de baratinhas com ou sem dinheiro na caixinha podem alimentar comichão degenerativo
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JOSÉ da Silva SERÁFICO de Assis José Seráfico comentou:
31/08/2024
Babá compete a mais digna e sabia competição.. Compete com ele mesmo. Por isso, cada dia escreve melhor!
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Dori Carvalho comentou:
31/08/2024
"entrou a baratinha, sem fita no cabelo, nem dinheiro na caixinha." Que maravilha... Não digo que tu és um Guimarães Rosa, porque só teve um e tu nem queres isso", mas meu saudoso pai kardecista/protocomunista diria que foi psicografia. Rosa baixou no Bessa. Belíssima crônica.
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Leda Gitahy comentou:
31/08/2024
Sobre essa sua última crônica, veja essa gravação da Ciranda da Bailarinha do Chico Buarque e Edu Lobo Procurando bem / Todo mundo tem pereba / Marca de bexiga ou vacina / E tem piriri / Tem lombriga, tem ameba / Só a bailarina que não tem / E não tem coceira / Verruga, nem frieira / Nem falta de maneira ela não tem/
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