“O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro,
uma dama, um castelo, um túmulo”. (Machado de Assis. Esaú e Jacó. 1904)
Maria Theresinha do Prado Valladares (1931-2010), professora de Letras, teve uma existência cheia de histórias, algumas delas narradas no documentário Memória UERJ – Uma vida dedicada à Universidade, que abre a programação Ânima 2024 às 16h00, nesta terça-feira (12), no Auditório Cartola (Coart-Uerj). Suas histórias continuarão na Exposição “Bordados do Tempo”, a ser inaugurada logo após, às 17h00, com as artistas Daniela Rodrigues e Ítala Ísis.
Meto meu bedelho para narrar aqui uma dessas histórias que não constam do evento. Ocorreu na época em que Theresinha, como Josué em Jericó, havia derrubado as muralhas da Universidade ao idealizar, em 1990, o projeto “Uerj Sem Muros”, que continua vivo até hoje com suas portas abertas anualmente durante uma semana para mostrar à população do Rio e fazê-la participar das atividades que acontecem dentro da instituição nas áreas de ensino, pesquisa e extensão.
O documentário traz depoimento comovente de Ivo Barbieri, de quem éramos assessores, e de colegas, que lembram de Theresinha com muito carinho. O ex pró-reitor de Extensão, André Lázaro, conta que ela deu uma bronca no corredor em um dos reitores sucessores de Ivo, justificando que alguém tinha de adverti-lo por haver escorregado na maionese. Dona de uma sinceridade sem limites, ela não tinha papas na língua, como veremos na história a seguir.
Chapéu da Mangueira
Foi assim. Therezinha ganhara de presente um vistoso chapéu da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que colocou sobre sua mesa. Uma funcionária do Gabinete, Severina, deixou ao lado do chapéu umas bijuterias que pretendia vender. Eis que o reitor entra subitamente na sala da assessoria e de forma discreta avisa que o gabinete era local de trabalho e não uma feira para ficar vendendo chapéu.
- Ninguém está vendendo chapéu - respondeu Theresinha de forma cortante e contundente.
Esclarecida a questão, nem por isso deixou de manifestar seu desagrado. Naquele dia, contou o ocorrido a todos que passavam por sua sala. Furiosa, justificou o apelido de “La Pasionaria” – um vulcão sempre em erupção empapado com larvas de ternura. Aí, o moleque que me habita despertou do seu sono profundo, melhor dito, do seu leve cochilo, já que nunca gozou de sono prolongado. Combinei uma “armação” com a chefe de Gabinete, Ivanita e horas depois telefonei.
- Theresinha, telefone. Prá você.
Ivanita lhe entregou o aparelho. Na outra sala distante, mudei a voz e inventei uma falsa identidade:
- Boa tarde, professora. Sou o Ari, funcionário do CETREINA, mangueirense de corpo e alma. Soube que a senhora está vendendo um chapéu da Mangueira e gostaria de saber o preço.
Furibunda, ela me esculhambou, disse cobras e lagartos e perguntou:
- Quem lhe disse que estou vendendo chapéu?
- Toda a Universidade está sabendo – respondeu o Ari. Quem me contou foi o neto do Chacrinha que trabalha na Faculdade de Educação e ainda berrou:
- Theresinha, uh uh!
Ela jurou que ensinaria ao Ari com quantos paus se faz uma canoa e o xingou ainda mais com palavrões, números e símbolos como nas atuais senhas difíceis da internet: - Xofdp@#90&*!tuamae. Ameaçou que iria até o CETREINA para fazer o Ari engolir o chapéu. Não foi preciso. Sai do esconderijo e me entreguei. Passado o furor, rimos muito, ela me chamou carinhosamente de “bandido” e me abraçou.
Bordados do tempo
Em 2003, aos 70 anos, Theresinha escreveu uma longa carta de despedida para ser lida pelos quatro filhos no tempo certo. Confiou a carta à sua amiga Maria Rodrigues, funcionária da SR-3, para ser comunicada a seus amores: familiares e amigos. Lá pede que os filhos não falem com tristeza de sua morte aos seus netos. Diz que queria um enterro alegre e que lembrem sempre dela brincando, sambando, implicando - que ninguém é de ferro - e gostando muitos das coisas que fazia, da luz, das cores, da vida e da UERJ.
– Quando ela me entregou, lemos juntas a carta, que esbanja alegria, e rimos muito – conta Maria.
Henriqueta Valladares, sua nora e amiga, que dirigiu o Instituto de Letras, confirma:
- Ela queria um enterro como o do Mário Lago, uma festa com salgadinhos. Pede aos netos que não chorem nem fiquem tristes e que gostem muito da Uerj. Quer alegria no seu velório.
Alegremo-nos, pois!
Dei a notícia da morte da minha mãe em Manaus a Theresinha - ambas se pareciam fisicamente - no corredor da Uerj, com a voz embargada. Ela me abraçou. Eu estava prestes a cair no choro, mas ouvi dela as melhores palavras de consolo, que me ajudaram a relativizar a perda:
- Ainda bem que descansou. Você deve se alegrar.
A carta dela termina com essas palavras:
- Chega de blá-blá-blá. Já exerci o meu autoritarismo o suficiente. Agora vivam.
A saudade invade o tecido invisível do tempo. O último texto que ela escreveu para um congresso – “Os bordados do tempo”, traz como epígrafe a frase Machado de Assis sobre a relação entre o bordado e a escrita. Daí o título da exposição que se inaugura: “Bordados do Tempo: a história continua...” Lá estão bordados uma flor, um pássaro, a amizade e tantas histórias de Theresinha Valladares, La Pasionária.
Fotos do documentário Theresinha Valladares - Uma vida dedicada à Uerj produzida pelo Núcleo de Memória Audiovisual