"Na guerra, com disparos de bombas e fake news, as únicas verdades são apenas duas: a vida e a morte" (Euclides Coelho de Souza, Teatro de Bonecos Dadá. 2022)
Angustiada, uma ex-aluna telefona para me perguntar se a ameaça de Putin de usar armas nucleares é pra valer. “Será o fim do mundo” – ela geme. Abro o jogo: “Valéria, não entendo porra nenhuma de política internacional ou de geopolítica e muito menos de armas. Exceto alguns especialistas, ninguém entende, mas uns entendem menos que outros. É o meu caso”. Tento acalmá-la, lembrando Os Comungantes (1963), filme de Bergman, lançado durante a crise dos misseis russos em Cuba e dos testes nucleares da China.
O cenário sombrio em branco e preto retrata um vilarejo rural da Suécia com neve, árvores sem folhas e falta de luz solar, que justificam o título Luz de Inverno dado no seu relançamento. O pescador vivido por Max von Sidow entra em parafuso ao ler nos jornais que a China possui bomba atômica e pode usá-la a qualquer momento. O planeta inteiro está condenado a desaparecer e, nesse contexto, sua própria vida perde sentido, não vale mais nada. Desbussolado, melancólico, entra em profunda depressão. Emudece. Literalmente. Sua mulher o leva à igrejinha para curá-lo, mas o pastor, mergulhado numa crise de fé, não consegue fazê-lo falar.
Se a “guerra fria” criava medo, adoecia e emudecia as pessoas, imaginem a “guerra quente” da Ucrânia com seus desdobramentos fúnebres, que agora assistimos ao vivo. Por isso, hoje, os “pescadores suecos” em silêncio são muitos. Afinal, quem tem pescoço francês, tem medo.
Emputecímetro
Para tentar entender a tragédia de uma guerra nuclear, passei a ler vorazmente tudo que caiu em minhas mãos: artigos, comentários e reportagens proveniente de horizontes discrepantes. Nesta guerra de fake news que pululam em jornais e nas redes sociais é difícil separar o joio do trigo. Ainda assim, seleciono textos. Não envio à Valéria, para evitar apavorá-la ainda mais, o artigo que psiquiatriza o comportamento de Putin intoxicado e transtornado pela “síndrome de húbris” e nem o outro que cita o uso por ele de cortisona em doses elevadas, o que compromete sua estabilidade mental, situação aterradora se sabemos que ele pode apertar o botão e explodir o planeta.
Um fato, porém, ninguém contesta: o exército russo invadiu a Ucrânia. Não foi a Ucrânia que invadiu a Rússia. No entanto, os que criticamos a carnificina promovida pelos invasores, somos acusados de russofobia e de estarmos a favor dos Estados Unidos e da OTAN. Será?
Digo que se houvesse um “emputecímetro” para medir o grau de desaprovação ao imperialismo americano, desde a época da guerra do Vietnã, com certeza eu atingiria o grau máximo. Em quantas passeatas gritei Yankee go home? É isso que me leva a manifestar igual horror diante de tantas mortes e dos escombros causados pelas tropas russas, denominadas equivocadamente de “exército vermelho” por alguns saudosistas, o que fez chacoalhar os ossos de Lenin e de Trotsky. Nas redes sociais, alguém tenta desqualificar minha postagem com um “argumento” primário, repetindo lenga-lenga que viralizou:
- Você não pode falar contra a carnificina na Ucrânia, porque se omitiu no massacre de crianças por militares ucranianos em Donetsk em 2014.
Dou o troco: - Cara, eu já havia ouvido falar em Quixeramobim (CE) e Urucurituba (AM), mas nunca em Donbass e Lugansk. Aliás, você que me interpela, embora não o diga, também se omitiu. Ambos, por pura desinformação e não por apoiarmos crimes bélicos contra os quais lutamos. Entendo tal cobrança se dirigida aos EUA, que “condenam uma política praticada por eles mesmos com a Doutrina Monroe, usada para derrubar pelo menos uma dúzia de governos”, como denunciou o senador Bernie Sanders. Mas é desonestidade intelectual tentar calar assim alguém de quem se discorda, ainda mais sendo do mesmo campo político.
O Império russo
Não mudei de lado, quem mudou foi o Putin que abraçou para o mundo eslavo o equivalente à Doutrina Monroe dos EUA, responsável pela anexação de territórios e pelo desrespeito à soberania dos estados nacionais.
Afinal, “Quem provocou o conflito?” indaga Breno Altman na Folha de SP (01/03/2022). Ele mesmo responde: Foi “a Casa Branca, apoiada por vassalos europeus” que “empurrou Vladimir Putin ao caminho das armas, fechando as portas diplomáticas”. Sua lógica é similar à do machismo cínico que absolve o estuprador e culpabiliza a mulher de minissaia “que o seduziu” porque queria vê-lo punido. Segundo Altman, a Casa Branca “provocou a guerra para justificar sanções econômicas draconianas que quebrem a Rússia e, de preferência, afetem as finanças de Pequim”.
Ou seja, a Casa Branca forçou o Kremlin a matar e esfolar os ucranianos. O pobre Putin, sem alternativa – coitado! – atacou a Ucrânia contra sua vontade e dessa forma colaborou com a OTAN, justificando assim as sanções econômicas. Francamente, além de zombar da nossa inteligência, isso enfraquece a crítica contundente que devemos fazer ao imperialismo americano.
As razões da invasão alegadas por Putin são de ordem histórica, cultural, linguística e ideológica, mas a motivação econômica é camuflada. Ele abriu seu discurso na TV destacando laços espirituais entre russos e ucranianos. A “Rússia de Kiev”, berço do povo conhecido como “rus”, falava uma só língua – o eslavo oriental – que com o domínio tártaro-mongol no séc. XIII deu origem às línguas russa, ucraniana e bielorrussa, assim como do latim vulgar derivaram línguas diferentes como o português e o espanhol ou mais próximas como o galego e o português.
A reunificação do Império Russo começa com Ivan, o Terrível que toma emprestado, em 1547, o título de “César” dos Imperadores Romanos para denominar os monarcas russos de “tzar”. Dizem os entendidos que o epíteto “Terrível” (Grozny) não significa necessariamente “malvado”, mas “perigoso”, “ameaçador”. Ele inicia a reconquista do território da Ucrânia, que se prolongou por etapas nos séculos XVII e XVIII. Durante os 370 anos do período czarista (1547-1917), a língua ucraniana foi perseguida e até proibida, mas ressurge com força no séc. XX como símbolo de identidade e resistência.
Mir e Myr
Agora, esse passado comum é usado por Putin, o Horrível, como desculpa esfarrapada para a guerra imperialista contra a Ucrânia, cujo território tem colossais reservas de lítio e produz fertilizantes, grãos e frutas para exportação. Dizem os entendidos que o epíteto “Horrível” (Vonytuchiy) não significa “horrendo” ou “cruel”, mas “fedorento”, “bárbaro”. Putin não encontra limites em sua tentativa de restaurar o império tzarista: censura as mídias sociais e a imprensa, prende manifestantes e opositores, reprime gays, lésbicas e casamento de homossexuais. Os impérios e os imperialismos se equivalem.
Com humor, uma amiga disse esperar que Portugal não use as mesmas justificativas para invadir o Brasil: a língua de ambos os países é a portuguesa; historicamente os portugueses comandaram o nosso país durante quatro séculos, até mesmo depois da Independência; os nossos sobrenomes são lusitanos e ainda por cima, posto que Bozo é fascista, o exército luso pode usar a alegação do Kremlin de que quer combater o nazismo. Aqui no Brasil, os portugueses seriam aplaudidos. Mas se tais critérios forem usados para uma “operação militar especial na Galícia” (tucanaram a guerra), lá encontrará a resistência férrea das tropas comandadas pelo general Xoán Lagares.
Nos anos 60, Nikita Kruschev escandalizou a Assembleia Geral da ONU, quando confessou que a União Soviética queria conquistar o mundo. Em russo, a palavra `mir` significa `mundo` ou `paz`, dependendo do contexto. E o que ele havia dito era que queria conquistar a paz.
A palavra “paz” ou “mundo”, se transliterada do alfabeto cirílico para o romano, é grafada “mir” em russo e “myr” em ucraniano. O curioso é que ela faz parte dos nomes dos dois presidentes que são xarás: o do país invadido - Volodymyr Zelensky e o do país invasor - Vladimir Putin, que se investiu do poder de decretar autocraticamente que a Ucrânia não constitui uma nação, é uma invenção.
Diga lá, querida Valéria, qual o “mir” do Vladi Putin? Ele quer a paz ou quer o mundo?
P.S. (Foto de Elena Mazzoni da Refundação Comunista)Agradeço a interlocução com Astrid Lima, que mora na Itália e que neste sábado, em Roma, desfilou com milhares de manifestantes, cantando “A paz não se faz com bombas. É tempo de paz, é tempo de cura”. A Bandeira da Paz, com 30 metros de comprimento, era movida em ondas, com crianças brincando debaixo dela. Palavras de ordem eram repetidas contra a invasão de Putin, pela autodeterminação da Ucrânia, contra a expansão da OTAN. Imagens do Che Guevara lembravam seu “Discurso de Argel” em 1965 criticando a então União Soviética. Um cartaz anunciava: - "O que é a Rússia hoje? É a KGB sem o socialismo". Ah, o bairro de Aparecida tinha que entrar nessa história: lá é o berço da Astrid.