CRÔNICAS

Rubem Rola: morrendo de Aparecida

Em: 12 de Dezembro de 2021 Visualizações: 3936
Rubem Rola: morrendo de Aparecida

"Há tanta angústia antiga em cada prédio / Em cada pedra nua e gasta. E agora (...) / memória e angústia fundem-se num branco / cavalo manco numa rua torta. (Luiz Bacellar. Noturno do bairro dos Tocos. 1963)  

Os poetas é que deveriam identificar a causa mortis das pessoas e aqui me refiro às causas profundas, as que ferem a alma e não aquelas superficiais, que aniquilam o corpo e são reveladas por necrópsia, como ocorreu com Rubens de Lima Pereira, falecido nesta terça (7), às 8h10, no Hospital 28 de agosto, em Manaus. O médico legista garante que a morte foi causada por insuficiência respiratória e pelo “megacolon idiopático” – seja lá o que isso signifique. O Google me diz que se trata do bloqueio das fezes devido à dilatação do intestino grosso, uma enfermidade que dá também em gatos.

Outro, no entanto, foi o laudo dos profissionais da poesia. Uma junta poética formada por Aldísio Filgueiras e Luiz Pucú fez a “necropsique” com a lâmina afiada da inspiração e da sensibilidade e concluiu que, na verdade, Rubens morreu de Aparecida. Isso mesmo: essa foi a causa mortis. Moradores do antigo bairro dos Tocos morrem de Aparecida, quando o vírus se infiltra lentamente no psiquismo do paciente, penetra no seu coração, dilata sua memória, impedindo que esqueçam eventos da infância.

O esquecimento, assim como a memória, são forças necessárias para a saúde de indivíduos, povos, culturas, já nos lembrava o filósofo Nietzsche. É preciso saber esquecer de forma seletiva para viver saudavelmente. Caso contrário, o passado funciona como uma algema, aprisiona quem não deslembra. A memória onipresente dificulta que vivamos o momento atual de forma intensa, enquanto o esquecimento nos liberta dos grilhões do passado doloroso.  

Conscientes disso e de que a linguagem “força a realidade a se manifestar e escava as profundezas da condição humana”, como quer o poeta, romancista e médico alemão Alfred Döblin, a junta poética examinou a alma de Rubens, sepultado no cemitério Recanto da Paz, em Iranduba, na quarta-feira (8). A “necropsique” poética contestou a necrópsia médica com um relatório veraz e contundente que contradiz a certidão de óbito, segundo a qual Rubens “não deixa testamento, não deixa bens, era solteiro, não deixa filhos e não era eleitor”, omitindo que ele deixa muitos amigos.  

O broeiro

Solteiro, Rubens era porque a Zilá não quis casar com ele. Eleitor, sim, votava na gloriosa 41ª seção da 2ª Zona conhecida como “urna dos malucos”, que funciona na Escola Estadual Cônego Azevedo. Bens, deixou muitos, embora nenhum deles material. Filhos certamente: perfilhou os sobrinhos Mônica, Thayara, Ricardo, Alexandre e Paulino, que herdaram dele carinhos e benquerenças. Aos amigos legou pedaços da infância inesquecível: peladas nos becos do bairro, papagaios empinados, banhos de igarapé, jogo de bolinha de gude com caroço de tucumã e até mesmo uma briguinha aqui e ali, que ninguém é de ferro. O laudo poético lembrou os bardos da Irlanda.  

Dizem, dizem, não sei, que na Idade Média os trovadores irlandeses protegiam os campos de trigo e cevada declamando poemas aos ratos. Essa é uma bela metáfora: espantar os ratos com poesia. Foi assim que os poetas amazonenses Aldísio e Pucú procederam, quando fizeram a “necropsique” de Rubens, restabelecendo essa verdade, da qual sou testemunha ocular.

Rubens de Lima Pereira e eu nascemos no mesmo ano: 1947. No mesmo dia: 18, mas em meses diferentes. Canceriano eu. Sagitário ele. Convivemos na infância, quando ele percorria becos, vielas e ruas vendendo broas, com um pregão inconfundível e único, só dele. Por isso, virou Rubem, no singular. Depois, foi-lhe acrescentado um apelido: “Rola”, porque quando o aperreavam muito, colocava a dita cuja pra fora da calça, balançando-a pra lá e pra cá, mas nunca em presença de donzela, por razões de respeito.

Testemunhas idôneas asseguram que a única moça que viu a coisa balançar - e nunca se queixou - foi a Zilá, irmã do Guilherme Porca Vadia. Mas isso são segredos que ninguém revela, nem sob tortura. O importante é que o bairro entendeu que mais vale uma rola na mão do que duas frutas voando e trocou o Rubens, lima e pera, por Rubem, no singular.  Ficou, pois, Rubem Rola.

Os doidos do bairro

Desde o ano passado – me informa sua sobrinha Mônica – a esquizofrenia e os problemas no intestino se agravaram com a pandemia. Por isso, em outubro, ela largou tudo, deixou a cidade Presidente Figueiredo, onde mora, para dar assistência ao tio enfermo em Manaus, se revezando com outros sobrinhos e sua tia Fátima.

Há três semanas, diante de sua situação crítica, a família decidiu interná-lo na UTI do hospital 28 de agosto. Ele se alimentava por sonda e tinha ainda sonda na uretra e sonda retal. Na terça (7), ela foi ao hospital pegar o lençol de cama para lavar e, ao lado do seu irmão Ricardo, presenciou o último suspiro do tio, que completaria 74 anos agora, uma semana antes do Natal. No velório, compareceram alguns amigos fiéis: a Cleide, neta da Leonor, com o Mozão, Santinha Reis com o filho Marcelo, seu Durval e dona Luziete Cordeiro, Raul Paixão e o presidente da Associação Comunitária do Bairro de Aparecida, Wander dos Reis, entre outros.  

Brincalhão, pacato e generoso, as crianças adoravam o Rubirola que, aposentado pela Escola Estadual Solón de Lucena, onde era auxiliar de serviços gerais, comprava bolachas e guaraná para elas. Ele não tinha problemas em confirmar a imagem que os moradores tinham dele, quando de sacanagem alguém provocava:

Rubirôla, quem são os doidos do bairro?

Sem qualquer modéstia, ele se colocava como o primeiro da lista:

 - Eu ... o Jaú , a Ana Careca, o Solaninho, o Raimundo Mucura... 

Esse Rubem Rola usava a metáfora da loucura só pra poder dizer algumas verdades que ninguém queria ouvir. Mas por via das dúvidas, tomava remédio controlado, administrando sua maluquez, misturada com sua lucidez. Incluía entre os doidos alguns amigos:  

- O Babá é maluco, cara! Passa pela ponte Rio-Niterói todo dia, se aquela porra cair, quero ver neguinho poliglota, que ensina inglês pros índios, pedindo penico.

Há meses sem notícias dele, confesso que esperava o recado que costumava mandar sempre em dezembro através do Tuta, meu irmão e seu vizinho:

- Diz pro Babá botar meu nome no Diário do Amazonas.

Embora desta vez o recado não tenha chegado, registro aqui mais uma vez seu nome: Rubens de Lima Pereira, o Rubi-Rôla, com quem eu compartilhava idade, aversão por sapatos e desconfiança de sujeitos normais, conforme registrado em crônica de 2005 “Meu amigo Rubi-Rôla”.

P.S. Mesmo sem procuração, agradeço em nome do bairro a dedicação das sobrinhas, sobrinhos, enfermeiras e enfermeiros do Hospital 28 de agosto e em especial do médico Raimundo Pereira de Sá Neto, que acompanhou as últimas semanas daquele enfermo que morria de Aparecida.

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20 Comentário(s)

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Serafim Correa comentou:
28/12/2021
Publicado no Blog do Sarada http://www.taquiprati.com.br/cronica/1617-rubem-rola-morrendo-de-aparecida
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Rita Ribes comentou:
14/12/2021
Beeeeeeeeeeeeessa!!!! Que escrito maravilhoso. Fiquei desejosa e ao mesmo tempo desejante que uma necropsique me encontre um dia...
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Rosa Helena Mendonça comentou:
14/12/2021
Entre a necropsia e a “necropsique” a causa mortis “carece de exatidão”. Como sempre uma crônica sensível dos fatos…
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Joao Pinduca Rodrigues comentou:
14/12/2021
Aos amigos e familiares do Rubens Lima Pereira, o Rubem Rola, minhas condolências., solidário com seu sofrimento. Podemos então dizer, brincando, que Rola, que teve como causa mortis Aparecida, subiu...
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Nilda Alves comentou:
13/12/2021
Querido amigo, que lindeza. Absolutamente encantada com a narrativa com memórias desse doido. Você sabe, como ninguém, nos fazer conhecer essas gentes todas. Obrigada. grande abraço Nilda PS Também gosto dos doidos e tenho muitos amigos bebum.
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Roberto Zwetsch comentou:
13/12/2021
Lindo e emocionante epitáfio, Bessa. Agradecidos. RZ
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Mauxiliadora Vilar Aguiar comentou:
13/12/2021
Parabéns pelo texto. Conversava rapidamente, com ele.quando o encontrava. Sempre com respeito.
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Tânia Pacheco comentou:
13/12/2021
Publicado no Blogo COMBATE - RACISMO AMBIENTAL. https://racismoambiental.net.br/2021/12/12/rubem-rola-morrendo-de-aparecida-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Valter Xeu comentou:
13/12/2021
Publicado no Blog PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/rubem-rola-morrendo-de-aparecida/
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Julio Zany comentou:
13/12/2021
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Elvira Eliza França comentou:
13/12/2021
Eu havia visto a foto nas redes sociais dando a informação sobre o falecimento desse senhor, mas este texto trouxe vida a ele e me encantei pelos relatos e me emocionei com a menção à herança que ele deixou para todos os que o conheceram. Parabéns.
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Ana Silva comentou:
13/12/2021
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Isaac Melo comentou:
12/12/2021
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Cleide Maria Silva Barbosa comentou:
12/12/2021
Ele fez parte da minha infância, ele chamava minha avó Léo de mãezinha
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Cynthia FFontana comentou:
12/12/2021
Linda crônica Rubem Rola marcou minha infância de forma muito positiva com sua ingenuidade, alegria, amor ao próximo, generosidade e tantas outras qualidades tão raras no mundo de hoje. Descanse na paz do Criador querido amigo
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Regina Nakamura comentou:
12/12/2021
Que crônica linda, Babá . Chorei pitangas!
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Celeste Correa comentou:
12/12/2021
Mano, me emocionei com a crônica e com a conclusão da causa mortis do Rubem Rola pela junta poética: "Morrer de Aparecida". Eu não sou médica legista e nem poeta, mas tomada pela emoção, ao terminar de ler a crônica eu prefiro ficar com o laudo dos profissionais da poesia, Aldísio Filgueiras e Luiz Pucú, que fizeram a “necropsique” e, com a lâmina afiada da inspiração e da sensibilidade, próprias dos poetas, concluíram o que só quem morou ou mora no Bairro de Aparecida sabe: Rubens morreu de Aparecida. É fato que o laudo do médico legista que dizia que ele “não deixa testamento, não deixa bens, era solteiro, não deixa filhos e não era eleitor” é um laudo técnico. Mas, como assim "não deixa bens", Doutor? É que o senhor desconhece o que é morar no Bairro de Aparecida. Ali está o melhor patrimônio deixado pelo Rubem Rola: seus amigos, sua história registrada em várias crônicas do Taquiprati. Rubem Rola, presente!!
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Mônica Regina comentou:
12/12/2021
Muito obrigada por tudo que o senhor representou e representa em nossas vidas, lindas palavras ?? nossa família agradece sua grande amizade pelo meu tio Rubens de Lima Pereira
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Eduardo Miranda comentou:
12/12/2021
Estudei na EE Aparecida, na década de 90 e lembro dessa figura.
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Luiz Pucú comentou:
12/12/2021
Aldisio estava lá e o exorcismo poético ocorreu sob o auspício de una garrafa de Cocal
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