CRÔNICAS

Dia da Pátria: o oftalmologista e a manicure indígena

Em: 12 de Setembro de 2021 Visualizações: 4000
Dia da Pátria: o oftalmologista e a manicure indígena

“Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde) tão feias/ de minha pátria,

De minha pátria sem sapatos / E sem meias, pátria minha / tão pobrinha!”.

 (Vinicius de Moraes, Pátria Minha, Barcelona, 1949)

Para minha comadre Carol William

Neste sete de setembro, vejo da janela do apartamento pessoas vestidas de verde-amarelo desfilarem na rua em direção à praia, algumas enroladas na bandeira do Brasil. Marcham sem máscaras para a manifestação, com cartazes e faixas agressivas que clamam pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo palavras de ordem do capo. Nenhum protesto contra o preço estratosférico do combustível, do gás de cozinha, da energia, do feijão. Silêncio absoluto sobre o desemprego, a inflação, a crise sanitária e política. Será que Ramiro, o oftalmologista está no meio delas?

Talvez não. Quem está ali é gente da minha pátria pobrinha, pé-de-chinelo, a maioria com sandálias havaianas. Alguns desceram do morro do Cavalão, provavelmente recrutados por milícias paramilitares e digitais ou enganadas por falanges de pastores picaretas. Recuso-me a tratá-los de “gado”, embora marchem como bovinos para o matadouro, sem consciência de que servem de massa de manobra contra seus próprios interesses. Acreditam em fake news, mamadeira de piroca, cloroquina, voto impresso e no giro diário do sol em torno da terra plana. A prova: ele nasce no Leste e se põe no Oeste.

Entre os manifestantes, é certo, há um cordão de fanáticos chamados de “patriotas” por Bolsonaro que aproveita a data cívica para esconder a sua incompetência em implementar políticas públicas. Ele ataca o STF e usa os protestos para tentar se livrar dos cinco inquéritos que envolvem a famiglia: ele próprio, as ex-mulheres e a atual, os filhos “rachadinhas” e os apoiadores suspeitos de crimes. Além disso, duas apurações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Uma dela investiga mentiras disseminadas nas redes sociais com uso de dinheiro público. A outra apura atos antidemocráticos e golpistas.

Espelho da ignorância

Da minha janela, tento entender o que move essas pessoas, parte delas pertencentes a um grupo social antes silencioso, cujas ideias racistas, homofóbicas, negacionistas não encontravam eco na sociedade. Permaneciam sempre caladas e marginalizadas da vida política.  De repente se sentem protagonistas da história, empoderados graças a Bolsonaro, “subletrado e espelho da ignorância”, que os representa e que funciona como um “amplificador dos preconceitos” – como escreveu André Pontes, professor de Lógica do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) numa postagem que viralizou.

Como explicar, no entanto, o comportamento de Ramiro, o oftalmologista, a quem procurei depois do feriado pátrio para marcar uma cirurgia de catarata para outubro?  Ele, que faz parte da pátria com sapatos, me informou que faria uma pequena incisão no cristalino e removeria a lente natural do olho para implantar uma lente nova intraocular.

- Você vai poder enxergar com qualidade, sem necessidade de óculos – ele disse.

Depois de dar instruções sobre o pré-operatório, o dr. Ramiro puxou papo sobre as manifestações do feriado, me sondando com contido entusiasmo. Fiquei na minha. Sorri. Ele entendeu como aprovação e avançou comentando que o grande problema na política é que muitos brasileiros, notadamente os de esquerda, fazem “torcida contra”, apostam no quanto pior melhor, torcem para o governo Bolsonaro não dar certo, não reconhecem as coisas boas que ocorrem nesse governo.

Não perguntei quais eram essas coisas boas. Fingi concordar e falei aquilo que eles costumam usar para justificar porque o país está desgovernado:

- Pois é, né, não deixam o homem governar....

O dr. Ramiro pegou corda e comentou que a esquerda quer retomar o poder, com ajuda dos ministros “comunistas” do STF, para implantar seu projeto político de corrupção e de autoritarismo. Os bolsominions não olham o seu próprio rabo cheio de rachadinhas e prepotência.

O calor do momento

Ao nos despedirmos, já na sala de espera, a TV mostrava as manifestações indígenas em Brasília contra o marco temporal. O oftalmologista deu, então, o golpe final sem saber com quem falava. Fez quatro perguntas em voz alta para todo mundo ouvir, que já traziam embutidas as respostas:

1.Com todo respeito, gostaria de saber quem está financiando a presença de mais de 6 mil índios em Brasília?

2. Quem está alimentando esses índios?

3. Se querem manter suas tradições, por que ostentam aparelhos celulares mais modernos que o meu?

4. E por que existem manicures nas tribos?

Nem valia a pena informar sobre as “vaquinhas” que professores, antropólogos, indigenistas, médicos realizaram para o deslocamento e o alojamento dos índios em acampamento precário. Incapaz de um ato de generosidade por uma causa nobre, Ramiro prefere enlamear esse gesto de solidariedade, buscando ver “o ouro de Moscou” por trás das mobilizações indígenas. O curioso é que ele não se preocupou em indagar sobre o financiamento público de aeronaves e aparatos de segurança e o uso de toda a estrutura da Presidência para realizar atos antidemocráticos, que não fazem parte das funções institucionais de um presidente.  

Calou também sobre arrozeiros, ruralistas, fazendeiros e empresários de vários segmentos que financiaram o ato golpista, apoiando promessa de Bolsonaro de reverter a demarcação das terras indígenas. A previsão dos organizadores era lotar a av. Paulista com 2 milhões de pessoas. o que só não ocorreu - a PM calculou em 125 mil manifestantes - porque o STF mapeou e bloqueou as contas certas e as chaves-pix dos financiadores. Isso obrigou Bolsonaro a pedir penico e dizer que chamou Alexandre de Moraes de “canalha” devido ao “calor do momento”, o que decepcionou sua claque.

A aldeia urbana

Ramiro, coitado, ficou incomodado com dois fatos: os celulares dos índios “mais modernos que o meu” e a existência de “manicures nas tribos”. Referia-se aqui à notícia da tv sobre a inauguração de um salão de beleza na aldeia urbana Kakané Porã, na região metropolitana de Curitiba (PR) chamada de “lixo urbano” por um deputado bolsonarista do PSL (vixe, vixe). A aldeia tem 35 casas dispostas em círculo e uma oca de madeira na praça central e é habitada por índios Xetá, Guarani e Kaingang, que a ignorância de Ramiro ainda chama de “tribo”, um termo em desuso. A aldeia foi documentada num média-metragem por Mariana Fachini (2018).  

Aparelhos e equipamentos oftalmológicos fabricados nos Estados Unidos e até na China podem ser usados no consultório sem comprometer a  brasilidade do seu usuário, mas os índios deixam de ser índios se tiverem acesso à tecnologia – ele acha. Dele podemos dizer o que Bartolomé de Las Casas disse do cronista Oviedo:

- No puede decir cosa chica ni grande, porque no fué digno de la ver ni de la entender.

É isso aí. Um dos últimos milagres de Cristo foi curar o cego Bartimeu. Só mesmo um milagre pode curar a cegueira do oftalmologista, um profissional com curso universitário, que alguns chamariam de babaca, mas que prefiro tratá-lo como colonizado mental incapaz de ver e entender.

Despedi-me cordialmente dele. Depois telefonei desmarcando a cirurgia. Vou procurar outro oftalmologista. Qual a visão que Ramiro pode restituir a alguém, se é incapaz de ver o Brasil? Ai pátria minha, tão pobrinha!

P.S. 1 - O fato aconteceu. O oftalmologista existe. Usamos um nome fictício para evitar que eventuais pacientes “comunistas” também o abandonem.

P.S. 2 – Mais de 6 mil índios acampados em Brasília acompanharam o voto do ministro Edson Fachin contra o marco temporal; a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas; as três casas dos Guarani Kaiowá em Dourados (MS) queimadas por jagunços a mando de fazendeiros. Esses fatos dessa semana podem ser melhor entendidos com a leitura da dissertação de mestrado Memória Étnica e Movimentos Indígenas Contemporâneos: Memória e Resistência de Thamires Pessanha Ângelo defendida nesta quinta (9) no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. UNIRIO. Banca: José R. Bessa (orientador), Amir Geiger (Unirio) e Danielle Bastos Lopes (Uerj)

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9 Comentário(s)

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Carol William comentou:
13/09/2021
De comadre para compadre. Eu sou casada com um médico e uma coisa que aprendi é que existem médicos e “médicos filho da puta”. Já faz tempo que deixei de ir a esse seu oftalmologista, por toda sua incoerência e falta de ética conhecida no meio cristã. Eu não consigo aceitar ou confiar em um médico que é capaz de enrolar as próprias irmãs, eu não consigo acreditar num médico que defende o Bolsonaro e mesmo depois do caos que a saúde passou continua a defender o indefensável. Eu te admiro tanto tio, pela capacidade que tens de refletir de ir além dos teus próprios interesses e pensar na coletividade. A causa indígena é linda e eu me identifico com ela, financiaria mil vezes se preciso fosse, me incomoda muito mais é quem financia um genocida que matou tanta gente e que quase mata muitos da sua família por falta de oxigênio. Eu te admiro mais ainda por ter ficado calado na consulta, pois sei que para esse tipo de pessoa não adianta retrucar pois não faz uma análise crítica, ou por ser muito parecido com o Bolsonaro ou por pura loucura, mas ainda não atingi essa maturidade, eu no mínimo diria: - “ei seu oftalmologista, minha consulta se encerra aqui, antes que eu me esqueça vá tomar no fiofó” Obs: tiozinho com todo amor que tenho por ti vou te dar um conselho, em 2018 a classe de médicos foi enganada por um ódio ao PT, por fake News e por burrice mesmo, mas em 2021 só apoia esse cara quem é mau caráter mesmo, então quando for marcar uma consulta se o “Dr,” for Bolsonarista, sai correndo pois ele vai lhe passar cloroquina, e jurar que está fazendo o melhor pelo senhor.
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Bolivar Carvalho (via FB) comentou:
13/09/2021
Babá, Inacreditável, li uma postagem no face que diz a mesma coisa, fazendo uma analogia vazia entre “ a esquerda que torce contra Bolsonaro” e a torcida contra o Flamengo. Sou botafoguense como vc sabe, mas no caso do Flamengo, não adianta todas as torcidas torcerem contra porque a gente tem que reconhecer que o time é eficiente. E ganha. Com o presidente que o autor da postagem escolheu, não tem torcida que ajude. Desculpa, vc é vascaíno, mas torcer pelo Vasco pode ser um ato de amor ao time, no entanto não garante que o time vai jogar bem e vai ganhar. Bolsonaro é tão ruim que nem com a torcida de um promotor e de um juiz ele faz alguma coisa que preste.
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Claudio comentou:
13/09/2021
Concordo, Bolívar. Se torcida a favor ajudasse, o Flamengo e Corinthians ganhariam sempre o campeonato É pra rir: Por que o governo do Bolsonaro não dá certo ? Porque a esquerda torce contra.
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Valter Xeu comentou:
12/09/2021
Coluna do Diário do Amazonas reproduzida no Blog http://patrialatina.com.br/dia-da-patria-o-oftalmologista-e-a-manicure-indigena/
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Celeste Correa comentou:
12/09/2021
O Taquiprati, como sempre, exercendo o seu compromisso com a democracia. Eu também gostaria muito de entender o comportamento das pessoas que conseguem defender esse governo. Aqueles que são massa de manobra, eu faço uma leitura que eles são fruto de fake news e da desinformação. Mas pessoas como o D. Ramiro,.. esses são os fariseus e os "doutores da lei" contemporâneos. Têm formação acadêmica, como os doutores da lei do tempo de Jesus, mas não fizeram a opção pelos mais pobres e pelas minorias como o Mestre. Eu acho que fizeste muito bem em não voltar ao consultório do D. Ramiro. As lentes que precisas podem ser contornadas com os teus óculos. Ele não tem as lentes mais importantes: da empatia, da alteridade, do respeito às diferenças e nem o amor pregado por Cristo. A cegueira dele é irreversível.
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Célia Maria comentou:
12/09/2021
Fez bem em desmarcar a cirurgia. Quem é incapaz de ver e compreender o que vê não pode ser bom oftalmologista. (y)
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Rodrigo Martins Chagas comentou:
12/09/2021
Professor, com certeza o doutor Ramiro veste uma camisa do Brasil por debaixo do jaleco, ainda bem que o senhor resolveu procurar outro profissional. Se o doutor Ramiro me falar apenas uma coisa boa do governo, uma somente, eu tiro uma foto com a camisa do Flamengo e ainda beijo o escudo. Aposto que ele foi o oftalmologista do Mr. Magoo, ainda bem que o senhor irá procurar outro profissional. Adorei saber da existência da aldeia urbana Kakané Porã em Curitiba, linda demais! A segunda marcha das mulheres indígenas, é algo que emociona, o Brasil tem jeito. E essa banca hein da unirio hein? Estelar! Grande professor Amir, saudades dele e a professora Danielle é incrível também, vi ela em um live com o professor Bessa e a Ana Paula. Aliás, o professor Bessa nessa temporada está com tudo pelos meus cálculos aqui foram: Temporada 2021 • Defesas de mestrado: 4 Olhar sobre a escrita transgressora – UNIRIO Macuxi Panton os saberes que circulam pelas narrativas orais na região da Serra da Lua – UFRR Escola para os índios no RJ – UFRRJ Memória Étnica e Movimentos Indígenas Contemporâneos - UNIRIO • Defesas de doutorado: 2 O Nheengatu no médio Rio Amazonas – UNICAMP O governo da língua na cabanagem - UFPA Com isso o professor Bessa se aproxima da importante marca de 100 bancas de mestrado (está com 95) e de 70 em bancas do doutorado (está com 66). Nas últimas 6 bancas, 4 foram em universidades diferentes, com isso não sabemos com exatidão em quais bancas e universidades esses recordes serão atingidos. Vamos acompanhando e catalogando. Professor arrasando como sempre! Números totais: Bancas de mestrado: 95 Bancas de doutorado: 66 TCC: 40 Um abraço querido professor!
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Orlando Pinto Rabaça Filho comentou:
12/09/2021
Passei por situação parecida, sendo que comigo se passou em um consultório dentário. No meu caso, com boca arreganhada enquanto a Dra." Sabrina" desandava a falar mal de Lula, Dilma, PT e a Esquerda, me limitava a franzir a testa, levantar sobrancelhas e fazer ahan e humhum...
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Thelma comentou:
12/09/2021
Senti falta na crônica daquele pingo no copo cheio q transborda. Pensei q fosse ser qdo ele falou para tv com outras pacientes. Bordar em alto e bom som, aquela ignorância. Fazer um pano q esfregasse com fatos e flores pra q ele não mais cometesse crimes com sua fala facista.
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