CRÔNICAS

D. Pedro: somente o socialismo pode salvar os povos indígenas

Em: 14 de Agosto de 2020 Visualizações: 741

(Porantim – Manaus, ano II nº 12 – outubro de 1979, pgs. 8 e 9)

O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do CIMI, concedeu uma entrevista à equipe do PORANTIM. Ele falou sobre a problemática indígena, condenou o sistema capitalista como maior responsável pela opressão dos povos indígenas e admitiu que a vitória do povo só chegará com a aliança dos setores oprimidos - operários, camponeses, índios – dentro de uma visão claramente socializadora.

Depois de enviar um recado para os índios destribalizados e os estudantes de Manaus, Dom Pedro considerou que a luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e que esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica.

Ele fez ainda importantes colocações sobre Puebla, CIMI, abertura política, devastação da floresta, marxismo, ciência, ideologia e diversos outros assuntos, tentando situar o problema das nações indígenas como consequência de toda uma estrutura que visa única e exclusivamente o lucro e que, para tal, sustenta-se na exploração do povo.

Dom Pedro Casaldáliga considera o problema dos povos indígenas e o problema operário como partes de um único problema geral. “Sem uma verdadeira aliança de todas as camadas que são povo, não se vai conseguir a liberdade, a igualdade e a superação de classes que estamos pretendendo, porque a vitória do povo, sem uma visão socializadora ou socialista, não chegará e o resto serão apenas reformismo que não resolvem”.

Neste sentido, diz ele, “a luta indígena, a luta operária e a luta camponesa são uma luta só, enquanto luta do povo oprimido, marginalizado, sem voz e sem ver, classe utilizada, mão-de-obra barata, povo a serviço do lucro do capitalismo nacional e internacional”.

“Contudo, cultural, étnica e etnologicamente falando, temos que considerar que, em decorrência dos índios constituírem uma cultura à parte e diferente da nossa, essas têm algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Infelizmente, está se dando no mundo operário e mais ainda no mundo rural ou camponês, que é mais próximo do índio, o típico conflito índio x lavrador, índio x posseiro, índio x colono. É indispensável, portanto, um trabalho de conscientização quanto aos setores camponeses e operários sobre a causa indígena, de forma que seja uma conscientização esclarecedora, não se dando apenas a nível sentimental, mas principalmente a nível sócio-político e cultural-étnico”.

Dom Pedro fala de uma sociedade sem classes como única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente, pois os setores que vão construir essa sociedade, têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

“Eu acho que se deve ter uma visão clara. Assim como acredito num tipo de socialismo internacional no sentido mais radical da palavras, porque países socialistas independentes não podem sobreviver. Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas. Seria, então, um só projeto sócio-político-econômico enriquecido humanisticamente por diferentes culturas que caminhariam juntas no mesmo processo”.

“Insisto em dizer que a luta dos povos indígenas é uma luta de oprimidos e marginalizados, não só a nível político-econômico, mas também e sobretudo a nível cultural. Portanto, todo tipo de aliança que se dê com a consciência e o respeito pelas culturas indígenas, e que se faça com uma vontade socializadora dos bens e da participação, será legítima e importante na salvação do índio e na sua sobrevivência futura”.

No que diz respeito às alianças, tanto a nível de Igreja, quanto a nível de intelectualidade e a nível de posição sacra, Dom Pedro considera indispensável a presença e a atuação das alianças indígenas. Ninguém de nós é e nem será povo – diz ele – ninguém de nós poderá substituir a tomada de consciência e a ação do povo. Mas nós podemos e devemos ser uma mediação científica, eclesiástica e cristianizadora, inclusive política e às vezes até mesmo econômica.

“Nesse sentido, as alianças têm um papel preponderante, sempre que não sejam excessivamente vanguardistas, não ficando por fora demais, porque deixariam de conhecer verdadeiramente a vida e as aspirações do povo, incapacitando-se, pois, de caminhar no seu ritmo. Perigoso pode ser tanto ajudar o povo de cima, quanto ajuda-lo de fora”.

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Abordando o problema da abertura, Dom Pedro afirma que ela deve ser política, econômica e social: “Que se abra a renda e a participação, pois o resto pode ser apenas uma abertura de blá-blá-blá, do tipo burguês, que satisfará certos níveis jornalísticos e certas rodas de centro esquerda, mas que não modificará a vida do nosso povo”.

“Eu tenho gravíssima restrição a uma abertura que nos é dada assim como esmola oportunista, a pedido do próprio capitalismo multilateral ou trilateral mais concretamente, que está precisando nessa hora de um regime um pouco mais ameno para impedir que se repita o que se deu na Nicarágua, por exemplo”.

Por um outro aspecto, Dom Pedro considera essa abertura também como algo que está sendo arrancado pelos setores populares e trabalhadores, apesar de reconhecer que a burguesia brasileira está tentando utilizá-la com outra finalidade.

“Evidentemente, quando eu digo que o capitalismo multilateral ou trilateral está exigindo desses governos uma passagem de uma ditadura militar para uma civil, eu estou considerando que foi a própria conjuntura não apenas internacional, mas as conjunturas dos vários povos da América Latina e do Terceiro Mundo, que tomando consciência, se organizando e “cutucando”, exigiram do seu “papai super nacional” que reconsiderasse as condições dentro da casa e fizesse algumas concessões. Dentro desta visão, parece-me que foi uma vitória do povo e das legítimas alianças populares”.

“Eu não digo que essa abertura não deva ser, entre aspas, agradecida, evidentemente não ao sistema, mas ao povo e a Deus. Ela deve ser aproveitada: nos abrem uma janela, entremos e façamos o que pudermos fazer. Eu peço apenas que não sejamos ingênuos e não esqueçamos que a janela pode fechar. Não pensemos que essa abertura significa uma colaboração desinteressada dos poderes econômicos, dos poderes da repressão e do governo que temos aí, porque nós sabemos que a transformação da nossa sociedade se não se dá a nível econômico, não se dá a nível nenhum”.

“Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”

Dom Pedro Casaldáliga acha que no Brasil são necessárias duas conversões, uma do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas, e uma outra do capitalismo para o socialismo, sem esquecer, é claro de uma conversão plena e superior para o evangelho.

“Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

“É preciso, portanto, uma conversão econômica e outra cultural, acompanhadas de uma conversão conscientemente evangélica que, por sua vez, inexiste independente de uma transformação econômico-cultural”.

Dom Pedro Casaldáliga, apesar de reconhecer a necessidade de uma aliança entre índios, operários e lavradores, considera importante situar que os povos indígenas são povos específicos, não são povos brasileiros, se por Brasil entendemos o resultado de uma miscigenação. Ele afirma que se esse aspecto não for levado a sério, podemos cair numa atitude altamente perigosa.

“No que se refere à integração acho importante, quando muito, falar de inter-integração. Evidentemente que os povos indígenas de toda a América Latina, de um modo ou de outro, integrar-se-ão aos povos envolventes que os alcançam, mas para que sobrevivam na sua identidade, devem também integrar esses povos. Por isso é que eu falo em inter-integração”.

“O índio, sem sombra de dúvida, não é brasileiro”.

“Quando eu falo dos grupos indígenas frente às atuais nações latino-americanas estou falando de povos diferentes, mesmo lembrando e reconhecendo a miscigenação. Eu sei que o povo brasileiro atual é, em parte, fruto de sangue íbero, judeu ou árabe, mas nem por isso vou dizer que seja árabe ou judia”.

Parece-me que se antropológica, etnológica, cultural e politicamente não se tem consciência clara de que esses povos são outros povos, outras nações dentro do Brasil e da América Latina, não será possível salvá-las e superar esse período de massacre físico e genocídio cultural, pois caminharemos para um tipo de genocídio mais sofisticado que é a tal integração. Integrar é matar.”

Eu não sou tão ingênuo de pensar que as populações indígenas possam se manter virginalmente afastadas do contato ou do choque com outras culturas. Quero, no entanto, que se criem mecanismos para que sua identidade seja respeitada e para que, com legítima autonomia, elas possam se inter-integrar, ou seja, receber de nós o que acharem conveniente e nos dar coisas que podem nos ser extremamente úteis. Se assumirmos uma atitude colonialista ou nacionalista, não permitiremos que os índis sobrevivam”.

Dom Pedro Casaldáliga acha que uma saída para esse problema, ou pelo menos um primeiro estágio para que se conseguisse algo no sentido da inter-integração, seria o reconhecimento do Estado Brasileiro como um Estado multi-nacional, conforme propôs a Universidade do Amazonas, nessa Comissão interministerial que deve estudar a política florestal do governo.

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”.

Eu insisto muito que a causa indígena ou é continental, ou não se salva. Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

“Nesse nível continental, conseguimos também o apoio internacional: Nações Unidas (ONU), a melhor inteligência da Europa e o apoio mais apaixonado da Ásia. Somente assim, em termos de luta da opinião pública mundial, é que essa campanha que me parece cientificamente pura, legítima e politicamente certa, poderá ter garantias. Por esse motivo, eu insisto que em termos de Igreja, mais especificamente em termos de CIMI, sobretudo agora depois de Puebla, o nosso trabalho deve ir além fronteiras”

“Evidentemente ninguém pode imaginar que os vários povos indígenas dos quais estamos falando, possam sobreviver apenas por demarcar um área ou por citar uma certa consciência brasileira, se não se consegue jurídica e politicamente e com toda a força que está tendo em muitos setores, o valor das minorias étnicas, uma união de federações e confederações”.

“É claro, no entanto, que eu não espero esse reconhecimento de um Estado Brasileiro multi-nacional do nosso atual governo, porque na presente conjuntura, não depende nem mesmo dele essa definição”.

“O capitalismo internacional e mais concretamente trilateral ao qual nosso governo está submetido não admitiria sequer uma colocação dessa ordem. Como disse anteriormente, só um regime sócio, política e humanisticamente socialista poderia aceitar isso”.

No momento, acho importante que se lance a ideia de um Estado Brasileiro multi-nacional, pois ela não é apenas uma tese, mas é uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer. Acho válido que se escreva sobre o assunto, se discuta e se vá cbando da consciência dos melhores grupos do primeiro e segundo mundo, inclusive esses que têm vivido em sua própria casa, o problema das minorias étnicas, uma colaboração nesse sentido. Isso tudo é um processo que deve começar de modo intenso e breve a se desencadear”.

Dom Pedro Casaldáliga insiste em dizer que é incompatível com o capitalismo toda e qualquer medida que possa dar origem a uma sociedade melhor e, sobretudo, que possa favorecer a sobrevivência dos povos indígenas.

Ao referir-se ao problema da devastação da floresta, ele afirma que se faz necessária uma conversão ecológica. Mão em termos bucólicos, mas no sentido de uma transformação política e econômica.

- A natureza – diz ele – é lugar e instrumento básico do homem. Acabar com ela significaria deixá-lo de braços cruzados, pulmões fechados e olhos sem perspectivas.

A meu ver, esse desrespeito pela natureza é comum aos que não têm uma consciência sócio-política claramente socializadora. É incompatível, no sistema capitalista em que vivemos, uma exploração racional da floresta. O capitalismo nunca é racional, embora seja essencialmente técnico e racionalizado”.

Dom Pedro Casaldáliga afirma que o trabalho da Igreja cresce nas periferias sociais, junto ao povo oprimido e marginalizado. E define o que entende por povo:

“Quando me refiro a periferias, estou falando dos povos indígenas, dos operários e dos sub-operários, dos lavradores nas suas diferentes categorias: posseiros, colonos, peões, etc... e também dos negros. Todos nós estamos querendo reconhecer que no Brasil existe um racismo secular, prepotente e sofisticado. Como disse muito bem o Frei Beto, recentemente, “o grande estouro próximo deste país será a tomada de consciência e posição dos 30 milhões de negros que aqui vivem”.

“Dizem que a união faz a força. Então é a união dos pobres que fará a força da libertação”

Numa tentativa de explicar o constante estado de tensão entre catequese tradicional e a evangelização libertadora, ou ainda a existência de duas teologias: uma conservadora e a outra libertadora, Dom Pedro salienta que essencialmente há diferenças fundamentais entre catequese, evangelização e pastoral.

Para ele, a evangelização é anterior e concomitante a toda a catequese e toda pastoral. É o anúncio e o testemunho do amor salvador de Deus e Jesus Cristo, que não é necessariamente só de palavras, mas também de sacramentos, na hora certa, com uma metodologia própria e diferente para cada povo.

“Pastoral, por outro lado – prossegue – é o modo de evangelizar, de administrar sacramentos, de organizar o conhecimento da fé e a prática da vida cristã. Infelizmente há muita confusão entre evangelização e pastoral global, mais especificamente catequese, e mais concretamente sacramentalização. Essa confusão é que nos traz uma série de debates paralelos e conflitos sem saída”.

Com relação ao CIMI, Dom Pedro Casaldáliga considera-o o melhor acontecimento eclesiástico da história deste país/

“Posso ser muito contestado, mas asseguro que o CIMI tem sido a primeira pastoral de fronteira lucidamente organizada, que foi para as bases de um modo radical, conseguindo contestar seriamente a história da própria Igreja. Creio que demonstrou o quanto a causa indígena, que é uma causa perdida, pode ser salvadora. Esta nova pastoral indigenista está salvando a nossa pastoral”.

“A CPT e algumas comunidades de base também têm contribuído nesse sentido. No entanto, o CIMI deu à nossa Igreja a melhor atitude ecumênica que até agora se viveu nesse país, trabalhando com uma radicalidade que outros tipos de pastoral não têm e talvez nunca possam vir a ter”.

“Acho extremamente importante essa radicalidade, que é uma verdadeira obsessão pelo respeito sagrado ao índio e a suas culturas, porque ele encntra, com lucidez teológica e tato pastoral, uma atitude verdadeiramente católica bem posicionada sócio politicamente. Sem dúvida alguma, o CIMI exerce um fundamental papel de mediação entre a Igreja, a sociedade e os povos indígenas”.

A propósito de Puebla, Dom Pedro acredita que ela falou de tudo, de modo que possa ser entendido mais ou menos por índios os ângulos e setores. “Puebla foi como um super-mecado e cada um puxará dela o que quiser: uns puxarão cmida, outros detergente e outros apenas um perfume”.

“Mesmo assim, Puebla confirmou Medellin e a grande opção de Medellin pelos pobres. Nos falou de operários, camponeses, classes ou categorias marginalizadas desse continente”.

“Eu penso que a Conferência de Puebla falou da evangelização das culturas, o que mal entendido poderia ser uma grande complicação para a pastoral indigenista. Não se trata, no entanto, de somente evangelizar culturas, mas também de evangelizar estrutura. Quer dizer, destruir as estruturas de pecado e criar novas de fraternidade e igualdade realmente socializadora ou socialistas”.

“Se se tratasse apenas de evangelizar culturas, continuaríamos com o capitalismo esmagador e sua burguesia gloriosa, e estaríamos apenas colocando água benta em cima.

“A evangelização das culturas indígenas pode ser bem entendida como respeito total a essas culturas e mais especificamente às religiões. Ela consistiria, então, na atitude de levar aos índios a boa nova do evangelho e suscitar nelas a graça da fé, sem violentá-los eclesiasticamente em nome de um evangelho que, nesse caso, não seria nem supra cultural nem supra religioso”.

“Uma coisa é fé e outra é religião, que é a alma da cultura de um povo. Já há os que tem uma certa consciência etnológica a esse respeito, mas essa consciência é nova demais pois, infelizmente, nós todos ainda estamos submetidos a uma mentalidade excessivamente católica-romana-latina. Ninguém de nós, sobretudo em termos mais eclesiásticos, tem bastante liberdade de espírito para saber que o evangelho verdadeiro é supra-cultural e que a verdadeira Igreja deveria ser aquela de muitas religiões e uma única fé”.

“Eu falo muito numa espécie de entrelaçamento, que não se3ria só com outras Igrejas, mas dentro da própria igreja católica. Embora isso possa parecer um pouco impreciso teologicamente, não atinge nada do que seja realmente igreja de Jesus Cristo. Eu, ao afirmar isso, não estou negando o papa nem a estrutura hierárquica eclesiástica. Estou falando de uma manifestação uníssona de igreja que possa ser reconhecida em todo lugar, inclusive como católica. Peço que saibamos diferenciar bem o que é fé e o que é cultura e isso é uma carga histórico-cultural que a igreja carrega e que não deve ser imposta a outros povos, pois assim estaríamos praticando um verdadeiro etnocídio:

Explicando porque afirmou que a causa indígena é uma causa perdida, diz ele: “Em termos mais globais, a luta do pobre é perdida para a sociedade capitalista que tem como ponto de referência o lucro e o dinheiro”.

“Por outro lado, como luta cristã e evangélica, ela é também uma luta da redenção e da tomada de consciência da situação de marginalização, de cativeiro estrutural em que vivem os pobres e concretamente os índios. Só a partir dessa consciência e da fé no projeto de Deus que é o seu reino para os homens, um projeto de libertação plena e igualdade fraterna, é que se pode pensar em termos de uma causa humana e na vitória de uma causa humana”.

“Somente nesse sentido, o capitalismo cairá e com ele todo tipo de exploração. Eu creio na força do espírito de Deus mexendo e levando o homem a transformar a história cm sua vontade inata de libertação”.

“Creio também que uma radical mudança irá se processar a partir de todas as camadas pobres, esmagadas, oprimidas, e na América Latina, mais especificamente a partir dos povos indígenas”.

“Quando eu digo que a causa indígena é perdida e ao mesmo tempo salvadora, tento salientar a especial contribuição que o índio, pela sua própria cultura, tem a dar. Nessa sociedade sem classes, comunitária e harmônica que queremos implantar, ele tem algo de evangélico que a Igreja deve detectar e inclusive assumir e que, consequentemente, a sociedade americana, se quer ser comunitária e mais justa, deve assumir também”.

Diante dessa estrutura repressiva que se nos apresenta, Dom Pedro Casaldáliga acha que a atitude da Igreja deve ser sempre de livre pobreza. Diz ele: “Se eu não dependo de ninguém e não cobiço nada de ninguém, sou livre, falo e atuo segundo a minha consciência, a minha fé e as responsabilidades do Evangelho”.

“Penso, entretanto, que cada vez mais a Igreja, além de anunciar simplesmente, deve anunciar e denunciar dialeticamente. Não podemos apenas fazer algumas colocações, devemos fazê-las de modo dialético, mostrando e confrontando as causas, nos valendo de mediações culturais, sociais, políticas e econômicas”.

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo”.

“Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé e o que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Sobre s 10 mil índios destribalizados que vivem em Manaus, Dom Pedro disse:

“Gostaria de pedir às legítimas alianças que possam se interessar por eles que forcem o que chamo de dupla caminhada. Em primeiro lugar, conscientizando-se de sua situação de explorados e marginalizados, em segundo lugar, vendo a sua marginalização cultural e em terceiro lugar conscientizando-se de que não estão apenas fora de sua cultura, mas fora de sua pátria”.

“Se esses índios não recuperarem a memória, a consciência nostálgica no sentido mais forte da palavra, não sobreviverão nem como povo nem como pessoas”.

“Esse duplo trabalho ou dupla caminhada e essa vontade de voltar á terra, não apenas prometida, mas que foi anteriormente possuída, é um caso desafiante, mas que pode se tornar um caso profético”.

Nesse sentido, de que os povos indígenas precisam voltar às suas pátrias, devemos considerar que eles também precisam de uma anistia ampla, total e irrestrita. Dom Pedro, no entanto, acha que a anistia ainda é pouca para eles:

“Concede-se anistia a alguém que é, por um motivo ou outro, encarcerado ou banido do seu país. Os índios, por sua vez, foram cruelmente arrancados de sua pátria e forçados a morar em uma pátria alheia que, injustamente, está querendo se considerar fundamental aos povos indígenas como o é para os outros anistiados”.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

D. Pedro: somente o socialismo pode salvar os povos indígenanacionals

(Porantim – Manaus, ano II nº 12 – outubro de 1979, pgs. 8 e 9)

O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do CIMI, concedeu uma entrevista à equipe do PORANTIM. Ele falou sobre a problemática indígena, condenou o sistema capitalista como maior responsável pela opressão dos povos indígenas e admitiu que a vitória do povo só chegará com a aliança dos setores oprimidos - operários, camponeses, índios – dentro de uma visão claramente socializadora.

Depois de enviar um recado para os índios destribalizados e os estudantes de Manaus, Dom Pedro considerou que a luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e que esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica.

Ele fez ainda importantes colocações sobre Puebla, CIMI, abertura política, devastação da floresta, marxismo, ciência, ideologia e diversos outros assuntos, tentando situar o problema das nações indígenas como consequência de toda uma estrutura que visa única e exclusivamente o lucro e que, para tal, sustenta-se na exploração do povo.

Dom Pedro Casaldáliga considera o problema dos povos indígenas e o problema operário como partes de um único problema geral. “Sem uma verdadeira aliança de todas as camadas que são povo, não se vai conseguir a liberdade, a igualdade e a superação de classes que estamos pretendendo, porque a vitória do povo, sem uma visão socializadora ou socialista, não chegará e o resto serão apenas reformismo que não resolvem”.

Neste sentido, diz ele, “a luta indígena, a luta operária e a luta camponesa são uma luta só, enquanto luta do povo oprimido, marginalizado, sem voz e sem ver, classe utilizada, mão-de-obra barata, povo a serviço do lucro do capitalismo nacional e internacional”.

“Contudo, cultural, étnica e etnologicamente falando, temos que considerar que, em decorrência dos índios constituírem uma cultura à parte e diferente da nossa, essas têm algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Infelizmente, está se dando no mundo operário e mais ainda no mundo rural ou camponês, que é mais próximo do índio, o típico conflito índio x lavrador, índio x posseiro, índio x colono. É indispensável, portanto, um trabalho de conscientização quanto aos setores camponeses e operários sobre a causa indígena, de forma que seja uma conscientização esclarecedora, não se dando apenas a nível sentimental, mas principalmente a nível sócio-político e cultural-étnico”.

Dom Pedro fala de uma sociedade sem classes como única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente, pois os setores que vão construir essa sociedade, têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

“Eu acho que se deve ter uma visão clara. Assim como acredito num tipo de socialismo internacional no sentido mais radical da palavras, porque países socialistas independentes não podem sobreviver. Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas. Seria, então, um só projeto sócio-político-econômico enriquecido humanisticamente por diferentes culturas que caminhariam juntas no mesmo processo”.

“Insisto em dizer que a luta dos povos indígenas é uma luta de oprimidos e marginalizados, não só a nível político-econômico, mas também e sobretudo a nível cultural. Portanto, todo tipo de aliança que se dê com a consciência e o respeito pelas culturas indígenas, e que se faça com uma vontade socializadora dos bens e da participação, será legítima e importante na salvação do índio e na sua sobrevivência futura”.

No que diz respeito às alianças, tanto a nível de Igreja, quanto a nível de intelectualidade e a nível de posição sacra, Dom Pedro considera indispensável a presença e a atuação das alianças indígenas. Ninguém de nós é e nem será povo – diz ele – ninguém de nós poderá substituir a tomada de consciência e a ação do povo. Mas nós podemos e devemos ser uma mediação científica, eclesiástica e cristianizadora, inclusive política e às vezes até mesmo econômica.

“Nesse sentido, as alianças têm um papel preponderante, sempre que não sejam excessivamente vanguardistas, não ficando por fora demais, porque deixariam de conhecer verdadeiramente a vida e as aspirações do povo, incapacitando-se, pois, de caminhar no seu ritmo. Perigoso pode ser tanto ajudar o povo de cima, quanto ajuda-lo de fora”.

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Abordando o problema da abertura, Dom Pedro afirma que ela deve ser política, econômica e social: “Que se abra a renda e a participação, pois o resto pode ser apenas uma abertura de blá-blá-blá, do tipo burguês, que satisfará certos níveis jornalísticos e certas rodas de centro esquerda, mas que não modificará a vida do nosso povo”.

“Eu tenho gravíssima restrição a uma abertura que nos é dada assim como esmola oportunista, a pedido do próprio capitalismo multilateral ou trilateral mais concretamente, que está precisando nessa hora de um regime um pouco mais ameno para impedir que se repita o que se deu na Nicarágua, por exemplo”.

Por um outro aspecto, Dom Pedro considera essa abertura também como algo que está sendo arrancado pelos setores populares e trabalhadores, apesar de reconhecer que a burguesia brasileira está tentando utilizá-la com outra finalidade.

“Evidentemente, quando eu digo que o capitalismo multilateral ou trilateral está exigindo desses governos uma passagem de uma ditadura militar para uma civil, eu estou considerando que foi a própria conjuntura não apenas internacional, mas as conjunturas dos vários povos da América Latina e do Terceiro Mundo, que tomando consciência, se organizando e “cutucando”, exigiram do seu “papai super nacional” que reconsiderasse as condições dentro da casa e fizesse algumas concessões. Dentro desta visão, parece-me que foi uma vitória do povo e das legítimas alianças populares”.

“Eu não digo que essa abertura não deva ser, entre aspas, agradecida, evidentemente não ao sistema, mas ao povo e a Deus. Ela deve ser aproveitada: nos abrem uma janela, entremos e façamos o que pudermos fazer. Eu peço apenas que não sejamos ingênuos e não esqueçamos que a janela pode fechar. Não pensemos que essa abertura significa uma colaboração desinteressada dos poderes econômicos, dos poderes da repressão e do governo que temos aí, porque nós sabemos que a transformação da nossa sociedade se não se dá a nível econômico, não se dá a nível nenhum”.

“Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”

Dom Pedro Casaldáliga acha que no Brasil são necessárias duas conversões, uma do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas, e uma outra do capitalismo para o socialismo, sem esquecer, é claro de uma conversão plena e superior para o evangelho.

“Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

“É preciso, portanto, uma conversão econômica e outra cultural, acompanhadas de uma conversão conscientemente evangélica que, por sua vez, inexiste independente de uma transformação econômico-cultural”.

Dom Pedro Casaldáliga, apesar de reconhecer a necessidade de uma aliança entre índios, operários e lavradores, considera importante situar que os povos indígenas são povos específicos, não são povos brasileiros, se por Brasil entendemos o resultado de uma miscigenação. Ele afirma que se esse aspecto não for levado a sério, podemos cair numa atitude altamente perigosa.

“No que se refere à integração acho importante, quando muito, falar de inter-integração. Evidentemente que os povos indígenas de toda a América Latina, de um modo ou de outro, integrar-se-ão aos povos envolventes que os alcançam, mas para que sobrevivam na sua identidade, devem também integrar esses povos. Por isso é que eu falo em inter-integração”.

“O índio, sem sombra de dúvida, não é brasileiro”.

“Quando eu falo dos grupos indígenas frente às atuais nações latino-americanas estou falando de povos diferentes, mesmo lembrando e reconhecendo a miscigenação. Eu sei que o povo brasileiro atual é, em parte, fruto de sangue íbero, judeu ou árabe, mas nem por isso vou dizer que seja árabe ou judia”.

Parece-me que se antropológica, etnológica, cultural e politicamente não se tem consciência clara de que esses povos são outros povos, outras nações dentro do Brasil e da América Latina, não será possível salvá-las e superar esse período de massacre físico e genocídio cultural, pois caminharemos para um tipo de genocídio mais sofisticado que é a tal integração. Integrar é matar.”

Eu não sou tão ingênuo de pensar que as populações indígenas possam se manter virginalmente afastadas do contato ou do choque com outras culturas. Quero, no entanto, que se criem mecanismos para que sua identidade seja respeitada e para que, com legítima autonomia, elas possam se inter-integrar, ou seja, receber de nós o que acharem conveniente e nos dar coisas que podem nos ser extremamente úteis. Se assumirmos uma atitude colonialista ou nacionalista, não permitiremos que os índis sobrevivam”.

Dom Pedro Casaldáliga acha que uma saída para esse problema, ou pelo menos um primeiro estágio para que se conseguisse algo no sentido da inter-integração, seria o reconhecimento do Estado Brasileiro como um Estado multi-nacional, conforme propôs a Universidade do Amazonas, nessa Comissão interministerial que deve estudar a política florestal do governo.

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”.

Eu insisto muito que a causa indígena ou é continental, ou não se salva. Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

“Nesse nível continental, conseguimos também o apoio internacional: Nações Unidas (ONU), a melhor inteligência da Europa e o apoio mais apaixonado da Ásia. Somente assim, em termos de luta da opinião pública mundial, é que essa campanha que me parece cientificamente pura, legítima e politicamente certa, poderá ter garantias. Por esse motivo, eu insisto que em termos de Igreja, mais especificamente em termos de CIMI, sobretudo agora depois de Puebla, o nosso trabalho deve ir além fronteiras”

“Evidentemente ninguém pode imaginar que os vários povos indígenas dos quais estamos falando, possam sobreviver apenas por demarcar um área ou por citar uma certa consciência brasileira, se não se consegue jurídica e politicamente e com toda a força que está tendo em muitos setores, o valor das minorias étnicas, uma união de federações e confederações”.

“É claro, no entanto, que eu não espero esse reconhecimento de um Estado Brasileiro multi-nacional do nosso atual governo, porque na presente conjuntura, não depende nem mesmo dele essa definição”.

“O capitalismo internacional e mais concretamente trilateral ao qual nosso governo está submetido não admitiria sequer uma colocação dessa ordem. Como disse anteriormente, só um regime sócio, política e humanisticamente socialista poderia aceitar isso”.

No momento, acho importante que se lance a ideia de um Estado Brasileiro multi-nacional, pois ela não é apenas uma tese, mas é uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer. Acho válido que se escreva sobre o assunto, se discuta e se vá cbando da consciência dos melhores grupos do primeiro e segundo mundo, inclusive esses que têm vivido em sua própria casa, o problema das minorias étnicas, uma colaboração nesse sentido. Isso tudo é um processo que deve começar de modo intenso e breve a se desencadear”.

Dom Pedro Casaldáliga insiste em dizer que é incompatível com o capitalismo toda e qualquer medida que possa dar origem a uma sociedade melhor e, sobretudo, que possa favorecer a sobrevivência dos povos indígenas.

Ao referir-se ao problema da devastação da floresta, ele afirma que se faz necessária uma conversão ecológica. Mão em termos bucólicos, mas no sentido de uma transformação política e econômica.

- A natureza – diz ele – é lugar e instrumento básico do homem. Acabar com ela significaria deixá-lo de braços cruzados, pulmões fechados e olhos sem perspectivas.

A meu ver, esse desrespeito pela natureza é comum aos que não têm uma consciência sócio-política claramente socializadora. É incompatível, no sistema capitalista em que vivemos, uma exploração racional da floresta. O capitalismo nunca é racional, embora seja essencialmente técnico e racionalizado”.

Dom Pedro Casaldáliga afirma que o trabalho da Igreja cresce nas periferias sociais, junto ao povo oprimido e marginalizado. E define o que entende por povo:

“Quando me refiro a periferias, estou falando dos povos indígenas, dos operários e dos sub-operários, dos lavradores nas suas diferentes categorias: posseiros, colonos, peões, etc... e também dos negros. Todos nós estamos querendo reconhecer que no Brasil existe um racismo secular, prepotente e sofisticado. Como disse muito bem o Frei Beto, recentemente, “o grande estouro próximo deste país será a tomada de consciência e posição dos 30 milhões de negros que aqui vivem”.

“Dizem que a união faz a força. Então é a união dos pobres que fará a força da libertação”

Numa tentativa de explicar o constante estado de tensão entre catequese tradicional e a evangelização libertadora, ou ainda a existência de duas teologias: uma conservadora e a outra libertadora, Dom Pedro salienta que essencialmente há diferenças fundamentais entre catequese, evangelização e pastoral.

Para ele, a evangelização é anterior e concomitante a toda a catequese e toda pastoral. É o anúncio e o testemunho do amor salvador de Deus e Jesus Cristo, que não é necessariamente só de palavras, mas também de sacramentos, na hora certa, com uma metodologia própria e diferente para cada povo.

“Pastoral, por outro lado – prossegue – é o modo de evangelizar, de administrar sacramentos, de organizar o conhecimento da fé e a prática da vida cristã. Infelizmente há muita confusão entre evangelização e pastoral global, mais especificamente catequese, e mais concretamente sacramentalização. Essa confusão é que nos traz uma série de debates paralelos e conflitos sem saída”.

Com relação ao CIMI, Dom Pedro Casaldáliga considera-o o melhor acontecimento eclesiástico da história deste país/

“Posso ser muito contestado, mas asseguro que o CIMI tem sido a primeira pastoral de fronteira lucidamente organizada, que foi para as bases de um modo radical, conseguindo contestar seriamente a história da própria Igreja. Creio que demonstrou o quanto a causa indígena, que é uma causa perdida, pode ser salvadora. Esta nova pastoral indigenista está salvando a nossa pastoral”.

“A CPT e algumas comunidades de base também têm contribuído nesse sentido. No entanto, o CIMI deu à nossa Igreja a melhor atitude ecumênica que até agora se viveu nesse país, trabalhando com uma radicalidade que outros tipos de pastoral não têm e talvez nunca possam vir a ter”.

“Acho extremamente importante essa radicalidade, que é uma verdadeira obsessão pelo respeito sagrado ao índio e a suas culturas, porque ele encntra, com lucidez teológica e tato pastoral, uma atitude verdadeiramente católica bem posicionada sócio politicamente. Sem dúvida alguma, o CIMI exerce um fundamental papel de mediação entre a Igreja, a sociedade e os povos indígenas”.

A propósito de Puebla, Dom Pedro acredita que ela falou de tudo, de modo que possa ser entendido mais ou menos por índios os ângulos e setores. “Puebla foi como um super-mecado e cada um puxará dela o que quiser: uns puxarão cmida, outros detergente e outros apenas um perfume”.

“Mesmo assim, Puebla confirmou Medellin e a grande opção de Medellin pelos pobres. Nos falou de operários, camponeses, classes ou categorias marginalizadas desse continente”.

“Eu penso que a Conferência de Puebla falou da evangelização das culturas, o que mal entendido poderia ser uma grande complicação para a pastoral indigenista. Não se trata, no entanto, de somente evangelizar culturas, mas também de evangelizar estrutura. Quer dizer, destruir as estruturas de pecado e criar novas de fraternidade e igualdade realmente socializadora ou socialistas”.

“Se se tratasse apenas de evangelizar culturas, continuaríamos com o capitalismo esmagador e sua burguesia gloriosa, e estaríamos apenas colocando água benta em cima.

“A evangelização das culturas indígenas pode ser bem entendida como respeito total a essas culturas e mais especificamente às religiões. Ela consistiria, então, na atitude de levar aos índios a boa nova do evangelho e suscitar nelas a graça da fé, sem violentá-los eclesiasticamente em nome de um evangelho que, nesse caso, não seria nem supra cultural nem supra religioso”.

“Uma coisa é fé e outra é religião, que é a alma da cultura de um povo. Já há os que tem uma certa consciência etnológica a esse respeito, mas essa consciência é nova demais pois, infelizmente, nós todos ainda estamos submetidos a uma mentalidade excessivamente católica-romana-latina. Ninguém de nós, sobretudo em termos mais eclesiásticos, tem bastante liberdade de espírito para saber que o evangelho verdadeiro é supra-cultural e que a verdadeira Igreja deveria ser aquela de muitas religiões e uma única fé”.

“Eu falo muito numa espécie de entrelaçamento, que não se3ria só com outras Igrejas, mas dentro da própria igreja católica. Embora isso possa parecer um pouco impreciso teologicamente, não atinge nada do que seja realmente igreja de Jesus Cristo. Eu, ao afirmar isso, não estou negando o papa nem a estrutura hierárquica eclesiástica. Estou falando de uma manifestação uníssona de igreja que possa ser reconhecida em todo lugar, inclusive como católica. Peço que saibamos diferenciar bem o que é fé e o que é cultura e isso é uma carga histórico-cultural que a igreja carrega e que não deve ser imposta a outros povos, pois assim estaríamos praticando um verdadeiro etnocídio:

Explicando porque afirmou que a causa indígena é uma causa perdida, diz ele: “Em termos mais globais, a luta do pobre é perdida para a sociedade capitalista que tem como ponto de referência o lucro e o dinheiro”.

“Por outro lado, como luta cristã e evangélica, ela é também uma luta da redenção e da tomada de consciência da situação de marginalização, de cativeiro estrutural em que vivem os pobres e concretamente os índios. Só a partir dessa consciência e da fé no projeto de Deus que é o seu reino para os homens, um projeto de libertação plena e igualdade fraterna, é que se pode pensar em termos de uma causa humana e na vitória de uma causa humana”.

“Somente nesse sentido, o capitalismo cairá e com ele todo tipo de exploração. Eu creio na força do espírito de Deus mexendo e levando o homem a transformar a história cm sua vontade inata de libertação”.

“Creio também que uma radical mudança irá se processar a partir de todas as camadas pobres, esmagadas, oprimidas, e na América Latina, mais especificamente a partir dos povos indígenas”.

“Quando eu digo que a causa indígena é perdida e ao mesmo tempo salvadora, tento salientar a especial contribuição que o índio, pela sua própria cultura, tem a dar. Nessa sociedade sem classes, comunitária e harmônica que queremos implantar, ele tem algo de evangélico que a Igreja deve detectar e inclusive assumir e que, consequentemente, a sociedade americana, se quer ser comunitária e mais justa, deve assumir também”.

Diante dessa estrutura repressiva que se nos apresenta, Dom Pedro Casaldáliga acha que a atitude da Igreja deve ser sempre de livre pobreza. Diz ele: “Se eu não dependo de ninguém e não cobiço nada de ninguém, sou livre, falo e atuo segundo a minha consciência, a minha fé e as responsabilidades do Evangelho”.

“Penso, entretanto, que cada vez mais a Igreja, além de anunciar simplesmente, deve anunciar e denunciar dialeticamente. Não podemos apenas fazer algumas colocações, devemos fazê-las de modo dialético, mostrando e confrontando as causas, nos valendo de mediações culturais, sociais, políticas e econômicas”.

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo”.

“Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé e o que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Sobre s 10 mil índios destribalizados que vivem em Manaus, Dom Pedro disse:

“Gostaria de pedir às legítimas alianças que possam se interessar por eles que forcem o que chamo de dupla caminhada. Em primeiro lugar, conscientizando-se de sua situação de explorados e marginalizados, em segundo lugar, vendo a sua marginalização cultural e em terceiro lugar conscientizando-se de que não estão apenas fora de sua cultura, mas fora de sua pátria”.

“Se esses índios não recuperarem a memória, a consciência nostálgica no sentido mais forte da palavra, não sobreviverão nem como povo nem como pessoas”.

“Esse duplo trabalho ou dupla caminhada e essa vontade de voltar á terra, não apenas prometida, mas que foi anteriormente possuída, é um caso desafiante, mas que pode se tornar um caso profético”.

Nesse sentido, de que os povos indígenas precisam voltar às suas pátrias, devemos considerar que eles também precisam de uma anistia ampla, total e irrestrita. Dom Pedro, no entanto, acha que a anistia ainda é pouca para eles:

“Concede-se anistia a alguém que é, por um motivo ou outro, encarcerado ou banido do seu país. Os índios, por sua vez, foram cruelmente arrancados de sua pátria e forçados a morar em uma pátria alheia que, injustamente, está querendo se considerar fundamental aos povos indígenas como o é para os outros anistiados”.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

D. Pedro: somente o socialismo pode salvar os povos indígenanacionals

(Porantim – Manaus, ano II nº 12 – outubro de 1979, pgs. 8 e 9)

O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do CIMI, concedeu uma entrevista à equipe do PORANTIM. Ele falou sobre a problemática indígena, condenou o sistema capitalista como maior responsável pela opressão dos povos indígenas e admitiu que a vitória do povo só chegará com a aliança dos setores oprimidos - operários, camponeses, índios – dentro de uma visão claramente socializadora.

Depois de enviar um recado para os índios destribalizados e os estudantes de Manaus, Dom Pedro considerou que a luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e que esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica.

Ele fez ainda importantes colocações sobre Puebla, CIMI, abertura política, devastação da floresta, marxismo, ciência, ideologia e diversos outros assuntos, tentando situar o problema das nações indígenas como consequência de toda uma estrutura que visa única e exclusivamente o lucro e que, para tal, sustenta-se na exploração do povo.

Dom Pedro Casaldáliga considera o problema dos povos indígenas e o problema operário como partes de um único problema geral. “Sem uma verdadeira aliança de todas as camadas que são povo, não se vai conseguir a liberdade, a igualdade e a superação de classes que estamos pretendendo, porque a vitória do povo, sem uma visão socializadora ou socialista, não chegará e o resto serão apenas reformismo que não resolvem”.

Neste sentido, diz ele, “a luta indígena, a luta operária e a luta camponesa são uma luta só, enquanto luta do povo oprimido, marginalizado, sem voz e sem ver, classe utilizada, mão-de-obra barata, povo a serviço do lucro do capitalismo nacional e internacional”.

“Contudo, cultural, étnica e etnologicamente falando, temos que considerar que, em decorrência dos índios constituírem uma cultura à parte e diferente da nossa, essas têm algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Infelizmente, está se dando no mundo operário e mais ainda no mundo rural ou camponês, que é mais próximo do índio, o típico conflito índio x lavrador, índio x posseiro, índio x colono. É indispensável, portanto, um trabalho de conscientização quanto aos setores camponeses e operários sobre a causa indígena, de forma que seja uma conscientização esclarecedora, não se dando apenas a nível sentimental, mas principalmente a nível sócio-político e cultural-étnico”.

Dom Pedro fala de uma sociedade sem classes como única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente, pois os setores que vão construir essa sociedade, têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

“Eu acho que se deve ter uma visão clara. Assim como acredito num tipo de socialismo internacional no sentido mais radical da palavras, porque países socialistas independentes não podem sobreviver. Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas. Seria, então, um só projeto sócio-político-econômico enriquecido humanisticamente por diferentes culturas que caminhariam juntas no mesmo processo”.

“Insisto em dizer que a luta dos povos indígenas é uma luta de oprimidos e marginalizados, não só a nível político-econômico, mas também e sobretudo a nível cultural. Portanto, todo tipo de aliança que se dê com a consciência e o respeito pelas culturas indígenas, e que se faça com uma vontade socializadora dos bens e da participação, será legítima e importante na salvação do índio e na sua sobrevivência futura”.

No que diz respeito às alianças, tanto a nível de Igreja, quanto a nível de intelectualidade e a nível de posição sacra, Dom Pedro considera indispensável a presença e a atuação das alianças indígenas. Ninguém de nós é e nem será povo – diz ele – ninguém de nós poderá substituir a tomada de consciência e a ação do povo. Mas nós podemos e devemos ser uma mediação científica, eclesiástica e cristianizadora, inclusive política e às vezes até mesmo econômica.

“Nesse sentido, as alianças têm um papel preponderante, sempre que não sejam excessivamente vanguardistas, não ficando por fora demais, porque deixariam de conhecer verdadeiramente a vida e as aspirações do povo, incapacitando-se, pois, de caminhar no seu ritmo. Perigoso pode ser tanto ajudar o povo de cima, quanto ajuda-lo de fora”.

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Abordando o problema da abertura, Dom Pedro afirma que ela deve ser política, econômica e social: “Que se abra a renda e a participação, pois o resto pode ser apenas uma abertura de blá-blá-blá, do tipo burguês, que satisfará certos níveis jornalísticos e certas rodas de centro esquerda, mas que não modificará a vida do nosso povo”.

“Eu tenho gravíssima restrição a uma abertura que nos é dada assim como esmola oportunista, a pedido do próprio capitalismo multilateral ou trilateral mais concretamente, que está precisando nessa hora de um regime um pouco mais ameno para impedir que se repita o que se deu na Nicarágua, por exemplo”.

Por um outro aspecto, Dom Pedro considera essa abertura também como algo que está sendo arrancado pelos setores populares e trabalhadores, apesar de reconhecer que a burguesia brasileira está tentando utilizá-la com outra finalidade.

“Evidentemente, quando eu digo que o capitalismo multilateral ou trilateral está exigindo desses governos uma passagem de uma ditadura militar para uma civil, eu estou considerando que foi a própria conjuntura não apenas internacional, mas as conjunturas dos vários povos da América Latina e do Terceiro Mundo, que tomando consciência, se organizando e “cutucando”, exigiram do seu “papai super nacional” que reconsiderasse as condições dentro da casa e fizesse algumas concessões. Dentro desta visão, parece-me que foi uma vitória do povo e das legítimas alianças populares”.

“Eu não digo que essa abertura não deva ser, entre aspas, agradecida, evidentemente não ao sistema, mas ao povo e a Deus. Ela deve ser aproveitada: nos abrem uma janela, entremos e façamos o que pudermos fazer. Eu peço apenas que não sejamos ingênuos e não esqueçamos que a janela pode fechar. Não pensemos que essa abertura significa uma colaboração desinteressada dos poderes econômicos, dos poderes da repressão e do governo que temos aí, porque nós sabemos que a transformação da nossa sociedade se não se dá a nível econômico, não se dá a nível nenhum”.

“Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”

Dom Pedro Casaldáliga acha que no Brasil são necessárias duas conversões, uma do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas, e uma outra do capitalismo para o socialismo, sem esquecer, é claro de uma conversão plena e superior para o evangelho.

“Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

“É preciso, portanto, uma conversão econômica e outra cultural, acompanhadas de uma conversão conscientemente evangélica que, por sua vez, inexiste independente de uma transformação econômico-cultural”.

Dom Pedro Casaldáliga, apesar de reconhecer a necessidade de uma aliança entre índios, operários e lavradores, considera importante situar que os povos indígenas são povos específicos, não são povos brasileiros, se por Brasil entendemos o resultado de uma miscigenação. Ele afirma que se esse aspecto não for levado a sério, podemos cair numa atitude altamente perigosa.

“No que se refere à integração acho importante, quando muito, falar de inter-integração. Evidentemente que os povos indígenas de toda a América Latina, de um modo ou de outro, integrar-se-ão aos povos envolventes que os alcançam, mas para que sobrevivam na sua identidade, devem também integrar esses povos. Por isso é que eu falo em inter-integração”.

“O índio, sem sombra de dúvida, não é brasileiro”.

“Quando eu falo dos grupos indígenas frente às atuais nações latino-americanas estou falando de povos diferentes, mesmo lembrando e reconhecendo a miscigenação. Eu sei que o povo brasileiro atual é, em parte, fruto de sangue íbero, judeu ou árabe, mas nem por isso vou dizer que seja árabe ou judia”.

Parece-me que se antropológica, etnológica, cultural e politicamente não se tem consciência clara de que esses povos são outros povos, outras nações dentro do Brasil e da América Latina, não será possível salvá-las e superar esse período de massacre físico e genocídio cultural, pois caminharemos para um tipo de genocídio mais sofisticado que é a tal integração. Integrar é matar.”

Eu não sou tão ingênuo de pensar que as populações indígenas possam se manter virginalmente afastadas do contato ou do choque com outras culturas. Quero, no entanto, que se criem mecanismos para que sua identidade seja respeitada e para que, com legítima autonomia, elas possam se inter-integrar, ou seja, receber de nós o que acharem conveniente e nos dar coisas que podem nos ser extremamente úteis. Se assumirmos uma atitude colonialista ou nacionalista, não permitiremos que os índis sobrevivam”.

Dom Pedro Casaldáliga acha que uma saída para esse problema, ou pelo menos um primeiro estágio para que se conseguisse algo no sentido da inter-integração, seria o reconhecimento do Estado Brasileiro como um Estado multi-nacional, conforme propôs a Universidade do Amazonas, nessa Comissão interministerial que deve estudar a política florestal do governo.

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”.

Eu insisto muito que a causa indígena ou é continental, ou não se salva. Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

“Nesse nível continental, conseguimos também o apoio internacional: Nações Unidas (ONU), a melhor inteligência da Europa e o apoio mais apaixonado da Ásia. Somente assim, em termos de luta da opinião pública mundial, é que essa campanha que me parece cientificamente pura, legítima e politicamente certa, poderá ter garantias. Por esse motivo, eu insisto que em termos de Igreja, mais especificamente em termos de CIMI, sobretudo agora depois de Puebla, o nosso trabalho deve ir além fronteiras”

“Evidentemente ninguém pode imaginar que os vários povos indígenas dos quais estamos falando, possam sobreviver apenas por demarcar um área ou por citar uma certa consciência brasileira, se não se consegue jurídica e politicamente e com toda a força que está tendo em muitos setores, o valor das minorias étnicas, uma união de federações e confederações”.

“É claro, no entanto, que eu não espero esse reconhecimento de um Estado Brasileiro multi-nacional do nosso atual governo, porque na presente conjuntura, não depende nem mesmo dele essa definição”.

“O capitalismo internacional e mais concretamente trilateral ao qual nosso governo está submetido não admitiria sequer uma colocação dessa ordem. Como disse anteriormente, só um regime sócio, política e humanisticamente socialista poderia aceitar isso”.

No momento, acho importante que se lance a ideia de um Estado Brasileiro multi-nacional, pois ela não é apenas uma tese, mas é uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer. Acho válido que se escreva sobre o assunto, se discuta e se vá cbando da consciência dos melhores grupos do primeiro e segundo mundo, inclusive esses que têm vivido em sua própria casa, o problema das minorias étnicas, uma colaboração nesse sentido. Isso tudo é um processo que deve começar de modo intenso e breve a se desencadear”.

Dom Pedro Casaldáliga insiste em dizer que é incompatível com o capitalismo toda e qualquer medida que possa dar origem a uma sociedade melhor e, sobretudo, que possa favorecer a sobrevivência dos povos indígenas.

Ao referir-se ao problema da devastação da floresta, ele afirma que se faz necessária uma conversão ecológica. Mão em termos bucólicos, mas no sentido de uma transformação política e econômica.

- A natureza – diz ele – é lugar e instrumento básico do homem. Acabar com ela significaria deixá-lo de braços cruzados, pulmões fechados e olhos sem perspectivas.

A meu ver, esse desrespeito pela natureza é comum aos que não têm uma consciência sócio-política claramente socializadora. É incompatível, no sistema capitalista em que vivemos, uma exploração racional da floresta. O capitalismo nunca é racional, embora seja essencialmente técnico e racionalizado”.

Dom Pedro Casaldáliga afirma que o trabalho da Igreja cresce nas periferias sociais, junto ao povo oprimido e marginalizado. E define o que entende por povo:

“Quando me refiro a periferias, estou falando dos povos indígenas, dos operários e dos sub-operários, dos lavradores nas suas diferentes categorias: posseiros, colonos, peões, etc... e também dos negros. Todos nós estamos querendo reconhecer que no Brasil existe um racismo secular, prepotente e sofisticado. Como disse muito bem o Frei Beto, recentemente, “o grande estouro próximo deste país será a tomada de consciência e posição dos 30 milhões de negros que aqui vivem”.

“Dizem que a união faz a força. Então é a união dos pobres que fará a força da libertação”

Numa tentativa de explicar o constante estado de tensão entre catequese tradicional e a evangelização libertadora, ou ainda a existência de duas teologias: uma conservadora e a outra libertadora, Dom Pedro salienta que essencialmente há diferenças fundamentais entre catequese, evangelização e pastoral.

Para ele, a evangelização é anterior e concomitante a toda a catequese e toda pastoral. É o anúncio e o testemunho do amor salvador de Deus e Jesus Cristo, que não é necessariamente só de palavras, mas também de sacramentos, na hora certa, com uma metodologia própria e diferente para cada povo.

“Pastoral, por outro lado – prossegue – é o modo de evangelizar, de administrar sacramentos, de organizar o conhecimento da fé e a prática da vida cristã. Infelizmente há muita confusão entre evangelização e pastoral global, mais especificamente catequese, e mais concretamente sacramentalização. Essa confusão é que nos traz uma série de debates paralelos e conflitos sem saída”.

Com relação ao CIMI, Dom Pedro Casaldáliga considera-o o melhor acontecimento eclesiástico da história deste país/

“Posso ser muito contestado, mas asseguro que o CIMI tem sido a primeira pastoral de fronteira lucidamente organizada, que foi para as bases de um modo radical, conseguindo contestar seriamente a história da própria Igreja. Creio que demonstrou o quanto a causa indígena, que é uma causa perdida, pode ser salvadora. Esta nova pastoral indigenista está salvando a nossa pastoral”.

“A CPT e algumas comunidades de base também têm contribuído nesse sentido. No entanto, o CIMI deu à nossa Igreja a melhor atitude ecumênica que até agora se viveu nesse país, trabalhando com uma radicalidade que outros tipos de pastoral não têm e talvez nunca possam vir a ter”.

“Acho extremamente importante essa radicalidade, que é uma verdadeira obsessão pelo respeito sagrado ao índio e a suas culturas, porque ele encntra, com lucidez teológica e tato pastoral, uma atitude verdadeiramente católica bem posicionada sócio politicamente. Sem dúvida alguma, o CIMI exerce um fundamental papel de mediação entre a Igreja, a sociedade e os povos indígenas”.

A propósito de Puebla, Dom Pedro acredita que ela falou de tudo, de modo que possa ser entendido mais ou menos por índios os ângulos e setores. “Puebla foi como um super-mecado e cada um puxará dela o que quiser: uns puxarão cmida, outros detergente e outros apenas um perfume”.

“Mesmo assim, Puebla confirmou Medellin e a grande opção de Medellin pelos pobres. Nos falou de operários, camponeses, classes ou categorias marginalizadas desse continente”.

“Eu penso que a Conferência de Puebla falou da evangelização das culturas, o que mal entendido poderia ser uma grande complicação para a pastoral indigenista. Não se trata, no entanto, de somente evangelizar culturas, mas também de evangelizar estrutura. Quer dizer, destruir as estruturas de pecado e criar novas de fraternidade e igualdade realmente socializadora ou socialistas”.

“Se se tratasse apenas de evangelizar culturas, continuaríamos com o capitalismo esmagador e sua burguesia gloriosa, e estaríamos apenas colocando água benta em cima.

“A evangelização das culturas indígenas pode ser bem entendida como respeito total a essas culturas e mais especificamente às religiões. Ela consistiria, então, na atitude de levar aos índios a boa nova do evangelho e suscitar nelas a graça da fé, sem violentá-los eclesiasticamente em nome de um evangelho que, nesse caso, não seria nem supra cultural nem supra religioso”.

“Uma coisa é fé e outra é religião, que é a alma da cultura de um povo. Já há os que tem uma certa consciência etnológica a esse respeito, mas essa consciência é nova demais pois, infelizmente, nós todos ainda estamos submetidos a uma mentalidade excessivamente católica-romana-latina. Ninguém de nós, sobretudo em termos mais eclesiásticos, tem bastante liberdade de espírito para saber que o evangelho verdadeiro é supra-cultural e que a verdadeira Igreja deveria ser aquela de muitas religiões e uma única fé”.

“Eu falo muito numa espécie de entrelaçamento, que não se3ria só com outras Igrejas, mas dentro da própria igreja católica. Embora isso possa parecer um pouco impreciso teologicamente, não atinge nada do que seja realmente igreja de Jesus Cristo. Eu, ao afirmar isso, não estou negando o papa nem a estrutura hierárquica eclesiástica. Estou falando de uma manifestação uníssona de igreja que possa ser reconhecida em todo lugar, inclusive como católica. Peço que saibamos diferenciar bem o que é fé e o que é cultura e isso é uma carga histórico-cultural que a igreja carrega e que não deve ser imposta a outros povos, pois assim estaríamos praticando um verdadeiro etnocídio:

Explicando porque afirmou que a causa indígena é uma causa perdida, diz ele: “Em termos mais globais, a luta do pobre é perdida para a sociedade capitalista que tem como ponto de referência o lucro e o dinheiro”.

“Por outro lado, como luta cristã e evangélica, ela é também uma luta da redenção e da tomada de consciência da situação de marginalização, de cativeiro estrutural em que vivem os pobres e concretamente os índios. Só a partir dessa consciência e da fé no projeto de Deus que é o seu reino para os homens, um projeto de libertação plena e igualdade fraterna, é que se pode pensar em termos de uma causa humana e na vitória de uma causa humana”.

“Somente nesse sentido, o capitalismo cairá e com ele todo tipo de exploração. Eu creio na força do espírito de Deus mexendo e levando o homem a transformar a história cm sua vontade inata de libertação”.

“Creio também que uma radical mudança irá se processar a partir de todas as camadas pobres, esmagadas, oprimidas, e na América Latina, mais especificamente a partir dos povos indígenas”.

“Quando eu digo que a causa indígena é perdida e ao mesmo tempo salvadora, tento salientar a especial contribuição que o índio, pela sua própria cultura, tem a dar. Nessa sociedade sem classes, comunitária e harmônica que queremos implantar, ele tem algo de evangélico que a Igreja deve detectar e inclusive assumir e que, consequentemente, a sociedade americana, se quer ser comunitária e mais justa, deve assumir também”.

Diante dessa estrutura repressiva que se nos apresenta, Dom Pedro Casaldáliga acha que a atitude da Igreja deve ser sempre de livre pobreza. Diz ele: “Se eu não dependo de ninguém e não cobiço nada de ninguém, sou livre, falo e atuo segundo a minha consciência, a minha fé e as responsabilidades do Evangelho”.

“Penso, entretanto, que cada vez mais a Igreja, além de anunciar simplesmente, deve anunciar e denunciar dialeticamente. Não podemos apenas fazer algumas colocações, devemos fazê-las de modo dialético, mostrando e confrontando as causas, nos valendo de mediações culturais, sociais, políticas e econômicas”.

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo”.

“Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé e o que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Sobre s 10 mil índios destribalizados que vivem em Manaus, Dom Pedro disse:

“Gostaria de pedir às legítimas alianças que possam se interessar por eles que forcem o que chamo de dupla caminhada. Em primeiro lugar, conscientizando-se de sua situação de explorados e marginalizados, em segundo lugar, vendo a sua marginalização cultural e em terceiro lugar conscientizando-se de que não estão apenas fora de sua cultura, mas fora de sua pátria”.

“Se esses índios não recuperarem a memória, a consciência nostálgica no sentido mais forte da palavra, não sobreviverão nem como povo nem como pessoas”.

“Esse duplo trabalho ou dupla caminhada e essa vontade de voltar á terra, não apenas prometida, mas que foi anteriormente possuída, é um caso desafiante, mas que pode se tornar um caso profético”.

Nesse sentido, de que os povos indígenas precisam voltar às suas pátrias, devemos considerar que eles também precisam de uma anistia ampla, total e irrestrita. Dom Pedro, no entanto, acha que a anistia ainda é pouca para eles:

“Concede-se anistia a alguém que é, por um motivo ou outro, encarcerado ou banido do seu país. Os índios, por sua vez, foram cruelmente arrancados de sua pátria e forçados a morar em uma pátria alheia que, injustamente, está querendo se considerar fundamental aos povos indígenas como o é para os outros anistiados”.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

D. Pedro: somente o socialismo pode salvar os povos indígenanacionals

(Porantim – Manaus, ano II nº 12 – outubro de 1979, pgs. 8 e 9)

O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do CIMI, concedeu uma entrevista à equipe do PORANTIM. Ele falou sobre a problemática indígena, condenou o sistema capitalista como maior responsável pela opressão dos povos indígenas e admitiu que a vitória do povo só chegará com a aliança dos setores oprimidos - operários, camponeses, índios – dentro de uma visão claramente socializadora.

Depois de enviar um recado para os índios destribalizados e os estudantes de Manaus, Dom Pedro considerou que a luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e que esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica.

Ele fez ainda importantes colocações sobre Puebla, CIMI, abertura política, devastação da floresta, marxismo, ciência, ideologia e diversos outros assuntos, tentando situar o problema das nações indígenas como consequência de toda uma estrutura que visa única e exclusivamente o lucro e que, para tal, sustenta-se na exploração do povo.

Dom Pedro Casaldáliga considera o problema dos povos indígenas e o problema operário como partes de um único problema geral. “Sem uma verdadeira aliança de todas as camadas que são povo, não se vai conseguir a liberdade, a igualdade e a superação de classes que estamos pretendendo, porque a vitória do povo, sem uma visão socializadora ou socialista, não chegará e o resto serão apenas reformismo que não resolvem”.

Neste sentido, diz ele, “a luta indígena, a luta operária e a luta camponesa são uma luta só, enquanto luta do povo oprimido, marginalizado, sem voz e sem ver, classe utilizada, mão-de-obra barata, povo a serviço do lucro do capitalismo nacional e internacional”.

“Contudo, cultural, étnica e etnologicamente falando, temos que considerar que, em decorrência dos índios constituírem uma cultura à parte e diferente da nossa, essas têm algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Infelizmente, está se dando no mundo operário e mais ainda no mundo rural ou camponês, que é mais próximo do índio, o típico conflito índio x lavrador, índio x posseiro, índio x colono. É indispensável, portanto, um trabalho de conscientização quanto aos setores camponeses e operários sobre a causa indígena, de forma que seja uma conscientização esclarecedora, não se dando apenas a nível sentimental, mas principalmente a nível sócio-político e cultural-étnico”.

Dom Pedro fala de uma sociedade sem classes como única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente, pois os setores que vão construir essa sociedade, têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

“Eu acho que se deve ter uma visão clara. Assim como acredito num tipo de socialismo internacional no sentido mais radical da palavras, porque países socialistas independentes não podem sobreviver. Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas. Seria, então, um só projeto sócio-político-econômico enriquecido humanisticamente por diferentes culturas que caminhariam juntas no mesmo processo”.

“Insisto em dizer que a luta dos povos indígenas é uma luta de oprimidos e marginalizados, não só a nível político-econômico, mas também e sobretudo a nível cultural. Portanto, todo tipo de aliança que se dê com a consciência e o respeito pelas culturas indígenas, e que se faça com uma vontade socializadora dos bens e da participação, será legítima e importante na salvação do índio e na sua sobrevivência futura”.

No que diz respeito às alianças, tanto a nível de Igreja, quanto a nível de intelectualidade e a nível de posição sacra, Dom Pedro considera indispensável a presença e a atuação das alianças indígenas. Ninguém de nós é e nem será povo – diz ele – ninguém de nós poderá substituir a tomada de consciência e a ação do povo. Mas nós podemos e devemos ser uma mediação científica, eclesiástica e cristianizadora, inclusive política e às vezes até mesmo econômica.

“Nesse sentido, as alianças têm um papel preponderante, sempre que não sejam excessivamente vanguardistas, não ficando por fora demais, porque deixariam de conhecer verdadeiramente a vida e as aspirações do povo, incapacitando-se, pois, de caminhar no seu ritmo. Perigoso pode ser tanto ajudar o povo de cima, quanto ajuda-lo de fora”.

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Abordando o problema da abertura, Dom Pedro afirma que ela deve ser política, econômica e social: “Que se abra a renda e a participação, pois o resto pode ser apenas uma abertura de blá-blá-blá, do tipo burguês, que satisfará certos níveis jornalísticos e certas rodas de centro esquerda, mas que não modificará a vida do nosso povo”.

“Eu tenho gravíssima restrição a uma abertura que nos é dada assim como esmola oportunista, a pedido do próprio capitalismo multilateral ou trilateral mais concretamente, que está precisando nessa hora de um regime um pouco mais ameno para impedir que se repita o que se deu na Nicarágua, por exemplo”.

Por um outro aspecto, Dom Pedro considera essa abertura também como algo que está sendo arrancado pelos setores populares e trabalhadores, apesar de reconhecer que a burguesia brasileira está tentando utilizá-la com outra finalidade.

“Evidentemente, quando eu digo que o capitalismo multilateral ou trilateral está exigindo desses governos uma passagem de uma ditadura militar para uma civil, eu estou considerando que foi a própria conjuntura não apenas internacional, mas as conjunturas dos vários povos da América Latina e do Terceiro Mundo, que tomando consciência, se organizando e “cutucando”, exigiram do seu “papai super nacional” que reconsiderasse as condições dentro da casa e fizesse algumas concessões. Dentro desta visão, parece-me que foi uma vitória do povo e das legítimas alianças populares”.

“Eu não digo que essa abertura não deva ser, entre aspas, agradecida, evidentemente não ao sistema, mas ao povo e a Deus. Ela deve ser aproveitada: nos abrem uma janela, entremos e façamos o que pudermos fazer. Eu peço apenas que não sejamos ingênuos e não esqueçamos que a janela pode fechar. Não pensemos que essa abertura significa uma colaboração desinteressada dos poderes econômicos, dos poderes da repressão e do governo que temos aí, porque nós sabemos que a transformação da nossa sociedade se não se dá a nível econômico, não se dá a nível nenhum”.

“Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”

Dom Pedro Casaldáliga acha que no Brasil são necessárias duas conversões, uma do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas, e uma outra do capitalismo para o socialismo, sem esquecer, é claro de uma conversão plena e superior para o evangelho.

“Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

“É preciso, portanto, uma conversão econômica e outra cultural, acompanhadas de uma conversão conscientemente evangélica que, por sua vez, inexiste independente de uma transformação econômico-cultural”.

Dom Pedro Casaldáliga, apesar de reconhecer a necessidade de uma aliança entre índios, operários e lavradores, considera importante situar que os povos indígenas são povos específicos, não são povos brasileiros, se por Brasil entendemos o resultado de uma miscigenação. Ele afirma que se esse aspecto não for levado a sério, podemos cair numa atitude altamente perigosa.

“No que se refere à integração acho importante, quando muito, falar de inter-integração. Evidentemente que os povos indígenas de toda a América Latina, de um modo ou de outro, integrar-se-ão aos povos envolventes que os alcançam, mas para que sobrevivam na sua identidade, devem também integrar esses povos. Por isso é que eu falo em inter-integração”.

“O índio, sem sombra de dúvida, não é brasileiro”.

“Quando eu falo dos grupos indígenas frente às atuais nações latino-americanas estou falando de povos diferentes, mesmo lembrando e reconhecendo a miscigenação. Eu sei que o povo brasileiro atual é, em parte, fruto de sangue íbero, judeu ou árabe, mas nem por isso vou dizer que seja árabe ou judia”.

Parece-me que se antropológica, etnológica, cultural e politicamente não se tem consciência clara de que esses povos são outros povos, outras nações dentro do Brasil e da América Latina, não será possível salvá-las e superar esse período de massacre físico e genocídio cultural, pois caminharemos para um tipo de genocídio mais sofisticado que é a tal integração. Integrar é matar.”

Eu não sou tão ingênuo de pensar que as populações indígenas possam se manter virginalmente afastadas do contato ou do choque com outras culturas. Quero, no entanto, que se criem mecanismos para que sua identidade seja respeitada e para que, com legítima autonomia, elas possam se inter-integrar, ou seja, receber de nós o que acharem conveniente e nos dar coisas que podem nos ser extremamente úteis. Se assumirmos uma atitude colonialista ou nacionalista, não permitiremos que os índis sobrevivam”.

Dom Pedro Casaldáliga acha que uma saída para esse problema, ou pelo menos um primeiro estágio para que se conseguisse algo no sentido da inter-integração, seria o reconhecimento do Estado Brasileiro como um Estado multi-nacional, conforme propôs a Universidade do Amazonas, nessa Comissão interministerial que deve estudar a política florestal do governo.

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”.

Eu insisto muito que a causa indígena ou é continental, ou não se salva. Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

“Nesse nível continental, conseguimos também o apoio internacional: Nações Unidas (ONU), a melhor inteligência da Europa e o apoio mais apaixonado da Ásia. Somente assim, em termos de luta da opinião pública mundial, é que essa campanha que me parece cientificamente pura, legítima e politicamente certa, poderá ter garantias. Por esse motivo, eu insisto que em termos de Igreja, mais especificamente em termos de CIMI, sobretudo agora depois de Puebla, o nosso trabalho deve ir além fronteiras”

“Evidentemente ninguém pode imaginar que os vários povos indígenas dos quais estamos falando, possam sobreviver apenas por demarcar um área ou por citar uma certa consciência brasileira, se não se consegue jurídica e politicamente e com toda a força que está tendo em muitos setores, o valor das minorias étnicas, uma união de federações e confederações”.

“É claro, no entanto, que eu não espero esse reconhecimento de um Estado Brasileiro multi-nacional do nosso atual governo, porque na presente conjuntura, não depende nem mesmo dele essa definição”.

“O capitalismo internacional e mais concretamente trilateral ao qual nosso governo está submetido não admitiria sequer uma colocação dessa ordem. Como disse anteriormente, só um regime sócio, política e humanisticamente socialista poderia aceitar isso”.

No momento, acho importante que se lance a ideia de um Estado Brasileiro multi-nacional, pois ela não é apenas uma tese, mas é uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer. Acho válido que se escreva sobre o assunto, se discuta e se vá cbando da consciência dos melhores grupos do primeiro e segundo mundo, inclusive esses que têm vivido em sua própria casa, o problema das minorias étnicas, uma colaboração nesse sentido. Isso tudo é um processo que deve começar de modo intenso e breve a se desencadear”.

Dom Pedro Casaldáliga insiste em dizer que é incompatível com o capitalismo toda e qualquer medida que possa dar origem a uma sociedade melhor e, sobretudo, que possa favorecer a sobrevivência dos povos indígenas.

Ao referir-se ao problema da devastação da floresta, ele afirma que se faz necessária uma conversão ecológica. Mão em termos bucólicos, mas no sentido de uma transformação política e econômica.

- A natureza – diz ele – é lugar e instrumento básico do homem. Acabar com ela significaria deixá-lo de braços cruzados, pulmões fechados e olhos sem perspectivas.

A meu ver, esse desrespeito pela natureza é comum aos que não têm uma consciência sócio-política claramente socializadora. É incompatível, no sistema capitalista em que vivemos, uma exploração racional da floresta. O capitalismo nunca é racional, embora seja essencialmente técnico e racionalizado”.

Dom Pedro Casaldáliga afirma que o trabalho da Igreja cresce nas periferias sociais, junto ao povo oprimido e marginalizado. E define o que entende por povo:

“Quando me refiro a periferias, estou falando dos povos indígenas, dos operários e dos sub-operários, dos lavradores nas suas diferentes categorias: posseiros, colonos, peões, etc... e também dos negros. Todos nós estamos querendo reconhecer que no Brasil existe um racismo secular, prepotente e sofisticado. Como disse muito bem o Frei Beto, recentemente, “o grande estouro próximo deste país será a tomada de consciência e posição dos 30 milhões de negros que aqui vivem”.

“Dizem que a união faz a força. Então é a união dos pobres que fará a força da libertação”

Numa tentativa de explicar o constante estado de tensão entre catequese tradicional e a evangelização libertadora, ou ainda a existência de duas teologias: uma conservadora e a outra libertadora, Dom Pedro salienta que essencialmente há diferenças fundamentais entre catequese, evangelização e pastoral.

Para ele, a evangelização é anterior e concomitante a toda a catequese e toda pastoral. É o anúncio e o testemunho do amor salvador de Deus e Jesus Cristo, que não é necessariamente só de palavras, mas também de sacramentos, na hora certa, com uma metodologia própria e diferente para cada povo.

“Pastoral, por outro lado – prossegue – é o modo de evangelizar, de administrar sacramentos, de organizar o conhecimento da fé e a prática da vida cristã. Infelizmente há muita confusão entre evangelização e pastoral global, mais especificamente catequese, e mais concretamente sacramentalização. Essa confusão é que nos traz uma série de debates paralelos e conflitos sem saída”.

Com relação ao CIMI, Dom Pedro Casaldáliga considera-o o melhor acontecimento eclesiástico da história deste país/

“Posso ser muito contestado, mas asseguro que o CIMI tem sido a primeira pastoral de fronteira lucidamente organizada, que foi para as bases de um modo radical, conseguindo contestar seriamente a história da própria Igreja. Creio que demonstrou o quanto a causa indígena, que é uma causa perdida, pode ser salvadora. Esta nova pastoral indigenista está salvando a nossa pastoral”.

“A CPT e algumas comunidades de base também têm contribuído nesse sentido. No entanto, o CIMI deu à nossa Igreja a melhor atitude ecumênica que até agora se viveu nesse país, trabalhando com uma radicalidade que outros tipos de pastoral não têm e talvez nunca possam vir a ter”.

“Acho extremamente importante essa radicalidade, que é uma verdadeira obsessão pelo respeito sagrado ao índio e a suas culturas, porque ele encntra, com lucidez teológica e tato pastoral, uma atitude verdadeiramente católica bem posicionada sócio politicamente. Sem dúvida alguma, o CIMI exerce um fundamental papel de mediação entre a Igreja, a sociedade e os povos indígenas”.

A propósito de Puebla, Dom Pedro acredita que ela falou de tudo, de modo que possa ser entendido mais ou menos por índios os ângulos e setores. “Puebla foi como um super-mecado e cada um puxará dela o que quiser: uns puxarão cmida, outros detergente e outros apenas um perfume”.

“Mesmo assim, Puebla confirmou Medellin e a grande opção de Medellin pelos pobres. Nos falou de operários, camponeses, classes ou categorias marginalizadas desse continente”.

“Eu penso que a Conferência de Puebla falou da evangelização das culturas, o que mal entendido poderia ser uma grande complicação para a pastoral indigenista. Não se trata, no entanto, de somente evangelizar culturas, mas também de evangelizar estrutura. Quer dizer, destruir as estruturas de pecado e criar novas de fraternidade e igualdade realmente socializadora ou socialistas”.

“Se se tratasse apenas de evangelizar culturas, continuaríamos com o capitalismo esmagador e sua burguesia gloriosa, e estaríamos apenas colocando água benta em cima.

“A evangelização das culturas indígenas pode ser bem entendida como respeito total a essas culturas e mais especificamente às religiões. Ela consistiria, então, na atitude de levar aos índios a boa nova do evangelho e suscitar nelas a graça da fé, sem violentá-los eclesiasticamente em nome de um evangelho que, nesse caso, não seria nem supra cultural nem supra religioso”.

“Uma coisa é fé e outra é religião, que é a alma da cultura de um povo. Já há os que tem uma certa consciência etnológica a esse respeito, mas essa consciência é nova demais pois, infelizmente, nós todos ainda estamos submetidos a uma mentalidade excessivamente católica-romana-latina. Ninguém de nós, sobretudo em termos mais eclesiásticos, tem bastante liberdade de espírito para saber que o evangelho verdadeiro é supra-cultural e que a verdadeira Igreja deveria ser aquela de muitas religiões e uma única fé”.

“Eu falo muito numa espécie de entrelaçamento, que não se3ria só com outras Igrejas, mas dentro da própria igreja católica. Embora isso possa parecer um pouco impreciso teologicamente, não atinge nada do que seja realmente igreja de Jesus Cristo. Eu, ao afirmar isso, não estou negando o papa nem a estrutura hierárquica eclesiástica. Estou falando de uma manifestação uníssona de igreja que possa ser reconhecida em todo lugar, inclusive como católica. Peço que saibamos diferenciar bem o que é fé e o que é cultura e isso é uma carga histórico-cultural que a igreja carrega e que não deve ser imposta a outros povos, pois assim estaríamos praticando um verdadeiro etnocídio:

Explicando porque afirmou que a causa indígena é uma causa perdida, diz ele: “Em termos mais globais, a luta do pobre é perdida para a sociedade capitalista que tem como ponto de referência o lucro e o dinheiro”.

“Por outro lado, como luta cristã e evangélica, ela é também uma luta da redenção e da tomada de consciência da situação de marginalização, de cativeiro estrutural em que vivem os pobres e concretamente os índios. Só a partir dessa consciência e da fé no projeto de Deus que é o seu reino para os homens, um projeto de libertação plena e igualdade fraterna, é que se pode pensar em termos de uma causa humana e na vitória de uma causa humana”.

“Somente nesse sentido, o capitalismo cairá e com ele todo tipo de exploração. Eu creio na força do espírito de Deus mexendo e levando o homem a transformar a história cm sua vontade inata de libertação”.

“Creio também que uma radical mudança irá se processar a partir de todas as camadas pobres, esmagadas, oprimidas, e na América Latina, mais especificamente a partir dos povos indígenas”.

“Quando eu digo que a causa indígena é perdida e ao mesmo tempo salvadora, tento salientar a especial contribuição que o índio, pela sua própria cultura, tem a dar. Nessa sociedade sem classes, comunitária e harmônica que queremos implantar, ele tem algo de evangélico que a Igreja deve detectar e inclusive assumir e que, consequentemente, a sociedade americana, se quer ser comunitária e mais justa, deve assumir também”.

Diante dessa estrutura repressiva que se nos apresenta, Dom Pedro Casaldáliga acha que a atitude da Igreja deve ser sempre de livre pobreza. Diz ele: “Se eu não dependo de ninguém e não cobiço nada de ninguém, sou livre, falo e atuo segundo a minha consciência, a minha fé e as responsabilidades do Evangelho”.

“Penso, entretanto, que cada vez mais a Igreja, além de anunciar simplesmente, deve anunciar e denunciar dialeticamente. Não podemos apenas fazer algumas colocações, devemos fazê-las de modo dialético, mostrando e confrontando as causas, nos valendo de mediações culturais, sociais, políticas e econômicas”.

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo”.

“Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé e o que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Sobre s 10 mil índios destribalizados que vivem em Manaus, Dom Pedro disse:

“Gostaria de pedir às legítimas alianças que possam se interessar por eles que forcem o que chamo de dupla caminhada. Em primeiro lugar, conscientizando-se de sua situação de explorados e marginalizados, em segundo lugar, vendo a sua marginalização cultural e em terceiro lugar conscientizando-se de que não estão apenas fora de sua cultura, mas fora de sua pátria”.

“Se esses índios não recuperarem a memória, a consciência nostálgica no sentido mais forte da palavra, não sobreviverão nem como povo nem como pessoas”.

“Esse duplo trabalho ou dupla caminhada e essa vontade de voltar á terra, não apenas prometida, mas que foi anteriormente possuída, é um caso desafiante, mas que pode se tornar um caso profético”.

Nesse sentido, de que os povos indígenas precisam voltar às suas pátrias, devemos considerar que eles também precisam de uma anistia ampla, total e irrestrita. Dom Pedro, no entanto, acha que a anistia ainda é pouca para eles:

“Concede-se anistia a alguém que é, por um motivo ou outro, encarcerado ou banido do seu país. Os índios, por sua vez, foram cruelmente arrancados de sua pátria e forçados a morar em uma pátria alheia que, injustamente, está querendo se considerar fundamental aos povos indígenas como o é para os outros anistiados”.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

D. Pedro: somente o socialismo pode salvar os povos indígenanacionals

(Porantim – Manaus, ano II nº 12 – outubro de 1979, pgs. 8 e 9)

O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do CIMI, concedeu uma entrevista à equipe do PORANTIM. Ele falou sobre a problemática indígena, condenou o sistema capitalista como maior responsável pela opressão dos povos indígenas e admitiu que a vitória do povo só chegará com a aliança dos setores oprimidos - operários, camponeses, índios – dentro de uma visão claramente socializadora.

Depois de enviar um recado para os índios destribalizados e os estudantes de Manaus, Dom Pedro considerou que a luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e que esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica.

Ele fez ainda importantes colocações sobre Puebla, CIMI, abertura política, devastação da floresta, marxismo, ciência, ideologia e diversos outros assuntos, tentando situar o problema das nações indígenas como consequência de toda uma estrutura que visa única e exclusivamente o lucro e que, para tal, sustenta-se na exploração do povo.

Dom Pedro Casaldáliga considera o problema dos povos indígenas e o problema operário como partes de um único problema geral. “Sem uma verdadeira aliança de todas as camadas que são povo, não se vai conseguir a liberdade, a igualdade e a superação de classes que estamos pretendendo, porque a vitória do povo, sem uma visão socializadora ou socialista, não chegará e o resto serão apenas reformismo que não resolvem”.

Neste sentido, diz ele, “a luta indígena, a luta operária e a luta camponesa são uma luta só, enquanto luta do povo oprimido, marginalizado, sem voz e sem ver, classe utilizada, mão-de-obra barata, povo a serviço do lucro do capitalismo nacional e internacional”.

“Contudo, cultural, étnica e etnologicamente falando, temos que considerar que, em decorrência dos índios constituírem uma cultura à parte e diferente da nossa, essas têm algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Infelizmente, está se dando no mundo operário e mais ainda no mundo rural ou camponês, que é mais próximo do índio, o típico conflito índio x lavrador, índio x posseiro, índio x colono. É indispensável, portanto, um trabalho de conscientização quanto aos setores camponeses e operários sobre a causa indígena, de forma que seja uma conscientização esclarecedora, não se dando apenas a nível sentimental, mas principalmente a nível sócio-político e cultural-étnico”.

Dom Pedro fala de uma sociedade sem classes como única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente, pois os setores que vão construir essa sociedade, têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

“Eu acho que se deve ter uma visão clara. Assim como acredito num tipo de socialismo internacional no sentido mais radical da palavras, porque países socialistas independentes não podem sobreviver. Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas. Seria, então, um só projeto sócio-político-econômico enriquecido humanisticamente por diferentes culturas que caminhariam juntas no mesmo processo”.

“Insisto em dizer que a luta dos povos indígenas é uma luta de oprimidos e marginalizados, não só a nível político-econômico, mas também e sobretudo a nível cultural. Portanto, todo tipo de aliança que se dê com a consciência e o respeito pelas culturas indígenas, e que se faça com uma vontade socializadora dos bens e da participação, será legítima e importante na salvação do índio e na sua sobrevivência futura”.

No que diz respeito às alianças, tanto a nível de Igreja, quanto a nível de intelectualidade e a nível de posição sacra, Dom Pedro considera indispensável a presença e a atuação das alianças indígenas. Ninguém de nós é e nem será povo – diz ele – ninguém de nós poderá substituir a tomada de consciência e a ação do povo. Mas nós podemos e devemos ser uma mediação científica, eclesiástica e cristianizadora, inclusive política e às vezes até mesmo econômica.

“Nesse sentido, as alianças têm um papel preponderante, sempre que não sejam excessivamente vanguardistas, não ficando por fora demais, porque deixariam de conhecer verdadeiramente a vida e as aspirações do povo, incapacitando-se, pois, de caminhar no seu ritmo. Perigoso pode ser tanto ajudar o povo de cima, quanto ajuda-lo de fora”.

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Abordando o problema da abertura, Dom Pedro afirma que ela deve ser política, econômica e social: “Que se abra a renda e a participação, pois o resto pode ser apenas uma abertura de blá-blá-blá, do tipo burguês, que satisfará certos níveis jornalísticos e certas rodas de centro esquerda, mas que não modificará a vida do nosso povo”.

“Eu tenho gravíssima restrição a uma abertura que nos é dada assim como esmola oportunista, a pedido do próprio capitalismo multilateral ou trilateral mais concretamente, que está precisando nessa hora de um regime um pouco mais ameno para impedir que se repita o que se deu na Nicarágua, por exemplo”.

Por um outro aspecto, Dom Pedro considera essa abertura também como algo que está sendo arrancado pelos setores populares e trabalhadores, apesar de reconhecer que a burguesia brasileira está tentando utilizá-la com outra finalidade.

“Evidentemente, quando eu digo que o capitalismo multilateral ou trilateral está exigindo desses governos uma passagem de uma ditadura militar para uma civil, eu estou considerando que foi a própria conjuntura não apenas internacional, mas as conjunturas dos vários povos da América Latina e do Terceiro Mundo, que tomando consciência, se organizando e “cutucando”, exigiram do seu “papai super nacional” que reconsiderasse as condições dentro da casa e fizesse algumas concessões. Dentro desta visão, parece-me que foi uma vitória do povo e das legítimas alianças populares”.

“Eu não digo que essa abertura não deva ser, entre aspas, agradecida, evidentemente não ao sistema, mas ao povo e a Deus. Ela deve ser aproveitada: nos abrem uma janela, entremos e façamos o que pudermos fazer. Eu peço apenas que não sejamos ingênuos e não esqueçamos que a janela pode fechar. Não pensemos que essa abertura significa uma colaboração desinteressada dos poderes econômicos, dos poderes da repressão e do governo que temos aí, porque nós sabemos que a transformação da nossa sociedade se não se dá a nível econômico, não se dá a nível nenhum”.

“Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”

Dom Pedro Casaldáliga acha que no Brasil são necessárias duas conversões, uma do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas, e uma outra do capitalismo para o socialismo, sem esquecer, é claro de uma conversão plena e superior para o evangelho.

“Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

“É preciso, portanto, uma conversão econômica e outra cultural, acompanhadas de uma conversão conscientemente evangélica que, por sua vez, inexiste independente de uma transformação econômico-cultural”.

Dom Pedro Casaldáliga, apesar de reconhecer a necessidade de uma aliança entre índios, operários e lavradores, considera importante situar que os povos indígenas são povos específicos, não são povos brasileiros, se por Brasil entendemos o resultado de uma miscigenação. Ele afirma que se esse aspecto não for levado a sério, podemos cair numa atitude altamente perigosa.

“No que se refere à integração acho importante, quando muito, falar de inter-integração. Evidentemente que os povos indígenas de toda a América Latina, de um modo ou de outro, integrar-se-ão aos povos envolventes que os alcançam, mas para que sobrevivam na sua identidade, devem também integrar esses povos. Por isso é que eu falo em inter-integração”.

“O índio, sem sombra de dúvida, não é brasileiro”.

“Quando eu falo dos grupos indígenas frente às atuais nações latino-americanas estou falando de povos diferentes, mesmo lembrando e reconhecendo a miscigenação. Eu sei que o povo brasileiro atual é, em parte, fruto de sangue íbero, judeu ou árabe, mas nem por isso vou dizer que seja árabe ou judia”.

Parece-me que se antropológica, etnológica, cultural e politicamente não se tem consciência clara de que esses povos são outros povos, outras nações dentro do Brasil e da América Latina, não será possível salvá-las e superar esse período de massacre físico e genocídio cultural, pois caminharemos para um tipo de genocídio mais sofisticado que é a tal integração. Integrar é matar.”

Eu não sou tão ingênuo de pensar que as populações indígenas possam se manter virginalmente afastadas do contato ou do choque com outras culturas. Quero, no entanto, que se criem mecanismos para que sua identidade seja respeitada e para que, com legítima autonomia, elas possam se inter-integrar, ou seja, receber de nós o que acharem conveniente e nos dar coisas que podem nos ser extremamente úteis. Se assumirmos uma atitude colonialista ou nacionalista, não permitiremos que os índis sobrevivam”.

Dom Pedro Casaldáliga acha que uma saída para esse problema, ou pelo menos um primeiro estágio para que se conseguisse algo no sentido da inter-integração, seria o reconhecimento do Estado Brasileiro como um Estado multi-nacional, conforme propôs a Universidade do Amazonas, nessa Comissão interministerial que deve estudar a política florestal do governo.

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”.

Eu insisto muito que a causa indígena ou é continental, ou não se salva. Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

“Nesse nível continental, conseguimos também o apoio internacional: Nações Unidas (ONU), a melhor inteligência da Europa e o apoio mais apaixonado da Ásia. Somente assim, em termos de luta da opinião pública mundial, é que essa campanha que me parece cientificamente pura, legítima e politicamente certa, poderá ter garantias. Por esse motivo, eu insisto que em termos de Igreja, mais especificamente em termos de CIMI, sobretudo agora depois de Puebla, o nosso trabalho deve ir além fronteiras”

“Evidentemente ninguém pode imaginar que os vários povos indígenas dos quais estamos falando, possam sobreviver apenas por demarcar um área ou por citar uma certa consciência brasileira, se não se consegue jurídica e politicamente e com toda a força que está tendo em muitos setores, o valor das minorias étnicas, uma união de federações e confederações”.

“É claro, no entanto, que eu não espero esse reconhecimento de um Estado Brasileiro multi-nacional do nosso atual governo, porque na presente conjuntura, não depende nem mesmo dele essa definição”.

“O capitalismo internacional e mais concretamente trilateral ao qual nosso governo está submetido não admitiria sequer uma colocação dessa ordem. Como disse anteriormente, só um regime sócio, política e humanisticamente socialista poderia aceitar isso”.

No momento, acho importante que se lance a ideia de um Estado Brasileiro multi-nacional, pois ela não é apenas uma tese, mas é uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer. Acho válido que se escreva sobre o assunto, se discuta e se vá cbando da consciência dos melhores grupos do primeiro e segundo mundo, inclusive esses que têm vivido em sua própria casa, o problema das minorias étnicas, uma colaboração nesse sentido. Isso tudo é um processo que deve começar de modo intenso e breve a se desencadear”.

Dom Pedro Casaldáliga insiste em dizer que é incompatível com o capitalismo toda e qualquer medida que possa dar origem a uma sociedade melhor e, sobretudo, que possa favorecer a sobrevivência dos povos indígenas.

Ao referir-se ao problema da devastação da floresta, ele afirma que se faz necessária uma conversão ecológica. Mão em termos bucólicos, mas no sentido de uma transformação política e econômica.

- A natureza – diz ele – é lugar e instrumento básico do homem. Acabar com ela significaria deixá-lo de braços cruzados, pulmões fechados e olhos sem perspectivas.

A meu ver, esse desrespeito pela natureza é comum aos que não têm uma consciência sócio-política claramente socializadora. É incompatível, no sistema capitalista em que vivemos, uma exploração racional da floresta. O capitalismo nunca é racional, embora seja essencialmente técnico e racionalizado”.

Dom Pedro Casaldáliga afirma que o trabalho da Igreja cresce nas periferias sociais, junto ao povo oprimido e marginalizado. E define o que entende por povo:

“Quando me refiro a periferias, estou falando dos povos indígenas, dos operários e dos sub-operários, dos lavradores nas suas diferentes categorias: posseiros, colonos, peões, etc... e também dos negros. Todos nós estamos querendo reconhecer que no Brasil existe um racismo secular, prepotente e sofisticado. Como disse muito bem o Frei Beto, recentemente, “o grande estouro próximo deste país será a tomada de consciência e posição dos 30 milhões de negros que aqui vivem”.

“Dizem que a união faz a força. Então é a união dos pobres que fará a força da libertação”

Numa tentativa de explicar o constante estado de tensão entre catequese tradicional e a evangelização libertadora, ou ainda a existência de duas teologias: uma conservadora e a outra libertadora, Dom Pedro salienta que essencialmente há diferenças fundamentais entre catequese, evangelização e pastoral.

Para ele, a evangelização é anterior e concomitante a toda a catequese e toda pastoral. É o anúncio e o testemunho do amor salvador de Deus e Jesus Cristo, que não é necessariamente só de palavras, mas também de sacramentos, na hora certa, com uma metodologia própria e diferente para cada povo.

“Pastoral, por outro lado – prossegue – é o modo de evangelizar, de administrar sacramentos, de organizar o conhecimento da fé e a prática da vida cristã. Infelizmente há muita confusão entre evangelização e pastoral global, mais especificamente catequese, e mais concretamente sacramentalização. Essa confusão é que nos traz uma série de debates paralelos e conflitos sem saída”.

Com relação ao CIMI, Dom Pedro Casaldáliga considera-o o melhor acontecimento eclesiástico da história deste país/

“Posso ser muito contestado, mas asseguro que o CIMI tem sido a primeira pastoral de fronteira lucidamente organizada, que foi para as bases de um modo radical, conseguindo contestar seriamente a história da própria Igreja. Creio que demonstrou o quanto a causa indígena, que é uma causa perdida, pode ser salvadora. Esta nova pastoral indigenista está salvando a nossa pastoral”.

“A CPT e algumas comunidades de base também têm contribuído nesse sentido. No entanto, o CIMI deu à nossa Igreja a melhor atitude ecumênica que até agora se viveu nesse país, trabalhando com uma radicalidade que outros tipos de pastoral não têm e talvez nunca possam vir a ter”.

“Acho extremamente importante essa radicalidade, que é uma verdadeira obsessão pelo respeito sagrado ao índio e a suas culturas, porque ele encntra, com lucidez teológica e tato pastoral, uma atitude verdadeiramente católica bem posicionada sócio politicamente. Sem dúvida alguma, o CIMI exerce um fundamental papel de mediação entre a Igreja, a sociedade e os povos indígenas”.

A propósito de Puebla, Dom Pedro acredita que ela falou de tudo, de modo que possa ser entendido mais ou menos por índios os ângulos e setores. “Puebla foi como um super-mecado e cada um puxará dela o que quiser: uns puxarão cmida, outros detergente e outros apenas um perfume”.

“Mesmo assim, Puebla confirmou Medellin e a grande opção de Medellin pelos pobres. Nos falou de operários, camponeses, classes ou categorias marginalizadas desse continente”.

“Eu penso que a Conferência de Puebla falou da evangelização das culturas, o que mal entendido poderia ser uma grande complicação para a pastoral indigenista. Não se trata, no entanto, de somente evangelizar culturas, mas também de evangelizar estrutura. Quer dizer, destruir as estruturas de pecado e criar novas de fraternidade e igualdade realmente socializadora ou socialistas”.

“Se se tratasse apenas de evangelizar culturas, continuaríamos com o capitalismo esmagador e sua burguesia gloriosa, e estaríamos apenas colocando água benta em cima.

“A evangelização das culturas indígenas pode ser bem entendida como respeito total a essas culturas e mais especificamente às religiões. Ela consistiria, então, na atitude de levar aos índios a boa nova do evangelho e suscitar nelas a graça da fé, sem violentá-los eclesiasticamente em nome de um evangelho que, nesse caso, não seria nem supra cultural nem supra religioso”.

“Uma coisa é fé e outra é religião, que é a alma da cultura de um povo. Já há os que tem uma certa consciência etnológica a esse respeito, mas essa consciência é nova demais pois, infelizmente, nós todos ainda estamos submetidos a uma mentalidade excessivamente católica-romana-latina. Ninguém de nós, sobretudo em termos mais eclesiásticos, tem bastante liberdade de espírito para saber que o evangelho verdadeiro é supra-cultural e que a verdadeira Igreja deveria ser aquela de muitas religiões e uma única fé”.

“Eu falo muito numa espécie de entrelaçamento, que não se3ria só com outras Igrejas, mas dentro da própria igreja católica. Embora isso possa parecer um pouco impreciso teologicamente, não atinge nada do que seja realmente igreja de Jesus Cristo. Eu, ao afirmar isso, não estou negando o papa nem a estrutura hierárquica eclesiástica. Estou falando de uma manifestação uníssona de igreja que possa ser reconhecida em todo lugar, inclusive como católica. Peço que saibamos diferenciar bem o que é fé e o que é cultura e isso é uma carga histórico-cultural que a igreja carrega e que não deve ser imposta a outros povos, pois assim estaríamos praticando um verdadeiro etnocídio:

Explicando porque afirmou que a causa indígena é uma causa perdida, diz ele: “Em termos mais globais, a luta do pobre é perdida para a sociedade capitalista que tem como ponto de referência o lucro e o dinheiro”.

“Por outro lado, como luta cristã e evangélica, ela é também uma luta da redenção e da tomada de consciência da situação de marginalização, de cativeiro estrutural em que vivem os pobres e concretamente os índios. Só a partir dessa consciência e da fé no projeto de Deus que é o seu reino para os homens, um projeto de libertação plena e igualdade fraterna, é que se pode pensar em termos de uma causa humana e na vitória de uma causa humana”.

“Somente nesse sentido, o capitalismo cairá e com ele todo tipo de exploração. Eu creio na força do espírito de Deus mexendo e levando o homem a transformar a história cm sua vontade inata de libertação”.

“Creio também que uma radical mudança irá se processar a partir de todas as camadas pobres, esmagadas, oprimidas, e na América Latina, mais especificamente a partir dos povos indígenas”.

“Quando eu digo que a causa indígena é perdida e ao mesmo tempo salvadora, tento salientar a especial contribuição que o índio, pela sua própria cultura, tem a dar. Nessa sociedade sem classes, comunitária e harmônica que queremos implantar, ele tem algo de evangélico que a Igreja deve detectar e inclusive assumir e que, consequentemente, a sociedade americana, se quer ser comunitária e mais justa, deve assumir também”.

Diante dessa estrutura repressiva que se nos apresenta, Dom Pedro Casaldáliga acha que a atitude da Igreja deve ser sempre de livre pobreza. Diz ele: “Se eu não dependo de ninguém e não cobiço nada de ninguém, sou livre, falo e atuo segundo a minha consciência, a minha fé e as responsabilidades do Evangelho”.

“Penso, entretanto, que cada vez mais a Igreja, além de anunciar simplesmente, deve anunciar e denunciar dialeticamente. Não podemos apenas fazer algumas colocações, devemos fazê-las de modo dialético, mostrando e confrontando as causas, nos valendo de mediações culturais, sociais, políticas e econômicas”.

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo”.

“Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé e o que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Sobre s 10 mil índios destribalizados que vivem em Manaus, Dom Pedro disse:

“Gostaria de pedir às legítimas alianças que possam se interessar por eles que forcem o que chamo de dupla caminhada. Em primeiro lugar, conscientizando-se de sua situação de explorados e marginalizados, em segundo lugar, vendo a sua marginalização cultural e em terceiro lugar conscientizando-se de que não estão apenas fora de sua cultura, mas fora de sua pátria”.

“Se esses índios não recuperarem a memória, a consciência nostálgica no sentido mais forte da palavra, não sobreviverão nem como povo nem como pessoas”.

“Esse duplo trabalho ou dupla caminhada e essa vontade de voltar á terra, não apenas prometida, mas que foi anteriormente possuída, é um caso desafiante, mas que pode se tornar um caso profético”.

Nesse sentido, de que os povos indígenas precisam voltar às suas pátrias, devemos considerar que eles também precisam de uma anistia ampla, total e irrestrita. Dom Pedro, no entanto, acha que a anistia ainda é pouca para eles:

“Concede-se anistia a alguém que é, por um motivo ou outro, encarcerado ou banido do seu país. Os índios, por sua vez, foram cruelmente arrancados de sua pátria e forçados a morar em uma pátria alheia que, injustamente, está querendo se considerar fundamental aos povos indígenas como o é para os outros anistiados”.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

D. Pedro: somente o socialismo pode salvar os povos indígenanacionals

(Porantim – Manaus, ano II nº 12 – outubro de 1979, pgs. 8 e 9)

O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, no dia 30 de julho, por ocasião da III Assembleia Nacional do CIMI, concedeu uma entrevista à equipe do PORANTIM. Ele falou sobre a problemática indígena, condenou o sistema capitalista como maior responsável pela opressão dos povos indígenas e admitiu que a vitória do povo só chegará com a aliança dos setores oprimidos - operários, camponeses, índios – dentro de uma visão claramente socializadora.

Depois de enviar um recado para os índios destribalizados e os estudantes de Manaus, Dom Pedro considerou que a luta pela construção de uma sociedade sem classes é a única garantia de sobrevivência dos povos indígenas e que esta luta pelo socialismo é cristã e evangélica.

Ele fez ainda importantes colocações sobre Puebla, CIMI, abertura política, devastação da floresta, marxismo, ciência, ideologia e diversos outros assuntos, tentando situar o problema das nações indígenas como consequência de toda uma estrutura que visa única e exclusivamente o lucro e que, para tal, sustenta-se na exploração do povo.

Dom Pedro Casaldáliga considera o problema dos povos indígenas e o problema operário como partes de um único problema geral. “Sem uma verdadeira aliança de todas as camadas que são povo, não se vai conseguir a liberdade, a igualdade e a superação de classes que estamos pretendendo, porque a vitória do povo, sem uma visão socializadora ou socialista, não chegará e o resto serão apenas reformismo que não resolvem”.

Neste sentido, diz ele, “a luta indígena, a luta operária e a luta camponesa são uma luta só, enquanto luta do povo oprimido, marginalizado, sem voz e sem ver, classe utilizada, mão-de-obra barata, povo a serviço do lucro do capitalismo nacional e internacional”.

“Contudo, cultural, étnica e etnologicamente falando, temos que considerar que, em decorrência dos índios constituírem uma cultura à parte e diferente da nossa, essas têm algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Infelizmente, está se dando no mundo operário e mais ainda no mundo rural ou camponês, que é mais próximo do índio, o típico conflito índio x lavrador, índio x posseiro, índio x colono. É indispensável, portanto, um trabalho de conscientização quanto aos setores camponeses e operários sobre a causa indígena, de forma que seja uma conscientização esclarecedora, não se dando apenas a nível sentimental, mas principalmente a nível sócio-político e cultural-étnico”.

Dom Pedro fala de uma sociedade sem classes como única garantia para a sobrevivência dos povos indígenas. No entanto, essa garantia pode não ser suficiente, pois os setores que vão construir essa sociedade, têm que estar devidamente conscientes da existência de diferentes nações aqui dentro, visto que, infelizmente, até mesmo entre alguns setores de esquerda verifica-se um certo desprezo pela causa indígena, o que, segundo ele poderia gerar um tipo de proletarização coletivista, com tendência a uniformizar as etnias.

“Eu acho que se deve ter uma visão clara. Assim como acredito num tipo de socialismo internacional no sentido mais radical da palavras, porque países socialistas independentes não podem sobreviver. Defendo esse socialismo internacional que deve reconhecer e respeitar, em potencial, a diversidade das etnias e culturas. Seria, então, um só projeto sócio-político-econômico enriquecido humanisticamente por diferentes culturas que caminhariam juntas no mesmo processo”.

“Insisto em dizer que a luta dos povos indígenas é uma luta de oprimidos e marginalizados, não só a nível político-econômico, mas também e sobretudo a nível cultural. Portanto, todo tipo de aliança que se dê com a consciência e o respeito pelas culturas indígenas, e que se faça com uma vontade socializadora dos bens e da participação, será legítima e importante na salvação do índio e na sua sobrevivência futura”.

No que diz respeito às alianças, tanto a nível de Igreja, quanto a nível de intelectualidade e a nível de posição sacra, Dom Pedro considera indispensável a presença e a atuação das alianças indígenas. Ninguém de nós é e nem será povo – diz ele – ninguém de nós poderá substituir a tomada de consciência e a ação do povo. Mas nós podemos e devemos ser uma mediação científica, eclesiástica e cristianizadora, inclusive política e às vezes até mesmo econômica.

“Nesse sentido, as alianças têm um papel preponderante, sempre que não sejam excessivamente vanguardistas, não ficando por fora demais, porque deixariam de conhecer verdadeiramente a vida e as aspirações do povo, incapacitando-se, pois, de caminhar no seu ritmo. Perigoso pode ser tanto ajudar o povo de cima, quanto ajuda-lo de fora”.

Com referência mais específica ao papel dos estudantes na causa indígena, Dom Pedro Casaldáliga acredita que eles devem, em primeiro lugar, estudar a história deste terrível massacre continental, conhecendo suas causas e efeitos. Depois, diz ele, os estudantes devem fazer questão de viver constantemente informados sobre a problemática dos índios e a lutar para que se abra, na Universidade, um espaço indigenista de estudos, promoções, solidariedade, contatos e protestos.

“A classe estudantil deve procurar o quanto antes se engajar nos movimentos, conselhos, comissões e organismos de apoio à causa indígena”.

Abordando o problema da abertura, Dom Pedro afirma que ela deve ser política, econômica e social: “Que se abra a renda e a participação, pois o resto pode ser apenas uma abertura de blá-blá-blá, do tipo burguês, que satisfará certos níveis jornalísticos e certas rodas de centro esquerda, mas que não modificará a vida do nosso povo”.

“Eu tenho gravíssima restrição a uma abertura que nos é dada assim como esmola oportunista, a pedido do próprio capitalismo multilateral ou trilateral mais concretamente, que está precisando nessa hora de um regime um pouco mais ameno para impedir que se repita o que se deu na Nicarágua, por exemplo”.

Por um outro aspecto, Dom Pedro considera essa abertura também como algo que está sendo arrancado pelos setores populares e trabalhadores, apesar de reconhecer que a burguesia brasileira está tentando utilizá-la com outra finalidade.

“Evidentemente, quando eu digo que o capitalismo multilateral ou trilateral está exigindo desses governos uma passagem de uma ditadura militar para uma civil, eu estou considerando que foi a própria conjuntura não apenas internacional, mas as conjunturas dos vários povos da América Latina e do Terceiro Mundo, que tomando consciência, se organizando e “cutucando”, exigiram do seu “papai super nacional” que reconsiderasse as condições dentro da casa e fizesse algumas concessões. Dentro desta visão, parece-me que foi uma vitória do povo e das legítimas alianças populares”.

“Eu não digo que essa abertura não deva ser, entre aspas, agradecida, evidentemente não ao sistema, mas ao povo e a Deus. Ela deve ser aproveitada: nos abrem uma janela, entremos e façamos o que pudermos fazer. Eu peço apenas que não sejamos ingênuos e não esqueçamos que a janela pode fechar. Não pensemos que essa abertura significa uma colaboração desinteressada dos poderes econômicos, dos poderes da repressão e do governo que temos aí, porque nós sabemos que a transformação da nossa sociedade se não se dá a nível econômico, não se dá a nível nenhum”.

“Considerando-se o Socialismo como uma meta a ser alcançada, devemos crer que ele interessa aos vários setores oprimidos da sociedade, ansiosos por uma vida justa e condizente com sua condição de seres humanos”

Dom Pedro Casaldáliga acha que no Brasil são necessárias duas conversões, uma do etnocentrismo para o reconhecimento das culturas indígenas, e uma outra do capitalismo para o socialismo, sem esquecer, é claro de uma conversão plena e superior para o evangelho.

“Se eu não saio do meu etnocentrismo, mesmo sendo um socialista perfeito, não vou salvar os povos indígenas. Mas se sou um pluriculturalista, um antropólogo superfino e sou capitalista, também garanto que nada poderei fazer pelos índios”.

“É preciso, portanto, uma conversão econômica e outra cultural, acompanhadas de uma conversão conscientemente evangélica que, por sua vez, inexiste independente de uma transformação econômico-cultural”.

Dom Pedro Casaldáliga, apesar de reconhecer a necessidade de uma aliança entre índios, operários e lavradores, considera importante situar que os povos indígenas são povos específicos, não são povos brasileiros, se por Brasil entendemos o resultado de uma miscigenação. Ele afirma que se esse aspecto não for levado a sério, podemos cair numa atitude altamente perigosa.

“No que se refere à integração acho importante, quando muito, falar de inter-integração. Evidentemente que os povos indígenas de toda a América Latina, de um modo ou de outro, integrar-se-ão aos povos envolventes que os alcançam, mas para que sobrevivam na sua identidade, devem também integrar esses povos. Por isso é que eu falo em inter-integração”.

“O índio, sem sombra de dúvida, não é brasileiro”.

“Quando eu falo dos grupos indígenas frente às atuais nações latino-americanas estou falando de povos diferentes, mesmo lembrando e reconhecendo a miscigenação. Eu sei que o povo brasileiro atual é, em parte, fruto de sangue íbero, judeu ou árabe, mas nem por isso vou dizer que seja árabe ou judia”.

Parece-me que se antropológica, etnológica, cultural e politicamente não se tem consciência clara de que esses povos são outros povos, outras nações dentro do Brasil e da América Latina, não será possível salvá-las e superar esse período de massacre físico e genocídio cultural, pois caminharemos para um tipo de genocídio mais sofisticado que é a tal integração. Integrar é matar.”

Eu não sou tão ingênuo de pensar que as populações indígenas possam se manter virginalmente afastadas do contato ou do choque com outras culturas. Quero, no entanto, que se criem mecanismos para que sua identidade seja respeitada e para que, com legítima autonomia, elas possam se inter-integrar, ou seja, receber de nós o que acharem conveniente e nos dar coisas que podem nos ser extremamente úteis. Se assumirmos uma atitude colonialista ou nacionalista, não permitiremos que os índis sobrevivam”.

Dom Pedro Casaldáliga acha que uma saída para esse problema, ou pelo menos um primeiro estágio para que se conseguisse algo no sentido da inter-integração, seria o reconhecimento do Estado Brasileiro como um Estado multi-nacional, conforme propôs a Universidade do Amazonas, nessa Comissão interministerial que deve estudar a política florestal do governo.

“Talvez fosse dever do CIMI, que fala tanto em autodeterminação dos povos indígenas, ter colocado isso antes, mas não o fez, não por deixar de sentir o problema, mas por não ter encontrado ainda um clima apropriado para que não parecesse apenas uma romântica utopia”.

Eu insisto muito que a causa indígena ou é continental, ou não se salva. Devemos conseguir uma frente única ocidental para o reconhecimento das entidades culturais dos índios como povos diferentes e nunca como povos nacionais dentro desse ou daquele país”.

“Nesse nível continental, conseguimos também o apoio internacional: Nações Unidas (ONU), a melhor inteligência da Europa e o apoio mais apaixonado da Ásia. Somente assim, em termos de luta da opinião pública mundial, é que essa campanha que me parece cientificamente pura, legítima e politicamente certa, poderá ter garantias. Por esse motivo, eu insisto que em termos de Igreja, mais especificamente em termos de CIMI, sobretudo agora depois de Puebla, o nosso trabalho deve ir além fronteiras”

“Evidentemente ninguém pode imaginar que os vários povos indígenas dos quais estamos falando, possam sobreviver apenas por demarcar um área ou por citar uma certa consciência brasileira, se não se consegue jurídica e politicamente e com toda a força que está tendo em muitos setores, o valor das minorias étnicas, uma união de federações e confederações”.

“É claro, no entanto, que eu não espero esse reconhecimento de um Estado Brasileiro multi-nacional do nosso atual governo, porque na presente conjuntura, não depende nem mesmo dele essa definição”.

“O capitalismo internacional e mais concretamente trilateral ao qual nosso governo está submetido não admitiria sequer uma colocação dessa ordem. Como disse anteriormente, só um regime sócio, política e humanisticamente socialista poderia aceitar isso”.

No momento, acho importante que se lance a ideia de um Estado Brasileiro multi-nacional, pois ela não é apenas uma tese, mas é uma verdade fundamental por mais utópica e absurda que possa parecer. Acho válido que se escreva sobre o assunto, se discuta e se vá cbando da consciência dos melhores grupos do primeiro e segundo mundo, inclusive esses que têm vivido em sua própria casa, o problema das minorias étnicas, uma colaboração nesse sentido. Isso tudo é um processo que deve começar de modo intenso e breve a se desencadear”.

Dom Pedro Casaldáliga insiste em dizer que é incompatível com o capitalismo toda e qualquer medida que possa dar origem a uma sociedade melhor e, sobretudo, que possa favorecer a sobrevivência dos povos indígenas.

Ao referir-se ao problema da devastação da floresta, ele afirma que se faz necessária uma conversão ecológica. Mão em termos bucólicos, mas no sentido de uma transformação política e econômica.

- A natureza – diz ele – é lugar e instrumento básico do homem. Acabar com ela significaria deixá-lo de braços cruzados, pulmões fechados e olhos sem perspectivas.

A meu ver, esse desrespeito pela natureza é comum aos que não têm uma consciência sócio-política claramente socializadora. É incompatível, no sistema capitalista em que vivemos, uma exploração racional da floresta. O capitalismo nunca é racional, embora seja essencialmente técnico e racionalizado”.

Dom Pedro Casaldáliga afirma que o trabalho da Igreja cresce nas periferias sociais, junto ao povo oprimido e marginalizado. E define o que entende por povo:

“Quando me refiro a periferias, estou falando dos povos indígenas, dos operários e dos sub-operários, dos lavradores nas suas diferentes categorias: posseiros, colonos, peões, etc... e também dos negros. Todos nós estamos querendo reconhecer que no Brasil existe um racismo secular, prepotente e sofisticado. Como disse muito bem o Frei Beto, recentemente, “o grande estouro próximo deste país será a tomada de consciência e posição dos 30 milhões de negros que aqui vivem”.

“Dizem que a união faz a força. Então é a união dos pobres que fará a força da libertação”

Numa tentativa de explicar o constante estado de tensão entre catequese tradicional e a evangelização libertadora, ou ainda a existência de duas teologias: uma conservadora e a outra libertadora, Dom Pedro salienta que essencialmente há diferenças fundamentais entre catequese, evangelização e pastoral.

Para ele, a evangelização é anterior e concomitante a toda a catequese e toda pastoral. É o anúncio e o testemunho do amor salvador de Deus e Jesus Cristo, que não é necessariamente só de palavras, mas também de sacramentos, na hora certa, com uma metodologia própria e diferente para cada povo.

“Pastoral, por outro lado – prossegue – é o modo de evangelizar, de administrar sacramentos, de organizar o conhecimento da fé e a prática da vida cristã. Infelizmente há muita confusão entre evangelização e pastoral global, mais especificamente catequese, e mais concretamente sacramentalização. Essa confusão é que nos traz uma série de debates paralelos e conflitos sem saída”.

Com relação ao CIMI, Dom Pedro Casaldáliga considera-o o melhor acontecimento eclesiástico da história deste país/

“Posso ser muito contestado, mas asseguro que o CIMI tem sido a primeira pastoral de fronteira lucidamente organizada, que foi para as bases de um modo radical, conseguindo contestar seriamente a história da própria Igreja. Creio que demonstrou o quanto a causa indígena, que é uma causa perdida, pode ser salvadora. Esta nova pastoral indigenista está salvando a nossa pastoral”.

“A CPT e algumas comunidades de base também têm contribuído nesse sentido. No entanto, o CIMI deu à nossa Igreja a melhor atitude ecumênica que até agora se viveu nesse país, trabalhando com uma radicalidade que outros tipos de pastoral não têm e talvez nunca possam vir a ter”.

“Acho extremamente importante essa radicalidade, que é uma verdadeira obsessão pelo respeito sagrado ao índio e a suas culturas, porque ele encntra, com lucidez teológica e tato pastoral, uma atitude verdadeiramente católica bem posicionada sócio politicamente. Sem dúvida alguma, o CIMI exerce um fundamental papel de mediação entre a Igreja, a sociedade e os povos indígenas”.

A propósito de Puebla, Dom Pedro acredita que ela falou de tudo, de modo que possa ser entendido mais ou menos por índios os ângulos e setores. “Puebla foi como um super-mecado e cada um puxará dela o que quiser: uns puxarão cmida, outros detergente e outros apenas um perfume”.

“Mesmo assim, Puebla confirmou Medellin e a grande opção de Medellin pelos pobres. Nos falou de operários, camponeses, classes ou categorias marginalizadas desse continente”.

“Eu penso que a Conferência de Puebla falou da evangelização das culturas, o que mal entendido poderia ser uma grande complicação para a pastoral indigenista. Não se trata, no entanto, de somente evangelizar culturas, mas também de evangelizar estrutura. Quer dizer, destruir as estruturas de pecado e criar novas de fraternidade e igualdade realmente socializadora ou socialistas”.

“Se se tratasse apenas de evangelizar culturas, continuaríamos com o capitalismo esmagador e sua burguesia gloriosa, e estaríamos apenas colocando água benta em cima.

“A evangelização das culturas indígenas pode ser bem entendida como respeito total a essas culturas e mais especificamente às religiões. Ela consistiria, então, na atitude de levar aos índios a boa nova do evangelho e suscitar nelas a graça da fé, sem violentá-los eclesiasticamente em nome de um evangelho que, nesse caso, não seria nem supra cultural nem supra religioso”.

“Uma coisa é fé e outra é religião, que é a alma da cultura de um povo. Já há os que tem uma certa consciência etnológica a esse respeito, mas essa consciência é nova demais pois, infelizmente, nós todos ainda estamos submetidos a uma mentalidade excessivamente católica-romana-latina. Ninguém de nós, sobretudo em termos mais eclesiásticos, tem bastante liberdade de espírito para saber que o evangelho verdadeiro é supra-cultural e que a verdadeira Igreja deveria ser aquela de muitas religiões e uma única fé”.

“Eu falo muito numa espécie de entrelaçamento, que não se3ria só com outras Igrejas, mas dentro da própria igreja católica. Embora isso possa parecer um pouco impreciso teologicamente, não atinge nada do que seja realmente igreja de Jesus Cristo. Eu, ao afirmar isso, não estou negando o papa nem a estrutura hierárquica eclesiástica. Estou falando de uma manifestação uníssona de igreja que possa ser reconhecida em todo lugar, inclusive como católica. Peço que saibamos diferenciar bem o que é fé e o que é cultura e isso é uma carga histórico-cultural que a igreja carrega e que não deve ser imposta a outros povos, pois assim estaríamos praticando um verdadeiro etnocídio:

Explicando porque afirmou que a causa indígena é uma causa perdida, diz ele: “Em termos mais globais, a luta do pobre é perdida para a sociedade capitalista que tem como ponto de referência o lucro e o dinheiro”.

“Por outro lado, como luta cristã e evangélica, ela é também uma luta da redenção e da tomada de consciência da situação de marginalização, de cativeiro estrutural em que vivem os pobres e concretamente os índios. Só a partir dessa consciência e da fé no projeto de Deus que é o seu reino para os homens, um projeto de libertação plena e igualdade fraterna, é que se pode pensar em termos de uma causa humana e na vitória de uma causa humana”.

“Somente nesse sentido, o capitalismo cairá e com ele todo tipo de exploração. Eu creio na força do espírito de Deus mexendo e levando o homem a transformar a história cm sua vontade inata de libertação”.

“Creio também que uma radical mudança irá se processar a partir de todas as camadas pobres, esmagadas, oprimidas, e na América Latina, mais especificamente a partir dos povos indígenas”.

“Quando eu digo que a causa indígena é perdida e ao mesmo tempo salvadora, tento salientar a especial contribuição que o índio, pela sua própria cultura, tem a dar. Nessa sociedade sem classes, comunitária e harmônica que queremos implantar, ele tem algo de evangélico que a Igreja deve detectar e inclusive assumir e que, consequentemente, a sociedade americana, se quer ser comunitária e mais justa, deve assumir também”.

Diante dessa estrutura repressiva que se nos apresenta, Dom Pedro Casaldáliga acha que a atitude da Igreja deve ser sempre de livre pobreza. Diz ele: “Se eu não dependo de ninguém e não cobiço nada de ninguém, sou livre, falo e atuo segundo a minha consciência, a minha fé e as responsabilidades do Evangelho”.

“Penso, entretanto, que cada vez mais a Igreja, além de anunciar simplesmente, deve anunciar e denunciar dialeticamente. Não podemos apenas fazer algumas colocações, devemos fazê-las de modo dialético, mostrando e confrontando as causas, nos valendo de mediações culturais, sociais, políticas e econômicas”.

“Não tenho medo nenhum de usar a análise marxista, por exemplo, que é um instrumento atual e válido, como foram nas suas épocas respectivamente o platonismo e o aristotelismo”.

“Tenho às vezes a impressão de que os que têm tanto medo de usar essas mediações são os que tem pouca fé e estão com medo de perdê-la. Ou então, são os que não sabem distinguir o que é fé e o que é ciência. Quem não tem ideias claras não pode ter atitudes claras e, consequentemente, se encherá de medos, receios e ambiguidades”.

“Parece-me natural que alguém se pergunte pela minha fé cristã. Eu, no entanto, faço questão de dar testemunho dela, trabalhando e sendo fiel ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se alguma coisa está ficando cada vez mais clara para mim, é que o evangelho chega a todos, e que o primeiro e último grande mediador é Jesus Cristo, que nasceu pobre, marginalizado e na periferia, que enfrentou dialeticamente, até o sangue, as estruturas de poder político e eclesiástico que considerava falsas e contrárias à palavra de seu Pai”.

Sobre s 10 mil índios destribalizados que vivem em Manaus, Dom Pedro disse:

“Gostaria de pedir às legítimas alianças que possam se interessar por eles que forcem o que chamo de dupla caminhada. Em primeiro lugar, conscientizando-se de sua situação de explorados e marginalizados, em segundo lugar, vendo a sua marginalização cultural e em terceiro lugar conscientizando-se de que não estão apenas fora de sua cultura, mas fora de sua pátria”.

“Se esses índios não recuperarem a memória, a consciência nostálgica no sentido mais forte da palavra, não sobreviverão nem como povo nem como pessoas”.

“Esse duplo trabalho ou dupla caminhada e essa vontade de voltar á terra, não apenas prometida, mas que foi anteriormente possuída, é um caso desafiante, mas que pode se tornar um caso profético”.

Nesse sentido, de que os povos indígenas precisam voltar às suas pátrias, devemos considerar que eles também precisam de uma anistia ampla, total e irrestrita. Dom Pedro, no entanto, acha que a anistia ainda é pouca para eles:

“Concede-se anistia a alguém que é, por um motivo ou outro, encarcerado ou banido do seu país. Os índios, por sua vez, foram cruelmente arrancados de sua pátria e forçados a morar em uma pátria alheia que, injustamente, está querendo se considerar fundamental aos povos indígenas como o é para os outros anistiados”.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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