Louvado seja Nhanderu que, nesta terça (24), me poupou de ouvir a transmissão ao vivo do discurso inculto de Bolsonaro na ONU. No exato momento em que ele dava um show de barbárie e atacava com impropérios outros países e nações indígenas – Bolsonaro idjaywu rii waipá – eu estava refugiado na cidade de Tupã (SP), escutando a fala civilizatória dos Guarani, Krenak, Kaingang e Terena em defesa da humanidade, da vida, da natureza, da diversidade. Foi no Museu Índia Vanuíre, no VIII Encontro Paulista sobre Questões Indígenas e Museus, uma forma de celebrar 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas, conforme decreto da ONU.
Cerca de 323 pessoas se deslocaram de suas aldeias nas terras indígenas Vanuíre, Icatu e Araribá, no Oeste Paulista, e participaram do evento, que durou dois dias. Contaram experiências dos velhos, que foram proibidos de usar suas línguas ancestrais e narraram o que fizeram para recuperar a língua silenciada: atividades na escola, no museu e no cotidiano da aldeia. Crianças e jovens de 8 a 15 anos deram depoimentos auspiciosos sobre a revitalização. As mesas foram intercaladas com cânticos e danças, numa delas o velhinho aqui participou, ofegante, movendo o esqueleto.
Na abertura, o linguista Wilmar D’Angelis, da Unicamp, que acaba de lançar o livro “Revitalização de Línguas Indígenas”, destacou a função simbólica das línguas, inclusive daquelas que foram silenciadas e que agora estão sendo retomadas: “O que se deve fazer com uma ferramenta que perdeu o fio não é abandoná-la, mas afiá-la, torná-la cortante e necessária novamente”. A museóloga e educadora Marília Xavier Cury abordou o processo de descolonização e indigenização do museu etnográfico e este locutor que vos fala discutiu o lugar das línguas indígenas no museu.
Avós: a língua afiada
Foi aí que entraram os indígenas descrevendo como afiaram a língua:
– Para nos destruir, proibiram que a gente falasse Borun, meu pai apanhou muito porque não obedecia – disse Helena Damasceno, Krenak, que só aos 30 anos voltou a usar sua língua no cotidiano, com ajuda de um gravadorzinho, caneta e caderno. Casada com um falante de Kaingang, ela aprendeu esta língua com sua sogra. Seus cinco filhos falam Borun, Kaingang e Português: “Somos como capim tiririca, quando pisam fica amarelo, mas depois renasce e se reproduz”.
Cândido Mariano, Terena, 66 anos, cuja mulher é Kaingang, quando chegou em SP só falava Terena e sofreu muito para falar português. Lucilene Kaingang disse que a vó Jandira é sua eterna professora. Dirce ensina Kaingang para crianças que hoje estão com celular na mão. Lidiane usa o vocabulário unificado Português-Krenak do séc. XIX editado pelo Projeto de Revitalização coordenado pela antropóloga Juracilda Veiga. Susilene conversa em Kaingang até mesmo com bebé recém-nascido.
O papel das avós parece crucial na recuperação da voz ameríndia, conforme relatos de algumas delas. Maria Rita Rodrigues conta histórias para suas três netas na língua Kaingang. Claudete Lipu só fala com os netos em Terena, que é entendida, mas não falada por seus filhos. Gleyser Marcolino, ao contrário de suas duas filhas, “não fala de berço” o Guarani Nhandewa, que aprendeu nas celebrações tradicionais religiosas.
– O Português é dominante na mídia, no supermercado e por onde você anda, por isso o Nhandewa deixou de ser primeira língua de muitos Guarani, que agora a estão aprendendo como segunda língua – disse Tiago de Oliveira, professor na escola da Aldeia Nimuendaju. Ele usa o método “Soletrando na língua guarani” para ensinar as crianças a ler e escrever. Seu colega Vanderson Lourenço vai na mesma direção com a palavra de ordem “Nheengatu sim!” como resposta à proibição da língua desde o Marquês de Pombal.
Futebol feminino
Os depoimentos das crianças e jovens reverenciaram as guardiães da língua: – Minha avó Deolinda é meu dicionário – disse Camila Kaingang. – O que aprendemos com as avós não tem nos livros – afirmou Kaline, que não conseguiu prosseguir sua fala porque chorou com a lembrança da avó Nhandewa recém falecida.
Creiles Nunes, vice-diretora da Escola Nimuendaju, com 14 anos de magistério, relatou que ouvia histórias de sua avó Awá Poydju, falecida aos 115 anos. Hoje, ela ensina o que aprendeu contando histórias, em rodas de conversa, no acampamento cultural, cantando, rezando e até em atividades culinárias e troca de receitas de comidas típicas e de preparo de ervas medicinais.
– Não sei falar fluentemente o Nhandewa, mas estou afiando a língua com as meninas que jogam futebol feminino dentro da escola. Os comandos são todos em nossa língua que as adversárias não entendem: Emboatsa Txupe (passa a bola pra ela), Edjopy (aperta a marcação), Enupã (chuta, bate forte).
Muitas situações comunicativas, corriqueiras e familiares, foram criadas dentro e fora da sala de aula, de forma a suscitar interesse e exercitar práticas sociais e lúdicas na língua ancestral. – Na escola, até para ir ao banheiro ou beber água, temos que pedir em Borun – falou Gabriel Krenak. A revitalização começa na escola, mas não pode ficar restrita a ela, se espalha pela aldeia que é uma grande escola de línguas e se consolida no museu – disse Lidiane, professora da aldeia Vanuire.
Os museus
A valorização das línguas e das culturas vem sendo trabalhada por cinco museus indígenas no Oeste Paulista: Museu Worikg Kaingang e Museu Akãm Orãm Krenak, ambos na T.I. Vanuire, Museu Nhandé Manduá Rupá na Aldeia Nimuendaju, Museu Ekeruá Terena na T.I. Araribá e Museu de Icatu Kaingang e Terena: “Dois povos, uma luta”. Uma mesa formada por indígenas e mediada pela museóloga Marília Cury discutiu a relação desses museus de território com a língua.
– Nossa cultura estava adormecida, o Worikg, no coração da aldeia, ajudou a despertá-la – comentou Lucilene Kaingang, gestora do Museu. A professora Dirce explica as peças na língua Kaingang e caminha pela trilha com os alunos para ensiná-los a respeitar a natureza.
A mesa de encerramento – A língua indígena na pauta dos museus – contou com José Carlos Levinho, diretor do Museu do Índio (Funai-RJ), Marília Cury, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Lidiane Damasceno Cotui, professora da T.I. Vanuire, Andressa Anjos de Oliveira e Valquíria Cristina do Museu Índia Vanuire.
As falas indígenas revigoraram as esperanças na luta contra a bestialidade, que desrespeita um líder da estatura de Raoni, agride a natureza, a ciência, o meio ambiente e a cultura, manipulando uma índia que não representa nem ela mesma.
Meu Deus do céu, como foi vital estar entre os índios para não adoecer com o discurso fedorento e mentiroso dirigido aos porões da fábrica de fake News. Com a humanidade envergonhada, escrevi três frases em português e pedi a meus amigos guarani para traduzi-las: Bolsonaro Pinochio, idjaywu tse wa. Também o grito da torcida no Maracanã exigindo que o atleta que joga mal peça para sair: Bolsonaro, etsẽ tereó ka’a. É isso aí: Bolsonaro, etũ nderewikwá.
P.S. – O VIII Encontro Paulista sobre Questões Indígenas e Museus foi organizado pela ACAM Portinari, dirigido por Angélica Fabbri e pelo Museu índia Vanuire, gerenciado por Tamimi Borsatto.