- “É algo que pode acontecer” – admitiu Sérgio Moro, ministro da Justiça, comentando três dias depois o fuzilamento do músico Evaldo Rosa por soldados do Exército, que dispararam 80 tiros no carro da família a caminho de um chá de bebé, em Guadalupe, no Rio. Além do morto, dois feridos: o sogro do músico e um pedestre que tentou ajudar as vítimas.
- “Isso não pode acontecer” – berrou dona Diquinha, recatada e do lar, paroquiana do bairro de Aparecida, em Manaus, depois que um soldado da Polícia Militar, montado a cavalo, quebrou a clavícula do Taturaia, um menino de 8 anos que brincava no Beco da Escola no início da década de 1950. Sua reação inusitada foi dar uma surra de terço no policial.
Afinal, a violência institucional contra cidadãos indefesos é algo que pode ou não pode acontecer? Vejamos os argumentos de Moro no presente e de Diquinha, no passado.
Morosidade
O ex-juiz da lava-jato e agora ministro da Justiça e da Segurança Pública do Governo Bolsonaro, embora tenha admitido o “incidente bastante trágico”, se enrolou todo sustentando que “lamentavelmente, esses fatos podem acontecer”, e que as pessoas não são treinadas para que isso aconteça, “mas tendo acontecido, o que conta é o que as autoridades fazem a esse respeito”.
E o que ele fez como autoridade que é? Calado ficou, como aliás todo o governo. Somente três dias depois do assassinato do músico, provocado pelo entrevistador Pedro Bial em um programa de TV, Moro respondeu que “se houve ali um incidente injustificável em qualquer espécie, o que aparentemente foi o caso, as pessoas têm que ser punidas”. Falou no condicional: “se houve” o “incidente. Foram 80 balas que ceifaram a vida de um honrado pai de família. Incidente? Cuidadoso, não quer condenar sem provas, pelo menos neste caso, para evitar “rugas” com o Exército. No frigir dos ovos, as aparências podem enganar.
Somente cinco dias depois do crime, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, se pronunciou no mesmo sentido para dizer que “deve haver punição se houve erro”, mas afastou qualquer possibilidade de prestar assistência ou auxílio financeiro aos familiares do músico assassinado. Oitenta tiros no fuzilamento de um homem de bem e os dois ministros aventam a possibilidade de não ter havido erro. Realmente não houve erro. Houve assassinato, crime.
O Comando Militar do Leste havia soltado uma primeira nota no domingo com explicações fantasiosas de que os soldados teriam resistido ao ataque de bandidos armados dentro do carro. Parecia que ia prevalecer o alargamento do “excludente de ilicitude”, que trocado em bom português significa dar ao policial a prerrogativa de assassinar sob uma situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Neste caso, o militar sob “forte emoção”, deve ser perdoado – é o que defendem Jair Bolsonaro, Sérgio Moro e o governador do Rio, Wilson Witzel.
- Não me cabe fazer juízo de valor – disse ao Globo o governador e ex-juiz Witzel, que tirou o loló da seringa, recusando-se a comentar o crime.
“O Exército não matou ninguém” – disse o presidente Jair Bolsonaro seis dias após o assassinato, justificando: “O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino não” (FSP, 13/04). Diante de tal silogismo com essas premissas, Descartes tremeu em seu túmulo na Abadia de Sainte-Geneviève, em Paris. Se é certo o “Ego cogito ergo sum”, logo Bolsonaro não existe.
A tendência dominante no governo parecia ser aquela baseada na declaração de Jair Bolsonaro, em outro contexto anterior ao crime, quando declarou no Programa Câmera Aberta da Band: “Se vai (sic) morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente” (sic).
Surra de rosário
Morreu mais um inocente, pois o delegado Leonardo Salgado, da Delegacia de Homicídios, desmontou a nota do Comando Militar do Leste. Era uma farsa. Foi então que a Justiça Militar curvou-se às evidências e expediu mandados de prisão contra nove dos dez militares presos pelo assassinato do músico. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva deu a única declaração decente de uma autoridade: “Vamos apurar e cortar na própria carne”. Será que a Justiça Militar vai seguir o exemplo de dona Diquinha?
Vão dizer que pareço Bozena, a empregada do programa de tv “Toma lá dá cá”. Diante de qualquer fato, ela jura que algo similar já ocorreu em Pato Branco (PR). Que culpa tenho se o Brasil inteiro cabe no meu bairro, que já viveu tudo o que acontece ou ainda vai acontecer no planeta? O que vou narrar teve como palco o bairro de Aparecida, em Manaus. Taí o Tuta, meu irmão, testemunha ocular da cena, que não me deixa mentir. Ou deixa?
Durante o governo Álvaro Maia (1951-1955) no Estado do Amazonas, cada dia, ao cair da tarde, uma patrulha de soldados da Polícia Militar galopava furiosamente em seus cavalos pelos estreitos becos e ruas dos bairros pobres da cidade, semeando o terror em crianças e jovens que buscavam o espaço público para se divertir. Era uma demonstração de força e de poder. Quem resistia era levado preso na “manduquinha”, o “camburão manauara”.
- Lá vem a cavalaria! – alguém avisava quando ouvia o tololoc-tololoc. Todo mundo corria e se escondia em suas casas. Num dia, uma cavalgadura invadiu o Beco da Escola e deu um coice em um menino de 8 anos, o Taturaia, que brincava de cangapé atrás do Grupo Escolar Cônego Azevedo. Com a clavícula quebrada, a criança urrava de dor.
Dona Diquinha, uma robusta zeladora do Apostolado da Oração da Paróquia de Aparecida, guardava pendurado na parede de quarto de dormir uma relíquia que ganhara no Primeiro Congresso Eucarístico Diocesano de Manaus, em 1942: um enorme rosário artesanal, cujas contas eram formadas por caroços de pupunha. Ela aproveitou que o policial caiu do cavalo e, empunhando o rosário como se fosse um chicote, deu-lhe uma surra dolorosa, gozosa e gloriosa, contemplando todos os mistérios do terço.
- Calma! Acidentes acontecem – contemporizava o seu Belarmino, marido de dona Diquinha, tentando neutralizá-la. Ela não ouviu o seu côn-ju-ge:
- Isso não pode acontecer – revidou, enquanto desferia chibatadas com o terço-chicote. Rezou pelo menos 150 ave-marias no lombo do meganha, que se escafedeu, descapirotizado. Desse dia em diante, a cavalaria não voltou mais a patrulhar o bairro de Aparecida, que pôde brincar e dormir em paz. Seus moradores agradeceram a Nossa Senhora do Rosário, de quem dona Diquinha era devota. Nunca um terço foi tão bem rezado. A “terçada” ocupou a primeira página do Diário da Tarde e foi o assunto dominante na banca de tacacá da dona Alvina. Foi ali, naquele bequinho estreito de um bairro pobre da Amazônia, que dona Diquinha deu uma lição de solidariedade e de revolta contra todo tipo de injustiça. Falta útero roxo a muita gente para se posicionar contra crime tão abominável que brada aos céus e clama a Deus por justiça..
Eis o que eu queria dizer. Nem o presidente, nem os seus ministros esboçaram qualquer gesto de solidariedade aos familiares do músico pela perda, o que torna trivial o crime hediondo. “É algo que pode acontecer” – disse o ministro da Justiça, referendado pela ministra dos Direitos Humanos, banalizando a violência, quando ambos são pagos por nós para evitar que isso aconteça. Os titulares das duas pastas que deviam cuidar da justiça, dos direitos humanos, da vida não formularam nenhum juízo ético de valor.
Uma surra de terço, ainda que inusitada, também “é algo que pode acontecer”. Bem-aventurada dona Diquinha com sua fome e sede de justiça. É o caso de exigir: ministro, leia a vida da dona Diquinha, é fácil para quem é devorador de livros de biografias. Aprenda. Seja menos Moro e mais Diquinha. Quem merece uma surra de terço é o ministro leniente, para ver se o Capetão, de quem ele puxa o saco, desencarna do seu corpo.