Líderes revolucionários de vários países provocaram o júbilo de seus seguidores ao divulgarem seus pensamentos em livros de bolso, sempre identificados por uma cor simbólica: “O pequeno livro vermelho” de Mao Tse Tung na China, “O livro verde” de Kadhafi” na Líbia, “El libro azul” de Hugo Chávez, na Venezuela, cujo título na capa, por coincidência histórica, é o mesmo com que ficou conhecido o do general Juan Velasco no Peru. Todos eles morreram, mas deixaram o registro escrito para a posteridade.
No Brasil, suspeito que 57 milhões de eleitores, incluindo aqueles com pouca prática de leitura, gostariam de exibir um livro com as ideias do capitão Jair Bolsonaro, em quem votaram para presidente da República. Falta apenas escolher as frases mais transcendentes e definir os temas e a cor. Se o Queiroz depositar um cascalho na conta de alguma editora louvaminheira, a publicação poderá sair inspirada nos livros aqui citados.
De Mao a Piao
O primeiro deles conheci no Chile, em 1970, quando meu amigo titiriteiro Euclides Souza me deu um exemplar, com a coletânea de citações de Mao selecionadas por Lin Piao, ministro da defesa, numa época em que a China ia de Mao a Piao. Editado pelo Exército Popular de Libertação, em 1961, com capa vermelha, em apenas dez anos já havia sido traduzido a mais de 50 línguas e circulava em cem países, com quase dois bilhões de cópias, tiragem só equiparável à da Bíblia. Era uma espécie de catecismo, de texto sagrado, cujo autor venerado governou a China por 27 anos (1949-1976).
Dividido por temas, o livro reproduz frases de discursos do “Grande Timoneiro”, que ensinava a distinguir a contradição principal da secundária e tinha respostas para tudo, resolvia qualquer problema, curava frieira, sarna e curuba. Usado como arma revolucionária, o pensamento do camarada Mao, com forte apelo retórico, ajudou veterinários a castrar porcos e inspirou camponeses a proteger plantações do granizo. Era uma “bomba atômica espiritual”, que funcionava, não apenas na China, como critério de verdade. Seu autor não tinha medo de subir em goiabeira para tirar goiaba branca.
O livro verde
Foi em Mao que se inspirou “O livro verde” de Mouammar El-Kadhafi editado em 1975. De uma visita à Trípoli, o jornalista gaúcho Jeferson Coronel me trouxe um exemplar, numa edição que, como numa telenovela, tinha segunda parte (1977) e até uma terceira (1981), com as reflexões do “Guia da Revolução da Líbia”, que em 1969 derrubou o rei Idris I e ficou no poder até 2011, quando foi assassinado. Por haver permanecido 42 anos dando as cartas, esse filho de um pastor de camelos, com educação beduína, ficou conhecido como “Rei dos Reis”.
O coronel Kadhafi – o Cabo Daciolo do deserto - jurava que cumpria “missão divina” e que era instrumento de Alá. Expulsou norte-americanos e fechou suas empresas, bordeis e bares. A “sociedade ideal” para ele era a mistureba do nacionalismo árabe com o “socialismo utópico”. Depois pediu penico a George W. Bush, que revogou as sanções contra a Líbia. Aí, o “Líder Fraternal” reprimiu manifestações, prendeu, torturou e matou opositores, contrariando o Livro verde, que defendia o Estado das massas (jamahiriya) e rejeitava o “capitalismo explorador” e o “comunismo materialista”.
Libros azules
Aliás, “nem capitalismo nem comunismo” era justamente o lema do livro azul do general Juan Velasco Alvarado, a quem ouvi pela primeira vez em setembro de 1968, quando cobria para O Paiz a VIII Conferência dos Exército Americanos, na Urca, Rio de Janeiro. Ele era ministro da guerra de Belaúnde e surpreendeu a todos com discurso que criticava a ingerência dos Estados Unidos nos países soberanos das Américas. Uma semanas depois liderou um golpe, assumindo o poder de 1968 a 1975. Expulsou e nacionalizou as empresas petroleiras americanas, criando a PETROPERU.
O livro azul reúne trechos de seus discursos, alguns dos quais escritos com assessoria de Darcy Ribeiro, exilado em Lima. Um deles, anunciando a reforma agrária, terminou com o lema do emblemático Tupac Amaru: “Campesino, el patrón ya no comerá más de tu pobreza”. Expropriou terras do latifúndio, nacionalizou mineradoras, transformou em cooperativas fazendas açucareiras, tomou os jornais de seus proprietários e os entregou às organizações sindicais. Foi derrubado por golpe do seu ministro Morales Bermudez e aí “tudo voltou a ser como dantes no quartel de Abrantes”.
Na Venezuela, Hugo Chávez, “Comandante de la Revolución Bolivariana”, editou “El Libro Azul”, um texto de 50 páginas, onde expõe sua doutrina cívico-militar. O livrinho de bolso, cuja primeira edição é de 2007, abre com a frase que Simon Bolívar gostava de citar: “Ou inventamos ou erramos”. O tenente-coronel Hugo Chávez inventou algumas vezes, errou outras, em 14 anos no poder (1999-2013). No prólogo, seu sucessor Nicolás Maduro aconselha “todo patriota venezuelano a ler o livro, que traz profecias a serem realizadas no futuro do século XXI”.
O livro do Bozo
Ancorado em tais experiências, o capitão de artilharia paraquedista Jair Bolsonaro certamente escolherá a capa verde-amarela, já que o azul está gasto, o rosa não faz seu gênero e ele foge do vermelho como o diabo foge da cruz. Organizado por temas, o prólogo pode ser escrito por Alexandre Frota, ex-ator pornô. Convém uma tiragem de milhões de exemplares para que cada um de seus eleitores desfrutem as pérolas nele contidas. É uma oportunidade para o ministro da Educação distribuir o livro do Bolso em toda as “escolas sem partido” para testar a compreensão dos alunos alfabetizados pelo método fônico.
São muitos os temas abordados pelo pensamento luminoso do capitão-presidente, entre outros, índios, negros, quilombolas, gays, racismo, educação, mulheres, aborto, estupro, segurança pública, tortura, religião, imigrantes, direitos humanos, relações exteriores, congresso, corrupção. Economia não, que isso não é com ele. O admirável é que ele tirou tudo isso de sua própria cabeça, não cita ninguém, até porque nenhum pensador de renome pensou o que o capitão pensa. Suas sagazes reflexões são todas inspiradas em vivências pessoais e não no lixo marxista acadêmico.
Trata-se de um intelectual pós-moderno, que começa a se construir no país e que, guardada as diferenças históricas, se ombreia com um Michel de Montaigne em seus “Ensaios”. Por se tratar de obra aberta, em construção, sugiro que seus (e)leitores selecionem aquelas frases com as quais mais se identificam, todas elas públicas, enunciadas durante sete mandatos de deputado federal, entre 1991 e 2008, e agora como presidente da República. O lugar de fala é, portanto, de um representante do Poder, não é papo privado de botequim, como às vezes o tom coloquial pode sugerir.
Aqui vai um aperitivo, apenas 15 frases contextualizadas, bastante conhecidas, mas que merecem ser lidas e relidas por nos ajudarem a entender esse Brasil brasileiro. São de uma transparência espantosa. Tenho certeza que por seu conteúdo humanista, sua visão sobre a diversidade e a alteridade, despertam o orgulho nos que o elegeram e sabiam em quem estavam votando.
Mulheres
1 “Eu jamais ia estuprar você porque você não merece” (À deputada Maria do Rosário do PT-RS. 2003 e 2014).
2. “Não empregaria [homens e mulheres] com o mesmo salário. Por isso o cara paga menos para a mulher (porque ela engravida)” (Jornal Zero Hora e Rede TV 2014).
3. “Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher”. (Sobre seus cinco filhos, em palestra no Clube Hebraica 2017).
Gays
4. “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele. Tá certo?” (TV Câmara, contra a Lei da Palmada 2010)
5. “Para mim é a morte. Digo mais: prefiro que morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. (Sobre a possibilidade de ter um filho homossexual. Revista Playboy 2011).
Índios e quilombolas
6. “Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”. (Na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, ao se referir ao sateré-mawé Ga’p Wasay, Jecinaldo Barbosa Cabral, presidente da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira 2008).
7. "Não terá um centímetro quadrado demarcado. Eu tenho falado que, no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena", (TV Band. Programa Datena. 2018)
9. Fui num quilombola [sic] em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”. (Palestra no Clube Hebraica 2017)
Ditadura e tortura
10. “O erro da ditadura foi torturar e não matar” (No Clube Militar em 2008 e na Rádio Jovem Pan 2016).
11. “Pau de arara funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também”. (Entrevista a TV Band, 1999).
12. “Morreram poucos. A PM tinha que ter matado mil”. (Sobre o massacre do Carandiru. Entrevista. 1992)
13. “No período da ditadura, deviam ter fuzilado uns 30 mil, a começar pelo presidente Fernando Henrique, o que seria um grande ganho para a Nação. O único erro foi torturar e não matar. Pinochet devia ter matado mais gente” (1999, TV Bandeirantes.)
Imigrantes
14. “A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver”. (Jornal Opção. Goiás. 2015)
Oposição democrática
15. “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. (Discurso transmitido em telão da avenida Paulista, uma semana antes da eleição. 2018).
16. "Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra que se mude. As minorias terão que se curvar para as maiorias. (Encontro na Paraíba, fevereiro de 2017).