Sexta-feira santa. Consultório da Policlínica Regional Sérgio Arouca, em Santa Rosa, Niterói. Depois de um exame minucioso, a médica pousou a mão direita sobre o meu ombro e, em tom solene, sentenciou:
- As petéquias não deixam a menor dúvida! É dengue!
Entrei em pânico. Dengue, por si só, já é algo aterrorizante. Ainda mais com petéquias, seja lá que diabo isso for. Com certeza, coisa boa não é. Rima com exéquias, o que me fez sentir, na hora, o cheiro de flor de caixão de defunto. Era como se eu estivesse subindo, pela última vez, o boulevard Amazonas.
- O que há de errado com minhas petéquias? - gemi desesperado, sem imaginar que o pior ainda estava por vir. Depois de indicar os pontos vermelhos em meu corpo, a doutora enfiou uma lanterninha dentro das minhas fossas nasais. Futucou, futucou, e falou:
- Não estou gostando nadinha do que estou vendo.
Foi aí, então, que ela deu a sentença, fulminante e inapelável, pingando três pontos de exclamação:
- Epistaxe!!! Você está com dengue hemorrágica!!!
Dengue? Vá lá! Hemorrágica? Confio na reza das minhas irmãs! Mas, poxa, com petéquias e epistaxe emelecada, assim é demais. É terrorismo. Me senti com o pé na cova. A palavra-bomba é pior do que o homem-bomba ou o carro-bomba, porque explode em mil estilhaços a segurança da gente. Foi o que aconteceu. Nesses 60 anos de convívio amoroso com a língua portuguesa, jamais havia ouvido alguém detonar essas duas palavras. Não sabia sequer de sua existência no léxico terrorista. Agora, elas estavam acabando comigo. Para desarmá-las, era preciso entender o seu significado.
A prova do laço
Com febre altíssima, me doía tudo: cabeça, olhos, articulações, músculos, alma. Parecia que um caminhão havia passado por cima do meu corpo combalido. A médica viu que suas palavras agravaram minha agonia. Procurou me tranqüilizar, pedindo exames laboratoriais: hemograma completo, eritrograma, leucograma e hematoscopia.
- “Vai ter que colher sangue” – disse, como se sangue fosse uma flor que se colhe assim, poeticamente, sem mais nem menos, sem um espinho pra te espetar o dedo.
Mas não é bem assim, como sabem muito bem os homens da minha família, todos –digamos assim – sensíveis à dor. Quer dizer, frouxos mesmo. A simples menção a sangue provoca desmaios em nossas fileiras. Um primo, secretário municipal de educação em Manaus, entrou em coma cagareopótico por causa de uma injeção na bunda. O caso mais patético é o do meu sobrinho Paulinho Kokay. Quando a avó aprontou a seringa, ele começou a berrar como um porco que vai ser sangrado. Seu tio Tuta tentou tranqüilizá-lo. Na hora da picada, Kokay rebateu com um grito que ainda hoje ecoa no Beco da Bosta:
- Ai, Tutinha, me beija! Tutinha, me-beija, me-beija, me-beija!
Faz sentido. Diante da ameaça de enfiarem uma agulha pra tirar sangue das tuas veias, tem de haver alguma forma de compensação. Nada mais reparador do que um beijo. Por isso, nessa sexta-feira santa, quando a médica determinou a coleta de sangue, meu primeiro impulso foi gritar:
- Ai, enfermeirinha, me-beija, me-beija!
Com um histórico familiar desse, qual era a alternativa que eu tinha?
A epistaxe não havia sido suficiente. Decidiram me submeter ao que chamam de ‘prova do laço’, para confirmar se era mesmo dengue hemorrágica. Pegaram aquela faixa que serve pra tirar a pressão, enrolaram em torno do meu braço direito e pressionaram a bombinha – fu! fu!, fu! - até fazer um torniquete, impedindo a passagem de sangue. Fiquei, imobilizado, cinco minutos. Quando a mão já estava ficando preta, esvaziaram a faixa acolchoada. A enfermeira ficou impressionada:
- Sônia, vem ver as manchas.
- Não, Adriana. É impressão tua. É natural.
Fizeram uma junta médica para discutir meu caso. Adriana tentava convencer Sônia de que as manchas de sarampo no meu braço indicavam claramente que se tratava de dengue hemorrágica. Sônia tinha dúvidas. Tentei interferir no diagnóstico, murmurando, quase desfalecido:
- “Adriana, pelo amor de Deus, colabora com a Sônia”.
O teste do beijo
Diariamente, ao longo da semana, fui obrigado a fazer exame de sangue pra controle das plaquetas, que chegaram a baixar a 60 mil. Pinicaram meu braço, que ficou todo esburacado como uma peneira. Enfiaram agulha nas veias das mãos para aplicação diária de soro. Conto tudo isso não por querer posar, merecidamente, de herói para a família e os amigos, mas para te explicar, leitor (a), porque a última crônica não saiu com o testamento de Judas. É que eu estava prostrado pela dengue.
Aliás, não sei mais se fui eu que peguei dengue ou se foi a dengue que me pegou. Metade da população de Niterói se enquadra no primeiro caso, a outra metade no segundo. Não escapou nem o próprio diretor da Policlínica Santa Rosa, doutor Oto. Os postos de saúde, em plena semana santa, pareciam hospitais de campanha, com filas enormes, gente espalhada por todos os cantos, gemendo e chorando nesse vale de lágrimas, bebendo um soro horroroso que era distribuído, como se fosse champagne, em copinhos de plástico.
- Não querem divulgar o surto por causa do PAN - confidenciou, num tom misterioso, um feirante, que tomava soro na veia, a meu lado, numa enfermaria improvisada. Como estávamos nos encontrando diariamente, se formou uma espécie de ‘confraria dos dengosos’. A gente já se sentia como uma grande família, comemorando quando os exames registravam o aumento de plaquetas, que era mais esperado que o milésimo gol do Romário.
A dengue é uma doença miserável. Mina as nossas forças. Desmoraliza. No entanto, a forma de tratá-la pode diminuir o prejuízo. Na Policlínica Santa Rosa, da Fundação Municipal de Saúde de Niterói, médicas, enfermeiras, auxiliares e até o pessoal da limpeza – todas elas mulheres, para a minha glória - fazem o seu trabalho com profissionalismo e alegria. Em nome dos dengosos, deixo aqui meus agradecimentos a todas elas: Ana Paula Schuawb, Maria José, Janaína, Adriana, Célia, Sônia, Mercedes, Rose. A dedicação delas funcionou de forma tão reconfortante como o beijo implorado pelo Paulinho Kokay.
P.S. - O Capiroto vem aí. Deu entrevista a uma rádio local: “Vou para os bairros, vou para o meio do povão, vou jogar dominó, comer jaraqui frito com o povo, vou cheirar pó. Meu jeitão é de povo, estou sentindo falta disso, sou um homem simples, não sou de luxo, vivo numa casa de madeira”. O Negão é, definitivamente, um artista. Canastrão, mas artista. Valei-me, meu São Serafim! Livrai-nos do Capiroto e de todo o mal, amém.
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