Para Carmen e Betty, eternas gatinhas.
O ex-quase-futuro ministro Carlos Marun (PMDB-MS vixe vixe), puxa-saco rebolativo da tropa de choque do Temer-Cunha e o deputado presidiário Celso Jacob (PMDB/RJ vixe), contrabandista de queijo provolone na cueca, deviam ser tema desta coluna semanal. Felizmente nos livramos de figuras tão abjetas graças a dois livros. Um deles, da antropóloga Betty Mindlin, acaba de ser publicado – Crônicas Despidas e Vestidas. O outro, da escritora e jornalista Ana Helena Tavares, está quase no prelo e só sai em 2018. Quem faz a ponte entre eles é o nosso D. Pedro.
D. Pedro I ou II? Nenhum dos dois. O Pedro, que é “nobre”, não nos pertence. O nosso é o “pobre”: Pedro, o único. Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Felix do Araguaia, de 89 anos. Sua biografia – Um bispo contra todas as cercas – está sendo finalizada pela autora, que me procurou por causa da entrevista que fiz em julho de 1979 para o jornal Porantim. O título, em plena ditadura, berrava: “SÓ O SOCIALISMO PODE SALVAR OS POVOS INDÍGENAS”. Lá, D. Pedro propõe “destruir as estruturas do pecado e criar novas formas de fraternidade e igualdade”.
Compartilhei com Ana Helena o livro de Betty Mindlin, dividido em duas partes. As crônicas despidas “dedicadas a povos que não cobriam o corpo em tempos antigos”, contêm narrativas míticas, reflexões sobre formas de circulação da memória e de preservação do patrimônio, depoimentos sobre a luta indígena, umas travessuras cometidas em favor dos índios e textos sobre a música dos Wari – os Pakaa-Nova e sobre a melodia amorosa dos Ikolen de Rondônia, conhecidos como Gavião.
As travessuras
Entre as traquinagens, Betty conta a audiência que teve, em 1984, com o então presidente da Funai, Jurandyr Fonseca, para solicitar que examinassem juntos o laudo antropológico elaborado por Ana Lange – um dossiê com farta documentação que justificava a demarcação da terra nambiquara e que lhe havia sido entregue no mês anterior.
- Ainda não recebi o laudo e nem sabia de sua existência. Teremos que esperar até que me seja enviado – mentiu o Jurandyr Fonseca, perna fina e boca seca.
Nisso, a secretária o chamou para que atendesse um telefonema na outra sala. Betty aproveitou para abrir a gaveta do "Boca Seca" e lá estava o volumoso dossiê. Ela não contou com conversa: retirou o catatau de papel e quando o mentiroso chegou lhe disse:
- Presidente, que pena não estar na Funai o documento. Mas eu trouxe uma cópia. Vamos examiná-la?
Outra crônica reproduz um depoimento desgarrador de Pedro Arara Karo, que faz parte do Arquivo Sonoro Aramirã, da autora, em parte digitalizado, com registro de vozes indígenas, cuja cópia merecia estar no Museu do Índio/RJ. O Arara narra como achou no meio da floresta o cadáver do jornalista e indigenista Possidônio Cavalcanti Bastos, de 22 anos, um menino alegre e sorridente com quem trabalhei, em 1968, no jornal O PAIZ, morto com três flechadas e dois tiros: “a cabeça dele, você pegava, parecia milho no papo da galinha. Ficou todo moído”. Detalhes podem ser encontrados também no livro Os fuzis e as flechas de Rubens Valente. Possidônio, hoje nome de avenida em Recife, deixou o jornalismo para trabalhar com os índios, na FUNAI.
O que aqui interessa, porém, à biógrafa de D. Pedro está nas crônicas vestidas, que falam de personagens marcantes na vida de Betty, especialmente aquela em que relata como conheceu D. Pedro e D. Tomás Balduíno, pilares do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Foi num curso de indigenismo ministrado, em 1976, em Goiás Velho, pela antropóloga Carmen Junqueira, que então era sua orientadora de doutorado na PUC/SP e que a convidou para acompanhá-la.
Crônicas vestidas
Com invejável experiência de trabalho de campo, Carmen havia defendido, em 1967, sua tese de doutorado sobre Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu e estava comprometida incondicionalmente com a luta em defesa dos direitos indígenas. Presa em 1969 pela Operação Bandeirantes (OBAN), de nome sugestivo, ela foi trabalhar depois com os Cinta Larga, no Parque Indígena do Aripuanã, onde viviam também os Suruí e os Zoró. Agora, sua missão, no curso do CIMI, era contribuir para a construção de uma pastoral indígena antropologicamente responsável.
Do curso faziam parte índios, indigenistas, agentes de pastoral, padres e freiras:
- O dia começava cedíssimo, com sinos e horários para o café da manhã. As reuniões eram subdivididas em grupos. As pessoas, sentadas em círculo, em bancos de madeira, à sombra de árvores generosas, expunham sua situação, as ameaças e violência sofridas, a luta pela terra, as tradições e os rituais. Foi um impacto ouvir a miríade de nomes dos povos, em línguas tão estranhas, que a maioria dos brasileiros não sabia serem nossas. – escreve Betty.
Ela conta que na sessão da noite, ao entrar na sala, faltou energia na região e as luzes se apagaram. Quando as lâmpadas se acenderam, quase desmaia de emoção. Seu vizinho de carteira “era nada mais nada menos que D. Pedro Casaldáliga, magro, nariz aquilino, cabelos lisos e esbranquiçados, os “olhos sacis” e um sorriso de simpatia”.
O trio elétrico
Betty descreve como os bispos libertários D. Pedro e D. Tomás “se agasalharam de imediato no manto sedutor de alegria de Carmen, em sua sede de justiça, em seu fascínio feminino. Formaram um trio divertido: os dois bispos e a batalhadora passional, a libertária destemida, a grande amiga e conhecedora dos Kamaiurá. Passaram a sentar juntos às refeições, a conversar nos intervalos”. Num dos almoços, Betty ouviu os dois bispos brincarem com Carmen, afirmando que ambos gostariam, não fossem os graves impedimentos, de se casar com ela, cada um disputando a primazia. Risadas deliciosas enfeitaram a brincadeira.
O que os bispos não sabiam, mas podiam imaginar, era que os candidatos proliferavam. Carmen chegou até a ganhar de um grande pajé do Xingu um colar de garras de onça, colar de noivado. Entrariam na disputa, não fossem os impedimentos, certo chefe da Aldeia Kamaiurá, toda a torcida do Rio Negro, além de professores e alunos da Universidade do Amazonas que, em 1978, participaram do Curso de Antropologia Amazônica ministrado em Manaus por ela, que passou por lá como um furacão. Os participantes anotavam até seus suspiros. Se fosse possível, teríamos feito com ela o que fizemos com seu texto: uma xerox de sua pessoa para cada um ficar com uma cópia.
Um aluno de letras e ator do Teatro Experimental do Sesc/Amazonas, Herbert Braga, hoje professor da UFAM, no último dia de aula, com voz trêmula que não escondia seu fascínio, perguntou:
- Mestra, a senhora falou em Boas, Malinowski, Pritchard, Mauss, Lévi-Strauss... se tivesse que indicar um único livro para a formação de um bom antropólogo, qual obra recomendaria?
Carmen olhou para um lado, para o outro, como querendo se certificar que não havia nenhum policial na escuta. Com gestos de Giulietta Masina, que tanto encantaram Federico Fellini, foi conclusiva:
- Vá ler O Capital, de Marx. Lá está o essencial.
Não sei se o Herbert leu. Mas essa era a Carmen, que encantou D. Pedro e D. Tomás. Betty, que lhe faz homenagens no livro, pede desculpas à sua ex-orientadora “pelas inconfidências e imprecisões dessas notas”. Mas foi precisa na descrição:
- “Sua figura era um mimo: mocinha de olhos azuis, com um movimento corporal que nunca vi em ninguém, feminino e firme como os dançarinos da Ópera de Pequim, mestra, modelo, companheira, guerreira engajada nas causas sociais, conferencista ímpar, sedutora e magnética”.
Pedro e Tomás tinham razão em se render a esses encantos...
P.S. - A montagem da foto acima foi feita por José amaro Jr. das Ugagogo. As demais fotos foram pirateadas da internet, uma delas de autoria da Ana Helena Tavares.