Nesta quarta, 16 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) mostrará sua cara que será ou a do General Custer ou a do Touro Sentado. Nesse dia, a Corte Suprema definirá qual o Brasil que deseja construir para nós, nossos filhos e nossos netos. Isso internamente. Já a cara para fora manifestará ao mundo o grau de civilização do nosso país, quando julgar três ações relacionadas à reivindicação dos ruralistas, que pretendem continuar abocanhando terras indígenas com a tese do chamado “marco temporal”, ou seja, os índios perdem todos os seus territórios expropriados antes do dia 5 de outubro de 1988 e não se fala mais nisso. Como se a história do Brasil começasse em 1988.
A ONU está de olho em nós. A Secretaria Geral acaba de remeter ao Conselho de Direitos Humanos o Relatório sobre os Direitos dos Povos Indígenas escrito pela enviada especial Victoria Taul-Capuz sobre sua missão ao Brasil em 2016. O tópico central por ela abordado é justamente a falta de acesso à justiça para os povos indígenas, motivado por várias razões: racismo institucional, barreiras culturais e linguísticas, falta de recursos, ignorância das autoridades, inclusive de membros do Poder Judiciário, sobre os índios e sua história. O relatório destaca a impunidade dos crimes cometidos contra os índios: assassinatos, expedições punitivas, invasão de terras.
O que os índios representam para um magistrado que vai julgar tais ações? Qual imagem foi enfiada dentro da cabeça deles? Não falo só daqueles comprometidos com o agronegócio até o último fio da careca, como Gilmar Mendes, mas dos “isentos” que ainda não apodreceram. Todos foram formados por uma escola que apagou a matriz indígena na formação do povo brasileiro e apresenta os bandeirantes como heróis da pátria e desbravadores dos sertões, “imortalizados” no escandaloso monumento do Parque do Ibirapuera. A impunidade começa aí: na glorificação do genocídio e na naturalização do esquadrão da morte feita pela escola, museus, mídia.
Pensando em roubar
O desconhecimento é muito mais que uma lacuna, porque lá se instala o preconceito. Quantos integrantes atuais do STF e do Poder Judiciário têm a sensibilidade, a coragem e a lucidez do ex-ministro Ayres Britto? Ele declarou que começou os estudos para relatar o processo da Terra Indígena Raposa Serra do Sul com a mentalidade do General Custer, o carrasco dos índios norte-americanos do séc. XIX, mas depois de conversar com os Makuxi e os Wapixana passou a pensar como Touro Sentado, que resistiu bravamente na batalha de Little Big. A voz de Ayres Britto faz uma falta danada no STF.
Para que os índios tenham acesso à Justiça, é preciso que o caminho que vai de Borba Gato a Sepé Tiaraju seja trilhado pelos juízes, que precisam ouvir a outra parte como fez Ayres Britto. Iniciativa pioneira emergiu na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), então dirigida pelo desembargador Sérgio Verani, que incluiu os direitos indígenas nos cursos para os juízes vitaliciandos. Nos dois módulos que ministrei, um deles acompanhado da guarani Sandra Benites e do kuikuro Leythion, vimos os novos juízes interessados no conhecimento das culturas indígenas, ausente do currículo dos cursos que fizeram.
Nas faculdades de direito, o que se aprende sobre os índios? Com essa pergunta iniciei o curso Consequências sociais das decisões judiciais – o direito dos povos indígenas na EMERJ. Usei documentos do Arquivo Nacional, cujo Fundo Polícia da Corte tem 340 volumes com relações de presos no séc. XIX. Num deles consta um índio encarcerado no Rio, em 1831, “por estar numa atitude de quem estava pensando em roubar”. O juiz de direito era tão eficiente que lia até pensamento. O trágico é que no sec. XXI, práticas similares continuam. Recentemente, um juiz na Bahia determinou a prisão do cacique Babau, tupinambá, acusando-o de “pensar em cortar a orelha” de um fazendeiro.
Discutimos como o preconceito está presente nos agentes dos três poderes. Uma juíza federal se recusou a ouvir uma testemunha falando guarani, com ajuda de um intérprete, no júri dos acusados de assassinar, em 2003, o cacique Marco Verón, líder da comunidade Kaiowá de Takuara (MS). Na CPI na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, deputados impediram o líder terena Paulino de relatar, em sua língua, com ajuda de tradutor, os ataques que a comunidade vem sofrendo desde 2013 e ainda debocharam dele. Os índios foram silenciados, contrariando a Constituição vigente no Brasil e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Ossadas encontradas
A legislação mudou, mas a mentalidade permanece. Crimes cometidos contra os índios permanecem impunes. Ossadas foram encontradas no dia 1º de agosto na fazenda Iguatemi (MS), com indícios fortes de que seriam de dois indígenas desaparecidos há um ano. Um ex-empregado da fazenda é apontado como suspeito do homicídio e da ocultação de cadáver. Ele, o dono da fazenda e o arrendatário continuam tão livres como Aécio Neves, Loures e Gedel. A polícia e o judiciário acabam estabelecendo com eles um grau de cumplicidade, que desacredita a própria democracia.
No Dia Internacional dos Povos Indígenas, celebrado no 9 de agosto, foram denunciados parlamentares representantes do agronegócio. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) conta com 231 deputados e 25 senadores de diversos partidos. Os votos deles impediram que o presidente Michel Temer, flagrado com batom na cueca, fosse julgado por crime de corrupção. Para conquistá-los, Temer já se antecipou ao STF e, em julho, com a cara-de-pau do general Custer, “legalizou” o marco temporal, assinando medida que proíbe a revisão dos limites de terras indígenas já demarcadas.
“Nossa História não começa em 1988! Marco Temporal não” – protestou em nota a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que solicitou ao Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, a investigação deste crime de improbidade administrativa cometido por Michel Temer por ter usado a máquina pública para prejudicar os direitos constitucionais indígenas em favor dos ruralistas. Trata-se de obstrução à Justiça. Além disso, com aval de outras entidades, a APIB enviou novo informe ao Alto Comissariado da ONU, solicitando cobrança dos acordos internacionais, já que a medida de Temer viola a Convenção 169 da OIT.
No final do Relatório encaminhado à ONU, Victoria Taul-Capuz faz uma série de recomendações sobre a necessidade de medidas urgentes para enfrentar a violência e a discriminação contra os povos indígenas, cabendo aqui destacar duas delas:
1 - O STF deve “garantir que julgamentos futuros sobre os direitos dos povos indígenas sejam inteiramente consistentes com os padrões nacionais e internacionais de direitos humanos”, ou seja, abaixo o marco temporal.
2 – O Judiciário, o Legislativo e o Executivo devem considerar com urgência “a eliminação das barreiras que impedem os povos indígenas de realizarem seu direito à justiça”, buscando para isso “garantir treinamentos e orientações específicas sobre os direitos dos povos indígenas para membros do judiciário que lidam com assuntos como direitos territoriais, consulta prévia e adoção de crianças indígenas. Isso poderia incluir, por exemplo, diálogo colegiado com membros do judiciário em países com extensão jurisprudência sobre os direitos dos povos indígenas, como a Colômbia”.
Pergunto se é possível eliminar barreiras sem gritar “Fora Temer”, “Fora Aloysio Nunes”, “Fora Gilmar Mendes”? Sem o risco de cometer o mesmo erro aqui criticado, suspeito que com o marco temporal a bancada ruralista manifesta uma “atitude de quem está pensando em roubar” as terras indígenas.