CRÔNICAS

Berna e o tacacá do PT

Em: 05 de Agosto de 2007 Visualizações: 17907
Berna e o tacacá do PT

.A história do tacacá do PT vivida pela família Mafra de Andrade, em 1980, foi lembrada, anteontem, pelos amigos, na missa de sétimo dia de falecimento da artista plástica Maria Bernadete Mafra de Andrade – a Berna - realizada na igreja Nossa Senhora das Mercês, no bairro Eldorado, em Manaus. Mas ela só faz sentido se antes fizermos reconstituição do caldeirão político no qual ocorreu.  Vamos lá.

Estamos no final dos anos 1970. O descontentamento se espalha por todo o país. A ditadura militar agoniza. Nas ruas e sindicatos, nas universidades e fábricas, cresce o movimento contra a censura, a tortura, as prisões, reivindicando o direito de reunião e livre associação. No ABC, as greves dos metalúrgicos indicam o caminho da resistência. Em Florianópolis, estudantes vaiam o general Figueiredo, presidente biônico, e ele xinga as mães dos manifestantes, saindo pessoalmente pra porrada com eles.

No Amazonas, a gente junta os cacos, reunindo todos aqueles democratas que de alguma forma resistiram ao arbítrio. Nas eleições de 1978, as candidaturas de Arthur Neto (deputado) e Felix Valois (senador) fustigam a ditadura. No TESC, o escritor Márcio Souza, o poeta Aldisio Filgueiras e o ator Ediney Azancoth encenam peças de teatro que falam da liberdade, dos índios, da história. Nas escolas públicas, os professores protestam contra os salários de fome e reorganizam a APPAM, sob a liderança de Freida Bittencourt, Rosendo Neto, Theodoro Botinelly e Aloísio Nogueira, entre outros.

Na UFAM, os docentes fazem reuniões semi-clandestinas e fundam a ADUA, que depois aprova uma carta de princípios, comprometendo-se a lutar por uma universidade amazônica com um padrão intelectual e científico de qualidade. A carta conta com a contribuição de Renan Freitas Pinto, Marcus Barros, Manoel Galvão, Lauro Thomé, Luiz Falcão, Amecy Souza, Moacir Lima e um grupo de mulheres valiosas: Marilene Correa, Selda Vale, Graça Barreto, Neide Gondim e outras.

O movimento estudantil se rearticula. Na Agronomia, Eronildo Bezerra, João Pedro e o grande Cardoso, de fala mansa, promovem agitações que fortalecem o PC do B, então na clandestinidade. Na Medicina, José Carlos Sardinha, se insurge contra a má qualidade de ensino, liderando o debate sobre o perfil do médico que se devia formar. No ICHL, o Centro Acadêmico de Filosofia (CAFCA) publica boletim, incendiando corações e mentes, com artigos de Ricardo Parente, Berna, José Cyrino, Rui Brito e outros. Tudo isso desemboca na eleição para o DCE da chapa Pé na Terra, com Públio Caio na cabeça.

Várias pastorais, entre as quais a indígena, a operária e a da terra, mostram o novo compromisso da Igreja Católica com os pobres. Os jesuítas, de volta ao Amazonas, trazem um sopro renovador. O valente jornal Porantim, editado pelo CIMI com a contribuição de Paulo Suess, Renato Athias, Ademir Ramos, Narciso Lobo e Deco Souza, denuncia as invasões das terras indígenas. A pastoral operária forma quadros, que mudariam a direção do sindicato dos metalúrgicos. O nego Nestor Nascimento, com o movimento ALMA NEGRA, combate a discriminação racial.

Todos esses setores, coordenados por alguns pesquisadores do INPA como Ronaldo Almeida e Maria Tereza Piedade, criam o Movimento em Defesa da Amazônia, colocando o bloco na rua, com manifestações contra o desmatamento. No meio dessa onda, Frederico Arruda mobiliza pesquisadores como Samuel Benchimol, Geny Brelaz, Roberto Vieira, José Maria Pinto, Antônio Loureiro e outros que participam de um grande debate com a comunidade e redigem uma proposta de política florestal para a Amazônia brasileira.

Goma sem tucupi

Esses movimentos acontecem simultaneamente, incluindo a fundação do PT. Exigem reuniões, pichações, cartazes, faixas, panfletos, boletins, jornais, manifestações, atos públicos, assembléias, greves e mobilizações diversas. Por isso, o casal Aurélio e Alice, gente de muita fé, doou aos movimentos as energias de suas sete filhas: a saudosa Fátima, Magela, Berna, Socorro, Paula, Georgina e Ivone, que militam em todos eles.

As meninas têm boa formação. Cursaram o primário e o secundário no Colégio Aparecida, no bairro do mesmo nome. Uma delas, Berna, estudou também na Escola Técnica Federal e na Pinacoteca de Manaus com Álvaro Páscoa e Manoel Borges, concluindo depois sua licenciatura em Educação Artística na Universidade Federal de Pernambuco. Na volta, cursou filosofia no velho ICHL, da Rua Emílio Moreira, elegendo-se presidente do CAFCA.

Quase todos os fins de semana, as irmãs Mafra pediam a dona Alice para preparar dois panelões grandes de goma de tacacá, que iam ao fogo no fundo do quintal. De noite, as meninas saiam com os panelões cheios de goma e voltavam de madrugada com eles esvaziados. A freqüência dessas saídas se tornou tão sistemática que dona Alice, um dia, intrigada com a voracidade da militância petista, perguntou, tão bonitinha:

- Minhas filhas, não é muito tacacá pra tão pouco PT? Esse pessoal vai ter caganeira.

Foi ai que as meninas explicaram que a goma não era para fazer tacacá. Acontece que como todo fim de semana elas tinham que pichar e colar cartazes para alguma luta, a goma da dona Alice era requisitada, porque foi considerada, unanimemente, como a mais grudenta de todas as colas já produzidas no Amazonas. Para tirar o cartaz, tinha que derrubar a parede. O então estudante Omar Aziz, na época do PC do B, antes de virar traíra, esfolou os dedos tentando arrancar um desses cartazes.

Depois de tanto tacacá, Berna foi para Rio fazer bacharelado em pintura na Escola de Belas Artes. Cursou ainda mestrado e doutorado em Arquitetura e Urbanismo na USP, defendendo a tese Um estudo para intervenção artístico-ambiental do campus da Universidade do Amazonas.  Trata-se de uma proposta para transformar o campus num espaço de lazer, convivência e cultura, freqüentado nos fins de semana pelos moradores de Manaus, como o paulistano faz com o campus da USP. O então reitor Walmirzinho Albuquerque engavetou o projeto.

Bernadete Andrade, artista e militante, professora da UFAM, superintendente regional do IPHAN, coordenadora do Departamento de Arte-Educação da SEMED, se formou nesse movimento grudado com goma de tacacá. Ela foi capaz de reunir em torno dela, para o último adeus, tantas pessoas, sobreviventes de um dos momentos mais belos da luta social no Amazonas, passo importante em direção à modernidade e à democracia. Por isso, o Senado Federal aprovou voto de pesar pelo seu falecimento, encaminhado por Arthur Neto Esperamos que a dor do poeta e escritor Aurélio Andrade, seu pai, se torne mais suportável, porque compartilhada em alguma medida por todos nós.

 

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21 Comentário(s)

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Socorro Jatobá comentou:
22/08/2024
Gravados na memória e no coração. Tempos de tantos sonhos, lindas e queridas amizades, muita luta e risos nas dependências do ICHL e em nossas caminhadas e marchas pelas ruas de Manaus ao som do Tariri. Berna, à frente, emprestando seu talento para pintar muitos desses cartazes. Ah, o tempo, tempo rei, de fato. Precisou da Berna em sua corte e a levou cedo demais. Mas, foi gentil conosco: deixou-nos lindas e preciosas lembranças.
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João Guilherme Cunha comentou:
22/08/2024
A germinação de uma década incrível que vivemos em Manaus, saudades enormes desta mulher sorridente...
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Ivone Andrade comentou:
20/08/2024
Esse TaquiPraTi é uma volta no tempo. Obrigada José Bessa por essa significativa homenagem a nossa Berna. Bjosss no coração
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Amélia Loureiro comentou:
20/08/2019
Nada é por acaso. Ontem pensei no quanto sinto saudades da Berna, das nossas conversas, opiniões, dos nossos encontros no largo com o Gabriel
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V=João Pedro Gonçalves comentou:
20/08/2019
Como faz falta uma pessoa como Berna neste Brasil tão complexo, injusto, uma mulher de muitas contribuições, professora, artista, militante, saudades desta estimada companheira.
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Hercilia Rosa comentou:
20/08/2019
MEMÓRIA SELETIVA DA MAMÃE E DO PROFESSOR BESSA.Professor, Mamãe estudou no ICHL neste período e tem outra memória. A memória
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Inaldo Seixas comentou:
20/08/2019
Entrou o sentimento de saudosismo daquele tempo de verdadeira resistência, que combinava ousadia, irreverencia com a ação efetiva. Desejo aos militantes democratas e progressistas atuais o contagio daquela atitude para que possamos combater o ressurgir do neofascismo conservador que, mesmo momento, nos afoga e nos remete a tempos pretéritos aos quais, os que vivemos, não queremos mais.
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Erika Folhadela comentou:
20/08/2019
Que delícia reler isso... E que saudade... Alice, Aurélio, Berna
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Elvira Eliza França comentou:
20/08/2019
Muita luz para essa grande guerreira.
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Mirna Feitoza Pereira comentou:
20/08/2019
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Márcio Braz Guarani Kaiowá comentou:
20/08/2019
Saudades da querida Berna. Tão graciosa, inteligente, engraçada, amiga. Sempre no meu
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Simone Baçal comentou:
20/08/2019
Saudades! O meu primeiro livro, tem a arte inesquecível da Berna. Guardo a capa original com muito carinho!
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Francisco R Da Silva comentou:
20/08/2019
Nossa, vivi com Berna momentos lindos de colaboração artística. Berna criou pra o meu espetáculo Pegamater a visualidade toda. Fez maquete e tudo mais pra eu levar meu projeto no dia em que fui apresentar para a curadoria do Sesc São Paulo. Berna pensou nas cores terra da obra e seus tons. Fez com tanto cuidado e afeto a maquete. Infelizmente quando me ausentei do Brasil em 1996 (Berna e eu morávamos em Sampa na época) deixei na casa de uma amiga essa obra de arte e sumiu!! Pegamater foi selecionado pela curadoria e premiado pelo Sesc São Paulo, em 1994. Muito afeto pela Berna.
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Su Martins comentou:
20/08/2019
José Bessa que história linda! Essas meninas são poderosas, querida Magela Ranciaro e Ivone Andrade. As lutas não foram em vão. Creiam e encham -se de esperanças por dias melhores!!!
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Ilsa Coelho comentou:
20/08/2019
Chorei amiga, ao lembrar de alguns momentos desse tempo que vivemos
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Marilza De Melo Foucher comentou:
20/08/2019
Essa crônica me fez chorar com saudades de todos vocês que juntos lutamos pela democracia. A Berna querida sempre será lembrada por todos nós. Saudades eternas. Magela Ranciaro aí eu choro ainda mais pois hoje estou virei um poço de emoções.
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Magela Ranciaro comentou:
20/08/2019
Marilza, minha amiga,todos, penso, estamos assim: à flor da pele José Bessa tem, por competência literária, a capacidade de nos fazer mergulhar no tempo da memória. Faz lembrar Bachelard: “Inventa. Não há festa perdida no fundo da memória”
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Ivone Andrade comentou:
20/08/2019
obrigada Babá. Ler essa homenagem à Berna nos faz voltar no tempo e nos enchem de esperança ao acreditar que nada está perdido e ainda tem muita goma pra rolar...tá pra ti maninho!
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Magela Ranciaro comentou:
20/08/2019
Babá mexeu com o coração da gente. Não canso de ler essa crônica. Em que pese todas as centenas e milhares por ti já escritas - muitas das quais guardas em Arquivos do mestre Aurélio - essa é, pra mim, a mais terna confissão de carinho dedicada à BERNA.
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Ana Cristina Pinheiro comentou:
20/08/2019
Direto do túnel do tempo Passa um filme na cabeça, relembrando professores da U.A. que foram responsáveis por muitas cabeças pensantes do cenário público e das lutas na sociedade. Parabéns Magela Ranciaro por lembrar através da história que existe um legado que poucos conhecem mas muitos criticam sem ao menos conhecer....
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Francisco Fernandes comentou:
20/08/2019
Sensacional essa crônica do Babá!!! Toca nos nomes do principais atores socias do movimento pela abertura democrática e pré- PT.
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