CRÔNICAS

Joel Silveira: um repórter no céu

Em: 19 de Agosto de 2007 Visualizações: 10008
Joel Silveira: um repórter no céu

Embora os jornais nunca falem no assunto, existem salas especiais destinadas à imprensa, tanto no céu como no inferno. Nosso correspondente no Além constatou que jornalista puxa-saco, venal, subserviente ou tíbio, que nem fede nem cheira, vai mesmo pro inferno, ouviu Merval Pereira?

Não é o caso de Joel Silveira, 88 anos, falecido na última quarta-feira, em seu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro. Ele foi direto pro céu, porque amou e odiou intensamente, inteligentemente, seletivamente, e nunca se vendeu. Por isso, o capiroto rejeitou esse sergipano cabra-da-peste que, em plena ditadura militar, botou a polícia pra correr, numa situação que o degas aqui viveu. 

Foi assim. Dois agentes do DOPS invadiram a redação do jornal O Paiz. Um deles gordo, que nem rato de galpão, relinchou:

- “Quem é Ribamar Bessa?”

De repente, todas as máquinas de escrever pararam. Fez-se um silêncio intenso, ensurdecedor. Encagaçado, com cara de égua-velha, eu já ia me entregar. Fui salvo por Joel Silveira, diretor de redação, que saiu de sua sala cuspindo fogo. Com os dedos polegares enfiados nas tiras do suspensório, rasgou o verbo:

- “Cadê a ordem judicial? Não tem? Então, fora! FOOORA!! Chispa daqui!!! – dizia, desembainhando peixeira imaginária.

Os meganhas, com o rabo entre as pernas, se picaram, mas ameaçaram voltar com uma intimação escrita. Joel, então, me chamou?

– “Quanto é que você ganha?”

Coitado de mim! Com vinte anos de idade, ganhava o piso salarial, se não me engano, uma merreca de 400 mil cruzeiros.

- “A partir de hoje, você ganha o dobro. Não quero vê-lo em duas semanas. Desapareça daqui”.

Dessa forma, ele premiava matéria publicada no dia anterior naquele jornal polêmico, que acabava de ressuscitar. Antes de revelar aqui o conteúdo da matéria, vale a pena falar do jornal.

O Paiz com ‘z’

O Paiz teve duas fases. A primeira durou quase meio século (1884-1930). Começou, dirigido por Quintino Bocaiúva, defendendo idéias abolicionistas e republicanas. Lutou valentemente contra a escravidão e a monarquia, publicando artigos de Joaquim Nabuco, Saldanha Marinho, Lopes Trovão, Rui Barbosa, Lima Barreto e tantos outros que hoje são nomes de ruas. Sediou a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), fundada lá, em suas dependências, em 1908. No final, amarelou e virou governista. O povo não perdoou a traição, invadiu o jornal e incendiou o prédio, as máquinas e as bobinas de papel.

Isso foi em 1930. O Paiz ficou, desde então, queimado e mortinho da silva, até que o jornalista Hedyl Rodrigues Vale decidiu ressuscitá-lo, em 1968, em plena ditadura militar, quando ainda estava quente o cadáver de Edson Luiz, um estudante de 18 anos, assassinado no final de março pela polícia do Rio. O corpo dele, enrolado na bandeira nacional, foi conduzido ao cemitério por uma multidão, que convocava em coro cadenciado as pessoas nas calçadas e nas janelas dos edifícios: “Vo-cê-que-é-ex-plo-ra-do, não-fi-que-ai-pa-ra-do”. 

O Paiz não ficou parado. Na segunda fase, que só durou alguns meses de 1968, focou um olho na subversão dos costumes: pílula anti-concepcional, mini-saia, hippies, teatro de vanguarda, tropicalismo, cinema novo. Concentrou o outro olho na luta estudantil, sindical e política, cobrindo passeatas, comícios, greves e manifestações de rua.

Nesse contexto, para dirigir a redação, só mesmo um correspondente de guerra, Joel Silveira, que havia acompanhado a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, na Segunda Guerra, e tinha muitos amigos, entre os quais alguns generais, JK e Jânio Quadros.

Foi ele, Joel, quem me escalou para acompanhar de perto uma grandiosa fraude armada contra o trabalhador brasileiro. O Ministério da Saúde havia planejado vender hospitais públicos e para-estatais ao setor privado pelo preço histórico de aquisição. Dessa forma, o Hospital dos Servidores, um dos mais bem aparelhados do Rio, bem como o dos Bancários, seriam entregues de bandeja aos empresários da saúde. O estelionato tinha o nome pomposo de Plano de Coordenação das Atividades de Recuperação da Saúde.

O Paiz começou uma campanha contra o tal plano, que tinha aspectos doutrinários, econômicos, financeiros e administrativos. O que interessava, porém, era que alguns capitalistas comprariam, a preço de banana, o rico patrimônio coletivo da rede hospitalar pública. Entre esses capitalistas, se encontrava o próprio autor da proposta, o ministro da Saúde, Leonel Miranda, que era filho de senhor de engenho na Paraíba e dono da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Botafogo, e seria testa-de-ferro de instituições norte-americanas interessadas no negócio. O plano, cinicamente denominado de “socialização da medicina”, era legislação em causa própria.

A ferida fria

O Paiz ficou no pé dos sindicalistas. Diariamente, entrevistava líderes sindicais de diferentes tendências, cobrando deles uma posição. Num dia, por exemplo, um dirigente dos comerciários do Rio manifestava opinião, demonstrando que estava em cima do muro, mas no outro dia um líder metalúrgico, que era contra o plano, denunciava esse colega como pelego do Ministério do Trabalho, cujo titular era o coronel Jarbas Passarinho. O pau comeu na casa de Noca. Depois de muito bate-boca, o movimento sindical decidiu realizar em Teresópolis um grande encontro para se definir oficialmente contra o Plano Nacional de Saúde.

Lá fui eu cobrir o evento com um fotógrafo de nome Frade, Wilson Frade se a memória não falha. Subimos a serra numa camionete Rural Willys do jornal. O auditório do Sindicato dos Bancários de Teresópolis, sede do encontro, estava repleto de sindicalistas de todo o país. Tomei um susto ao reconhecer, infiltrados, no fundo do auditório, dois policiais do DOPS, que vieram do Rio para espionar. Estavam disfarçados de sindicalistas, mas eu não podia esquecê-los, porque meses antes havia sido preso por um deles na invasão da Casa do Estudante do Brasil, onde morava. Precisava avisar os organizadores.

- “Quero te contar algo muito sério” – disse ao presidente do sindicato local dos bancários, que se dirigia, rápido, para o palco. Ele pediu desculpas por não poder me ouvir:

-“Estou atrasado. O encontro vai começar. Tenho que chamar os presidentes das diversas confederações para comporem a mesa”.  

A forma que encontrei para passar a informação foi pegar carona na sua fala e dizer, meio-brincando, enquanto andava a seu lado:

- “Então, aproveita e convida aqueles dois lá no fundo, que são do DOPS”.

Pronto. O recado estava dado.

O jovem presidente dos bancários de Teresópolis, que era também estudante, tomou minha palavra ao pé da letra. Pegou o microfone e foi convidando o presidente da CONTAG, da CONTEC e de outras confederações. “Convido também os dois representantes do DOPS do Estado da Guanabara” – ele disse, apontando os policiais. Um silêncio mortal tomou conta do auditório. Não havia saída pelos fundos.  Os dois, desmascarados, se levantaram e, constrangidos, surpreendentemente ocuparam um lugar à mesa, que foi fotografada por Frade em toda a sua extensão.

No dia seguinte, O Paiz publicou matéria assinada por mim, com manchete na primeira página. Joel Silveira colocou a foto ocupando as oito colunas do jornal, de ponta à ponta. Fez um círculo em torno da cabeça dos dois policiais ao lado dos sindicalistas e titulou com uma ironia, que justificou ter sido chamado de “víbora” por Assis Chateaubriand: “DOPS GARANTE REUNIÃO CONTRA PLANO DE SAÚDE”. Por isso, no dia seguinte, a polícia procurou na redação o autor da matéria. Daí o salário dobrado e os quinze dias de descanso concedidos pelo diretor de redação.

Convivi pouco tempo com Joel, o suficiente, porém, para admirar seu estilo, definido pelo poeta Manuel Bandeira como “uma punhalada que só dói quando a ferida esfria”. O Paiz foi fechado em dezembro de 1968. Joel foi preso. Mas suas lições de jornalismo ficaram, assim como a saudade do tempo em que havia diretor de redação que usava suspensório, brandia peixeira e colocava sua inteligência a serviço dos humildes.

P.S. – Agradeço ao meu amigo Marco Morel, jornalista e historiador, a sugestão da crônica. Seu avô, Edmar Morel, da mesma geração que Joel Silveira, também ocupa há muito um lugar de honra na sala de imprensa do céu.

 

 

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6 Comentário(s)

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Marisa Castellani comentou:
16/04/2024
Maravilhosa! Que delícia ler os textos do Bessa! Já distribuí para um monte de amigos jornalistas.
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Isabella Thiago de Mello comentou:
16/04/2024
Inesquecível: - "Uma punhalada que só dói quando a ferida esfria," do Bandeira ... Com certeza existem salas especiais para os jornalistas corajosos, porretas, no Céu, Bessa querido. Imagino com máquinas de escrever "Remington", ao som de tac-tac-téleque-tác-tác. Papai contava que quando chegava na redação do Jornal "Correio da Manhã", lá estavam Rubem Braga (que assim como Joel, também foi correspondente de guerra, na Itália), José Lins do Rêgo, Bandeira, Drummond, Geir Campos, Prudente Moraes Neto, Odilo Costa, filho, tempinho depois, Sérgio Porto... A turma!
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Eduardo Costa comentou:
16/04/2024
Maravilha! Esse plano nacional de saúde foi o primeiro ensaio da privatização da assistência médica da previdência social. Circa 1985 liguei para uma rádio onde Joel Silveira era entemrevustado para falar com ele sobre o tema da educação, tem pauta por causa dis CIEPS do Brizola. NÃO SE FAZEM MAIS JORNALISTAS COMO ELE! Parabéns a você pela crônica.
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Irene Loewenstein comentou:
16/04/2024
Muito bom, Bessa! Obrigada por compartilhar! Redivulgo! Hedyl R. Vale, o Doo, foi meu colega de turma no Colégio de Aplicação UFRJ (na época) da FnFi, dirigida pelo Eremildo Vianna, notório fascista. O bom Hedyl tb foi pras nuvens muito cedo... lembro que no 1° ano clássico sentava entre o Doo e o Paulo Henrique Amorim (que se encontre com o colega Doo em boas nuvens!) e ambos passavam a 1a aula bocejando... Bocejo pega; tive que trocar de lugar!!!
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Angelina Peralva comentou:
16/04/2024
Rimos muito, Bessa, o Tuca e eu, lendo sua crônica. Conhecemos bem o Joel, que foi um grande amigo do meu pai. Costumava dizer, cada vez que me via, que na chegada de ambos ao Rio de Janeiro, vindos do norte em um Ita, tentou por todos os meios impedir meu pai de entrar para o Partido Comunista: entra para o Partido Socialista, Peralva. Ali ninguém se ilude, mas também não se desilude... Bebia desbragadamente, mas só nos fins de semana. Durante a semana trabalhava sem descanso. Do seu Sergipe natal, dizia que era um estado tão pequeno que, sobrevoado, não aguentava uma dose de whisky. Quando meu pai morreu, pediu-me que fosse vê-lo. Bebi tanto whisky nesse dia que foi para nunca mais. Deu-me de presente uma estatueta do profeta Joel, para que eu não o esquecesse. Não esqueço.
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Emerson Quadros Zanetti comentou:
19/08/2016
A forja da adversidade é que produz os melhores de nós! Maravilhosa crônica!!!
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